Um país virado para si próprio ou um mundo de costas voltadas para o Ocidente. O que podem significar as eleições turcas "mais importantes de sempre"?

14 mai 2023, 17:36

As sondagens mostram equilíbrio, mas as visões dos dois candidatos às eleições turcas podem traçar caminhos muito diferentes, que podem vir a mudar o mundo

14 de maio, todos os olhos estão postos na Turquia. O destino de 85 milhões de pessoas vai a votos, mas em jogo está também o desfecho de alguns dos assuntos mais importantes da atualidade. Numa altura em que grandes potências continuam a lutar por influência um pouco por todo o mundo, estas eleições são a bifurcação para dois caminhos distintos: um mundo mais centrado na Ásia ou uma Turquia mais virada para si própria.

“São as eleições mais importantes na Turquia, desde sempre. Erdogan é o líder político na Turquia com mais anos de poder. Se Erdogan ganhar será uma continuação daquilo que temos, com a alteração da ordem internacional para um mundo cada vez menos centrado no Ocidente”, afirmou Isabel David, professora de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e especialista em política turca.

Mas o cenário de derrota de Erdogan não é tão improvável quanto já se pensou. Desde o início oficial da corrida à presidência que o líder da coligação que se opõe ao atual presidente tem aparecido sistematicamente à frente nas sondagens. Atualmente, Kemal Kiliçdaroglu aparece com 49,3% das preferências dos votos, com Erdogan ligeiramente atrás, com 47%.

Visto como alguém “capaz de construir pontes”, Kiliçdaroglu é a figura escolhida pela oposição para aglomerar o improvável conjunto de forças políticas que procuram fazer cair, de uma vez por todas, o grande sultão da política turca: Recep Tayyip Erdogan. “Vamos acabar com um governo opressivo por meios democráticos”, promete o economista que virou político. Mas o que sabemos sobre o economista, de 74 anos, que ameaça o poder de Erdogan? Chefia uma coligação chamada Millet (Nação, em português), com seis partidos e por uma formação de esquerda defensora dos direitos da minoria curda, que poderá ter a sua última oportunidade de terminar nas urnas com o crescente autoritarismo de Erdogan.

Durante quase duas décadas em que liderou o país, inicialmente como primeiro-ministro e depois enquanto presidente, Erdogan cultivou um complexo equilíbrio entre o Ocidente e o Oriente que frustrou muitos dos seus aliados da NATO e parceiros da União Europeia. Esse papel tornou-se muito mais traiçoeiro depois do início da guerra na Ucrânia, com Ancara a enviar milhões em armamento para Kiev, enquanto se recusava a impor sanções a Moscovo, ajudando várias indústrias russas a contornar as restrições.

Para a Turquia, a Rússia oferece várias oportunidades para fazer dinheiro, mas também vários perigos. Este último ano, os milhões russos inundaram o país de Erdogan. Ao todo, o comércio entre os dois países ultrapassou os 70 mil milhões de dólares. Mais de 1.363 empresas russas foram abertas na Turquia, no último ano, e mais de 155 mil vistos de residência foram atribuídos a cidadãos russos. Ao mesmo tempo que aproveitava para comprar gás natural com acentuados descontos, Ancara enviava apoio militar para a Ucrânia.

“Com Erdogan, a ordem mundial pode tornar-se cada vez mais orientada para a Ásia”, sublinha a especialista.

Esta ambiguidade, que Erdogan promete manter caso vença as eleições, é muito popular internamente, apesar do mal-estar que causa nos parceiros ocidentais. Mas o que pode mudar caso Kilicdaroglu consiga vencer as eleições?

O líder da oposição turca captou a atenção de milhões de turcos com promessas do fim dos vistos para viajar para a União Europeia – promessa essa que insiste que seria cumprida apenas três meses depois de assumir o poder – ou de ameaçar a Grécia com uma intervenção militar. Mas alguns dos conselheiros mais próximos de Kilicdaroglu colocam água na fervura.

É o caso do antigo embaixador Unal Cevikoz, conselheiro da campanha para relações externas, que admite que o governo de oposição estaria determinado em voltar a aproximar Ancara da União Europeia e da NATO. O diplomata disse mesmo que a Turquia terá uma política externa baseada “na não-intervenção nos assuntos internos dos vizinhos” e de “uma política externa imparcial e adesão às normas internacionais”.

Apesar de esta visão chocar com a visão não-alinhada de Erdogan, que utiliza a sua presença na NATO para intervir regionalmente em países como a Síria ou na Líbia, ela não é nova internamente. Por isso, a Aliança Nacional, liderada por Kilicdaroglu decidiu adotar o slogan não intervencionista do seu fundador, Mustafa Kemal Atatürk: “Paz em casa, paz no mundo”. Cevikoz quer e promete uma Turquia que se apresente como “mediador honesta”.

“A nossa prioridade fundamental seriam questões centrais de segurança nacional, como a ameaça terrorista que vem da Síria e do Iraque. Porque é que estamos na Somália? Não há razão. Porque é que temos milhares de soldados no Catar?”, questionou um membro da campanha em declarações à publicação Middle East Eye.

Mas as diferenças geopolíticas entre os dois candidatos ficam-se por aqui. Em declarações à CNN Portugal, a especialista em política turca explica que a posição de Kiliçdaroglu não é muito diferente da de Erdogan, particularmente no que toca à adesão da Suécia à NATO.

“A Turquia colocou-se na situação de ser uma potência com grande visibilidade internacional. Antes disso, praticamente não se envolvia em questões externas, mas esse ativismo tem rendido, desde 2003, grandes dividendos. A projeção de poder é uma das armas que Erdogan tem apresentado nas últimas semanas. É uma questão que interessa muito aos turcos, são os herdeiros do Império Otomano”, explica.

Apesar de ser na relação com os Estados Unidos e com a Rússia que todos os olhos estão postos, o cenário não deverá ser muito diferente. Kiliçdaroglu e a sua equipa parecem dispostos a tentar manter o equilíbrio de poder entre Moscovo e Washington, ao afirmarem-se como mediadores do conflito na Ucrânia. Ainda assim, Kiliçdaroglu deu sinais de proximidade com a Casa Branca ao encontrar-se com o embaixador norte-americano Jeff Flake, o que motivou a sérias críticas da parte de Erdogan, que vê na presença americana uma ameaça, e acusou Biden de “ter dado a ordem” de que ele fosse derrotado.  

“Uma vitória de Kiliçdaroglu vai trazer alterações a nível interno, com mais democracia e maior respeito dos direitos humanos. Podemos também esperar uma Turquia mais inclusiva e respeitadora das suas minorias. Mas não partilho da esperança de que a Turquia passe para o campo ocidental, caso Kiliçdaroglu vença. É certo que o candidato não será tão pró-russo como Erdogan, no entanto, esse caminho que a Turquia poderá trilhar será muito virado para si própria” frisa Isabel David.

Mas o que pode fazer a Turquia mudar de rumo é a economia. O país atravessa uma grave crise inflacionária, muito agravada por uma política monetária promovida por Erdogan, que insistiu em baixar as taxas de juro num período em que a lira turca perdia valor. Além da inflação e o custo de vida, do desemprego e dificuldade em encontrar trabalho, outras preocupações relacionam-se com o elevado custo das rendas de casa e a violência nas ruas.

Segundo o Grupo de pesquisa ENAG, uma instituição independente fundada em 2020 para acompanhar o índice de preços no país, indicou que a inflação anual na Turquia atingiu 105% em abril de 2023, muito acima dos números oficiais que apontam para 43% (mais 15 pontos face a 2002). Além disso, o desemprego afetou 22% da população ativa, em particular a mais jovem.

E Kiliçdaroglu foi buscar precisamente uma figura da política turca que representa a estabilidade económica: Ali Babacan, ex-ministro da Economia do AKP de Erdogan, que governou de 2002 a 2007, um período de grande estabilidade e crescimento económico na Turquia."O czar da economia de Kilicdaroglu tem uma visão neoliberal que choca com a visão social-democrata do líder da coligação", refere Isabel David.

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