“Erdogan tem muitas vidas e haverá muita violência caso perca". Quem é o seu principal opositor? Perguntas e respostas sobre as eleições na Turquia

10 mai 2023, 22:00
Kemal Kiliçdaroglu e Recep Tayyip Erdogan (AP)

Turcos são chamados às urnas este domingo. Pela primeira vez desde que chegou à presidência, Erdogan enfrenta uma real ameaça à sua autoridade

Os turcos vão ser chamados às urnas este domingo, 14 de maio, para as eleições gerais e em jogo está não só a presidência do país, como também a composição do parlamento. Mas as atenções internacionais estão todas concentradas na escolha do chefe de Estado.

Nos boletins de voto estarão quatro candidatos: Recep Tayyip Erdogan, atual presidente, Kemal Kiliçdaroglu, Muharrem Ince e Sinan Ogan. Contudo, apenas os dois primeiros podem aspirar a vencer.

Erdogan é já uma figura de proa da política internacional, sobejamente conhecida pela maioria dos europeus, ainda mais após a invasão russa da Ucrânia, na qual tem sido bastante interventivo, quer nas negociações do acordo de exportação de cereais do Mar Negro, quer na adesão da Finlândia e Suécia à NATO.

Kemal Kiliçdaroglu, o principal adversário de Erdogan, é, porém, uma figura desconhecida. Quem é este homem de 74 anos que ameaça o poder do atual presidente?

Economista e antigo funcionário público, assume-se como a principal figura da oposição a Erdogan, liderando a coligação Millet (Nação, em português). Subiu à liderança da principal força política contra o regime, o Partido Republicano do Povo (CHP) em 2010, na sequência de um escândalo sexual do seu anterior presidente, Deniz Baykal. Até este ano, não se tinha candidatado à presidência.

“É um alevita, há quem diga que é também curdo, portanto, faz parte de duas minorias”, afirma Isabel David, professora de Relações Internacionais no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e especialista em política turca. “É da província de Tunceli e vários dos seus familiares foram mortos num grande massacre contra alevitas nos anos 30.”

Estes fatores, explica a docente, fazem dele o candidato “mais consensual entre os curdos”, cujo apoio é “essencial para vencer as eleições”. Kiliçdaroglu conta com o apoio do Partido Democrático do Povo (HDP), o principal partido pró-curdo, e de Selahattin Demirtas, antigo líder deste partido e uma das maiores figuras da oposição, que está preso desde 2016.

Considerado “pouco carismático”, algo que Isabel David diz ser uma “grande desvantagem” na Turquia, Kiliçdaroglu é, no entanto, visto como um homem capaz de “construir pontes” com outros setores e partidos. Prova disso é a coligação que lidera, dirigida pelo CHP, de centro-esquerda, mas composta, na sua maioria, por partidos de direita, quer mais liberais, quer conservadores e islamistas.

Como é que um partido de centro-esquerda se une a partidos conservadores de direita?

Isabel David considera que Kiliçdaroglu mudou a linha seguida pelo CHP, de um perfil “mais nacionalista para um partido social-democrata à maneira europeia”, mas isso não o impediu de se coligar com forças bem à direita. Porquê? “É a única forma de derrotar Erdogan”, considera a especialista.

“Esta estratégia das alianças foi colocada em prática nas eleições autárquicas de 2019 pela estratega do CHP, Canan Kaftancioglu”, lembra Isabel David. A manobra deu resultado, com os candidatos apoiados pelo partido, Ekrem Imamoglu e Mansur Yavas, a serem eleitos presidentes das autarquias de Istambul e Ancara, respetivamente. “Kaftancioglu foi a arquiteta dessa vitória. No fundo, testou-se esse modelo em 2019 para agora ser usado nas presidenciais.”

Desta coligação fazem parte, também, antigos membros e aliados dos executivos de Erdogan, como Ali Babacan, antigo ministro da Economia e dos Negócios Estrangeiros, e Ahmet Davutoglu, antigo primeiro-ministro e líder do AKP (Partido da Justiça e Desenvolvimento) de Erdogan.

A professora de Relações Internacionais tem dúvidas de que esta coligação possa derrotar Erdogan, mas, caso o faça, considera “contestável” que a aliança se mantenha viva em torno de Kiliçdaroglu durante os cinco anos do mandato presidencial.

Quais são as grandes bandeiras de Kemal Kiliçdaroglu?

A grande promessa de Kiliçdaroglu e da coligação Millet é o regresso ao sistema parlamentar com poderes reforçados, em substituição do atual regime presidencialista. "Aqueles que apoiam o regresso ao sistema parlamentar reforçado estarão em maioria no parlamento. Os deputados do AKP também o apoiarão, porque viram que lhes foi retirado o direito de fazer política. Talvez não o possam dizer em voz alta”, afirmou o opositor de Erdogan em abril, numa entrevista ao jornal Hurriyet.

A libertação de presos políticos é também um tópico prioritário, sublinha Isabel David. Caso ganhe, Kiliçdaroglu prometeu a libertação do já mencionado Demirtas, mas também de Osman Kavala, empresário e ativista pelos direitos humanos, condenado a prisão perpétua no ano passado. Não esquecer, também, que após o alegado golpe de Estado falhado de 15 de julho de 2016, cerca de 40 mil pessoas, incluindo quase três mil juízes, foram detidas arbitrariamente por, alegadamente, estarem envolvidas no plano subversivo.

Outro dos grandes trunfos de Kiliçdaroglu é Ali Babacan, ex-ministro da Economia do AKP, que governou de 2002 a 2007, um período de grande estabilidade e crescimento económico na Turquia. Há anos que o país enfrenta uma grave crise inflacionária, acompanhada por uma grande desvalorização da lira. Só em 2021, o seu valor em relação ao dólar americano caiu 44%, tombando novamente cerca de 30% no ano passado. O resultado está à vista: em novembro de 2021, um dólar valia cerca de oito liras. Um ano volvido, o mesmo dólar correspondia, naquele momento, a 19 liras, uma consequência da recusa, da parte de Erdogan, em aumentar as taxas de juro para conter a inflação, que atingiu o valor recorde de 80,21% em 2022.

Em relação à política externa, Isabel David admite que o tom de Kiliçdaroglu possa ser mais “suave”, mas não acredita que haja uma “mudança significativa” face a Erdogan, e antevê mesmo um agravamento das relações com a Grécia por causa da ilha de Chipre, dividida não oficialmente entre o Chipre reconhecido internacionalmente e a República Turca do Norte do Chipre, formada após a invasão turca de 1974 e reconhecida apenas por Ancara.

“Esta coligação [Millet] é mais agressiva na questão do Chipre. Os gregos temem a sua eleição, creem que as relações com a Turquia podem piorar”, afirma. Em março, o líder do CHP, que defende uma solução de dois Estados, visitou mesmo o Norte do Chipre, para dar as condolências aos familiares das vítimas do sismo de fevereiro, numa viagem privada, não acompanhada pela imprensa.

Na questão dos refugiados, a especialista em política turca classifica a posição de Kiliçdaroglu como “muito nacionalista e xenófoba”, dado que “já manifestou a intenção de fazer um acordo com Bashar al-Assad para expulsar os cerca de quatro milhões de sírios que estão atualmente no território turco”. No entanto, considera que a questão essencial é a relação com os curdos.

“Será interessante ver como ele [Kiliçdaroglu] conseguirá pôr na mesma balança as boas relações com os curdos na Turquia e, ao mesmo tempo, equilibrar isso com a pressão dos nacionalistas para a repressão a tudo o que seja guerrilhas curdas fora e dentro da Turquia”, observa.

Sobre a questão da adesão da Suécia à NATO, Isabel David aponta, igualmente, que a posição de Kiliçdaroglu não será diferente da de Erdogan, dado que este tipo de posicionamento na cena internacional já trouxe “grandes dividendos” à Turquia. “Com o AKP, a Turquia colocou-se na situação de ser uma potência com grande visibilidade internacional. Antes disso, praticamente não se envolvia em questões externas, mas esse ativismo tem rendido, desde 2003, grandes dividendos. A projeção de poder é uma das armas que Erdogan tem apresentado nas últimas semanas. É uma questão que interessa muito aos turcos, são os herdeiros do Império Otomano”.

A docente universitária considera também “irrealista” uma proposta muito popular do opositor do presidente turco, que prometeu aos turcos deslocações para a União Europeia sem a necessidade de visto.

Quais os trunfos de Erdogan para enfrentar a crise económica?

Já aqui demos conta da grave crise financeira e económica que assola a Turquia há cerca de uma década, exacerbada pela teimosia da Erdogan em não aumentar as taxas de juro, de modo a reduzir a inflação. Para atenuar este problema, o presidente turco conta com um aliado de outros tempos: Mehmet Simsek, que prometeu voltar à pasta das Finanças, que ocupou entre 2009 e 2015, caso o AKP ganhe.

“Foi um dos homens fundamentais para o crescimento económico da Turquia e estabilidade dos governos do AKP durante a sua primeira década no poder”, recorda a especialista. Simsek beneficia de grande popularidade na Turquia. A sua política fiscal permitiu à Turquia uma forte recuperação da crise de 2008, bem como a redução da economia paralela e a expansão dos direitos dos contribuintes.

Mas não fica por aqui. Erdogan vai procurar, também, capitalizar o aumento dos preços dos combustíveis fósseis. A exploração de novas reservas de gás e poços de petróleo, como o que foi descoberto na província de Sirnak no início deste mês, é também uma avenida a explorar por Ancara. Isabel David destaca, ainda, os avultados investimentos turcos em África e o adiamento do pagamento do gás à Rússia para 2024 como uma “garrafa de oxigénio” para Erdogan e o AKP enfrentarem estas eleições em melhor posição.

Se Kiliçdaroglu vencer, irá Erdogan ceder o poder de forma pacífica?

É uma das grandes dúvidas destas eleições, mas Isabel David está pouco crente numa eventual transição pacífica de poder.

“Por várias vezes, Erdogan e alguns dos seus ministros, durante a campanha, disseram que as eleições são uma tentativa de golpe de Estado, e isso significa que eles não vão ceder voluntariamente o poder e que vão mobilizar vários apoiantes para fazer ações violentas”, perspetiva. “No dia 7, o presidente da Câmara de Istambul, Ekrem Imamoglu, que é um dos candidatos a vice-presidente, foi apedrejado num evento de campanha em Erzurum, houve várias pessoas feridas. Penso que isso pode ser uma amostra do que poderá acontecer caso Kiliçdaroglu vença.”

Para a especialista, um dos motivos para uma eventual revolta é o receio das elites do AKP de serem julgadas em tribunal por crimes cometidos durante a governação.

“Há várias pessoas, incluindo jornalistas e políticos, que querem que o AKP seja levado à justiça pelos crimes cometidos contra a democracia, contra os direitos humanos, pela corrupção. Dentro da coligação, temos a líder do Partido Bom [IYI], Meral Aksener, a dizer que é preciso fazer acordos para não levar o AKP à justiça, para não haver perseguições, mas, do lado do AKP, ninguém acredita nisso”, considera.

“Erdogan tem muitas vidas. Haverá muita violência caso Kiliçdaroglu vença, e acredito que essa violência se mantenha durante vários anos”, vaticina Isabel David.

Porque é que Erdogan chama “gays” e “bêbedos” aos opositores?

As críticas do presidente turco aos opositores da coligação Millet tornaram-se virais nas redes sociais por serem, no mínimo, pouco ortodoxas.

“Sabemos que o sr. Kemal Kiliçdaroglu é uma pessoa gay. O CHP é gay, o IYI é gay, o HDP é gay”, disse Erdogan a 4 de maio, colocando-se no papel de único defensor dos valores da família tradicional.

Mais recentemente, no dia 6 de maio, o líder do AKP apelidou o principal rival de bêbedo. “Sr. Kemal, beba de barris, se quiser. O meu povo não deixará que o bêbedo tome o poder.”

“Há especialistas em política turca que dizem que esta é uma estratégia de desespero, que Erdogan já não tem muito a que se agarrar”, aponta a professora do ISCSP. “Mas, na Turquia, estas questões são extremamente divisivas, há pessoas que acreditam fielmente em Erdogan e na sua retórica, e que votam no AKP independentemente das questões económicas.”

Isabel David sublinha o facto de o partido no poder controlar cerca de 80% da comunicação social e a falta de penetração das redes sociais nas camadas mais velhas da população turca como fatores para o sucesso deste tipo de argumentos.

“Os mais jovens têm acesso às redes sociais e conseguem desmontar estas afirmações, coisa que os mais velhos não conseguem. Mas não só isso, a Turquia é uma sociedade extremamente polarizada entre religiosos, não religiosos, nacionalistas, curdos. É, portanto, muito fácil instrumentalizar estes e cativar votos através deste tipo de retórica do ódio. Erdogan e o AKP sabem que podem instrumentalizar este tipo de questões na Turquia”, conclui a especialista.

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