Subida dos juros está a controlar a inflação? Corremos o risco de "matar o paciente com os medicamentos"

30 jun 2023, 07:00
Christine Lagarde (Daniel Roland/Getty Images)

Banco Central Europeu insiste na estratégia para tentar reduzir a inflação, mas há economistas que começam a não entender a opção da entidade liderada por Christine Lagarde

O mês de julho deverá trazer uma nova subida de juros na zona euro, esperando-se que o Banco Central Europeu (BCE) aumente em mais 0,25 pontos percentuais as suas principais taxas diretoras. Uma estratégia que é seguida por grande parte dos bancos centrais mundiais, e que continua a parecer ser a única solução adotada para fazer face à inflação, cujos valores de junho são apresentados pelo Eurostat esta sexta-feira.

No entanto, e apesar de a governadora do BCE ter sugerido que não há mesmo outra solução, há quem não concorde com a insistência na estratégia. É o caso do presidente da Informação de Mercados Financeiros (IMF), que à CNN Portugal afirma que a subida das taxas de juro já devia ter parado há algum tempo.

Filipe Garcia vai mais longe, e sugere que as próprias declarações da presidente do BCE, Christine Lagarde, podem não estar a ajudar a resolver o assunto. Bem pelo contrário. “O repetir incessantemente da inflação como um risco é em si mesmo inflacionista”, aponta o economista, referindo que isso “gera uma perceção de inflação que faz com que os agentes económicos” acabem por ter um comportamento defensivo. Isso significa que do lado das empresas se sobem os preços, enquanto do lado dos consumidores, com uma expetativa de preços mais altos, há uma maior aceitação a que isso ocorra. No meio surge ainda a perceção dos trabalhadores, que também ficam à espera de salários mais altos, o que até já foi criticado por Lagarde.

“O discurso devia ser menos incendiário”, reforça Filipe Garcia.

O investigador do ISEG, Ricardo Ferraz, concorda com esta visão, apontado que os preços ainda estão a subir, mas muito menos do que já subiram anteriormente. “Se olharmos para a taxa de inflação avaliada pelo Índice Harmonizado de Preços do Consumidor vemos que o valor máximo foi em outubro e, a partir daí, há uma tendência evidente de abrandamento”, explica.

"Em maio o valor da inflação já foi à volta dos 6%. Trata-se da variação homóloga mais baixa desde que a guerra começou”, acrescenta, admitindo que a inflação até possa voltar a acelerar em junho, mas depois voltar a desacelerar em julho, referindo que o que importa "é que há uma evidente tendência consistente de abrandamento da taxa desde o final do ano passado”.

No fundo, se a política monetária está a ter efeito, e os economistas reconhecem-no, também chegou a altura para um abrandamento. “Tendo em conta o agravamento da economia e do bem-estar, faz sentido essa pausa nas subidas, antes que se mate o paciente com os medicamentos”, refere Ricardo Ferraz.

"Há um efeito claro das taxas de juro no abrandamento dos preços, mas é normal que se entenda que, com os preços a abrandar e os efeitos económicos negativos, já que houve tantas subidas, devia haver uma pausa", conclui.

Guerra e energia, uma inflação diferente

Para Filipe Garcia parte da razão pela qual as taxas de juro já não deviam estar a subir está relacionada com a forma como surgiu esta inflação. Naquilo que parece ter sido um cocktail explosivo de fim de pandemia e início de uma guerra no meio da Europa, fatores como os constrangimentos logísticos e a subida dos preços da energia (que já vinham de antes, mas foram exacerbados pela guerra) foram determinantes para os valores verificados.

A juntar a isto, diz o presidente do IMF, há um outro problema, novamente de perceção: “Houve uma falsa sensação de escassez de produtos e bens, que não aconteceu”. O economista aponta que se disse que faltava trigo, por exemplo, mas que isso não era tanto assim.

“O preço do pão subiu, mas não falta trigo”, vinca, sugerindo que a tal perceção dos consumidores prejudicou a situação. É que se se fala na falta de trigo as empresas têm tendência a subir os preços, porque a perceção gerada é a de menor quantidade de matéria-prima. Por outro lado, os consumidores acabam por se resignar, uma vez que o que ouvem dizer é que existe essa escassez.

Filipe Garcia sublinha, aliás, que grande parte do efeito de inflação esteve relacionado com a expansão de margens. O próprio BCE e o Banco de Portugal vieram dizer que as empresas acabaram por puxar pela inflação, tendo sido responsáveis por cerca de 66% da subida de preços dos produtos.

Neste momento, diz Filipe Garcia, existe uma lógica de concertação dos bancos centrais a nível mundial. A Reserva Federal dos Estados Unidos já admitiu mais aumentos das taxas de juro para este ano. Na Turquia, por exemplo, a nova governadora do Banco Central viu-se obrigada a uma decisão nada popular: subir de 8% para 15% as taxas de juro, ainda que sendo certo que se trata de um país onde a inflação apresenta níveis muito mais drásticos do que no Ocidente.

Só que esta tal “lógica de concertação” gera um problema já abordado: “Quem tem poder de fixação de preços tem tendência a subi-los, quem recebe tem maior abertura a receber a subida. Se o BCE está sempre a dizer que a inflação é um problema então está a contribuir”, explica Filipe Garcia, para quem as subidas dos juros deviam ter parado pelo final do ano passado.

Para lá disso, aponta o economista, “a inflação iria descer de qualquer maneira, porque não esteve relacionada com a subida das taxas”. “O BCE tem sido lento a reagir, podia ter começado a subir [as taxas de juro] mais cedo para aproveitar o movimento inflacionista, mas agora já devia ter parado”, acrescenta.

Inflação a cair e bancos centrais insistem

Para Filipe Garcia é claro: a inflação já está a cair para níveis aceitáveis, mas o BCE continua a lavrar num erro, o de dizer que isso só acontece por causa da sua política monetária. “Não é verdade”, diz o economista, que aponta outras formas de lidar com o problema sem afetar famílias e empresas.

“Se o problema é excesso de liquidez há muitas formas de o fazer. Não é preciso subir as taxas de juro, porque o problema está do lado da oferta, não da procura”, reitera, referindo que existem outros instrumentos monetários, como as condições de cedência de liquidez a bancos, que podem ter impacto na base monetária sem atingirem direta e automaticamente os agentes económicos.

E as críticas não se ficam pelos economistas. Ainda esta semana vários políticos vieram avisar que talvez esteja na altura de mudar de rumo. Em Portugal, o primeiro-ministro, o ministro das Finanças e o Presidente da República sugeriram isso mesmo, enquanto lá fora também houve críticas, como as da primeira-ministra italiana, que disse que “a receita simplista de aumentos de juros adotada pelo BCE não parece ser o caminho mais correto”.

“Não consideram o risco de que o aumento constante das taxas de juros seja uma cura mais prejudicial do que a doença”, acrescentou Giorgia Meloni.

Ricardo Ferraz também segue a metáfora da doença, avisando que existe o risco de “a cura matar o paciente”, caso o BCE continue a insistir em mais subidas. É que, apesar de utilizar a “forma tradicional de resolver o problema”, aquela entidade “já está a ver efeitos negativos nas economias”.

O investigador do ISEG nota que as previsões da União Europeia para a Zona Euro apontam mesmo o maior abrandamento da economia desde 2013, altura da crise das dívidas soberanas, excluindo o ano excecional de 2020.

Em último caso, e num cenário mais negativo, isso pode levar a uma situação de maior desemprego, o que colocaria as famílias, já fustigadas pela subida dos créditos à habitação, numa situação ainda pior.

Filipe Garcia também vê a situação da mesma forma, referindo que “o BCE não está a agir no melhor dos interesses dos cidadãos europeus”, arriscando começar a entrar numa “lógica que vai acabar por começar a partir coisas”.

O economista diz mesmo que “neste momento o BCE contribui para o problema”, até porque, num cenário de desaceleração económica, com juros mais altos e pressões sobre os salários, as empresas “vão começar a ter problemas”. Não vai acontecer a todas, indica o presidente da IMF, mas é um risco que era “desnecessário”.

“Uma coisa é o mercado a funcionar, outra é terem de se financiar a taxas de juro que não são nada baixas. Vamos ter provavelmente um problema com as taxas reais positivas a partir do outono, e isso não é bom para as empresas”, sublinha. E o que não é bom para as empresas torna-se mau para os trabalhadores.

Subida no crédito habitação sem fim à vista, mas sem alarmes

É um problema que não é exclusivamente português, mas que nos afeta muito mais do que a outras economias da Zona Euro. A maior preponderância da taxa de juro variável nos créditos à habitação em Portugal deixa os detentores desse créditos muito mais vulneráveis a estas flutuações, quando comparado com países como a Alemanha.

Ricardo Ferraz lembra que o BCE deve fazer uma política para toda a Zona Euro, mas também assinala que Frankfurt não se deve esquecer dos países como Portugal. "Devem preocupar-se com as economias com maior percentagem de taxa variável, que são as mais penalizadas por estas subidas", aponta.

Segundo dados do Banco Central Europeu, 74,6% dos novos créditos à habitação contratados em Portugal no mês de abril tinham taxa variável ou fixa apenas no primeiro ano. Um contraste significativo com o conjunto da Zona Euro, onde o peso era de apenas 24%.

Isto mesmo num cenário que parece que já não vai "rebentar". Claro que há famílias que ficaram em situações impossíveis, tendo sido obrigadas a vender a casa porque não conseguiam pagar o diferencial no empréstimo. Mas isso não é a generalidade, diz Filipe Garcia. Os dados do Banco de Portugal mostram que o crédito malparado se mantém estável, tendo até descido comparativamente ao início de 2022.

Um cenário que o presidente da IMF entende ser explicado por haver um saldo médio em dívida nos créditos que é "relativamente baixo", sendo que o valor médio em dívida anda pelos 70 mil euros. "Os portugueses têm uma componente amortizada muito grande, há alguma capacidade de absorção", acrescenta, reforçando uma ideia anteriormente deixada, de que, quem conseguiu aguentar até agora, já não ter grandes problemas.

"Até é provável que o crédito malparado suba, mas não me parece que crie um problema de crise imobiliária em Portugal. Não há um problema sistémico", reforça, dizendo que "o grosso do ajustamento está feito", ainda que isso não signifique as prestações comecem a descer em breve.

Ainda assim Filipe Garcia avisa: "Se o BCE se lembrar de pôr os juros a 5%, se continuarem alegremente a subir as taxas de juro, tenho de mudar de opinião".

Para já a subida deve ficar-se pelos 4,50% nas operações principais de refinanciamento e pelos 4% na facilidade permanente de depósito. Refira-se, neste ponto, que são valores já próximos dos recordes registados pelo BCE, cuja taxa principal atingiu os 4,75% em 2000.

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