Se for decidida a incompetência do Tribunal Cível, a ex-CEO tem10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão para pedir a remessa para o Tribunal Administrativo
A TAP defende que a indemnização pedida pela ex-CEO da empresa foi feita no tribunal errado. Christine Ourmières-Widener fez um pedido de indemnização cível de mais de 5,9 milhões à TAP por ter sido despedida, alegadamente sem justa causa, mas a companhia aérea alega que a ex-CEO só teria direito a uma indemnização máxima de 432 mil euros se se considerasse que tinha sido efetivamente demitida sem qualquer justificação, algo que também contesta.
Acontece que esse pedido foi feito no Tribunal Judicial de Lisboa – mais concretamente, no juízo central cível de Lisboa – e os advogados alegam que esse pedido deveria ter sido entregue no Tribunal Administrativo. “Sucede que, como denotam claramente os pedidos formulados pela autora, a competência para apreciar o litígio não pertence aos tribunais judiciais, mas sim aos tribunais da jurisdição administrativa”, diz a contestação, feita pela equipa liderada por Nuno Casanova, sócio da Uría Menéndez – Proença de Carvalho.
A equipa de defesa da transportadora aérea alega a chamada “incompetência absoluta do tribunal” – prevista no Código de Processo Civil (CPC). Cabe agora ao juiz do tribunal judicial decidir se o pedido foi ou não feito no tribunal errado.
E quais são os efeitos dessa incompetência absoluta?
Caso o juiz decida por essa incompetência, um dos efeitos é a chamada “absolvição do réu da instância”. Nestas situações, o juiz deve abster-se de decidir sobre o pedido feito pela autora e absolver o réu da instância. Significa, portanto, que o juiz nada decide quanto ao mérito da causa, apenas se extinguindo a relação processual das partes. Basicamente, neste caso, se for absolvido da instância, este processo termina e a ex-CEO terá que instaurar uma nova ação no Tribunal Administrativo. O juiz poderá simplesmente enviar o mesmo pedido – com a mesma argumentação – para ser apreciado no Administrativo.
Jane Kirkby, advogada e sócia da Antas da Cunha ECIJA defende que “a incompetência absoluta do tribunal, que ocorre quando são violadas as regras de competência em razão da matéria, tal como é alegado pelos mandatários da TAP na presente ação, consubstancia uma chamada exceção dilatória, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância ou à remessa do processo para outro tribunal”.
Ou seja, caso o Tribunal Judicial de Lisboa venha a declarar-se incompetente para decidir, “irá decretar despacho de absolvição da instância, sem proferir qualquer julgamento sobre o mérito da mesma, isto é, sem se pronunciar sobre se a mesma tem ou não qualquer fundamento”.
Uma vez decretada a incompetência, pode aproveitar-se os argumentos desta ação, “desde que Christine Ourmières-Widener requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao Tribunal Administrativo e a TAP não ofereça oposição justificada”.
Para chegar à indemnização de 432 mil euros, os advogados da TAP recorrem ao Estatuto do Gestor Público, que “dispõe muito claramente que nos casos de destituição sem justa causa o gestor público apenas terá direito a uma indemnização correspondente ao vencimento de base que auferiria até ao final do respetivo mandato, com o limite de 12 meses”, segundo a contestação que a defesa da transportadora aérea apresentou esta segunda-feira no tribunal, consultada pelo ECO. A gestora francesa recebia 504 mil euros por ano enquanto CEO da TAP, com uma remuneração mensal base de 36 mil euros.
A francesa reclama 84 mil euros devido ao Pacto de Concorrência e de ter sido destituída sem o cumprimento do pré-aviso de 180 dias. Mas, lembram mais uma vez os advogados de defesa da TAP, “qualquer indemnização que lhe pudesse ser devida por cessação do mandato nunca poderia ultrapassar o montante previsto” no Estatuto do Gestor Público.
A demissão de Christine Ourmières-Widener aconteceu na sequência da polémica indemnização de 500 mil euros brutos paga a Alexandra Reis para renunciar ao cargo na TAP, que foi considerada ilegal pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF). O anúncio foi feito a 6 de março pelos ministros das Finanças e das Infraestruturas, Fernando Medina e João Galamba (que, entretanto, se demitiu), em conferência de imprensa.
Porque é que a TAP quer levar o caso para os Tribunais Administrativos?
É desde logo Christine Ourmières-Widener que situa esta questão no âmbito do direito administrativo, ao reconduzi-lo à
análise do artigo 25.º do Estatuto do Gestor Público. Efetivamente, dizem os advogados, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais diz que estes são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídico-administrativas;
De acordo com o Supremo Tribunal Administrativo, por relação jurídico-administrativa deve entender-se “a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração) que seja regulada por normas de direito administrativo”. Ora, dizem os advogados, é ” manifesto que o presente litígio advém de uma relação jurídico-administrativa, pelo que será a jurisdição administrativa competente para o conhecer”;
Ao contrário do que sucede no direito societário privado – em que a designação de um administrador apenas cria uma relação jurídica entre a sociedade comercial e o administrador –, a designação de um administrador para uma empresa pública cria uma relação jurídico administrativa tripartida entre o gestor público, a empresa pública e o Governo Português;
Com a existência desta relação tripartida – com natureza jurídico-administrativa, veja-se que o Estatuto do Gestor Público obriga à celebração de um contrato de gestão, entre o gestor público, “os titulares da função acionista e o membro do Governo responsável pelo respetivo setor de atividade”. Ou seja, “é manifesto que a relação do gestor público não é apenas com a empresa pública, mas também com o Governo”, diz a contestação.
O ato de demissão que foi praticado pela TAP ao abrigo do EGP como “indubitavelmente um ato administrativo sancionatório”. Desde logo, é o próprio EGP que o dá a entender, ao dispor, no n.º 2 do seu artigo 25.º, que “a demissão compete ao órgão de eleição ou nomeação, requer audiência prévia do gestor e é devidamente fundamentada”. Ou seja, é o próprio EGP que confere diretamente ao gestor que a empresa pública pretende demitir as duas principais garantias que os particulares dispõem ante prerrogativas de poder público da Administração;
Dizem ainda os advogados que este caso deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos, uma vez que, através da presente ação, a ex-CEO pede que as Rés sejam condenadas a pagar-lhe uma indemnização pelos prejuízos que adviriam do ato de demissão. A fonte da indemnização seria a responsabilidade civil extracontratual, com base em ato ilícito (demissão com justa causa ilegal) ou ato lícito (demissão por mera conveniência). E compete aos Tribunais Administrativos e Fiscais a apreciação da legalidade de atos jurídicos emanados de pessoas coletivas de direito público bem como de questões em que nos termos da lei haja lugar a responsabilidade civil extracontratual;
Por último, “parece claro, pelo menos desde 2019, que é o próprio legislador que entende que um litígio relativo à demissão de um gestor público emerge de uma relação jurídico-administrativa e deve, consequentemente, estar sujeito à competência da jurisdição administrativa”, dizem os advogados da Uría. Com a Lei n.º 52/2019 que consagrou um conjunto de obrigações especificamente aplicáveis aos titulares de altos cargos públicos.