“Foi-se tudo embora, deixaram-me sozinha.” A solidão também "mata" e há idosos na Baixa de Lisboa que estão "sozinhos no mundo"

25 dez 2023, 08:00
Solidão

"Já não vale a pena, o que é que estou cá a fazer? Quando é que me vou embora?’” Este é o pensamento de milhares de idosos que vivem sozinhos e isolados em Portugal. Na Baixa de Lisboa, uma associação nasceu para lhes mostrar que "ainda há vida para ser vivida"

“Entrem, entrem.” É com um largo sorriso no rosto que Cristina Franco nos recebe na sua casa, na Baixa de Lisboa, para mais uma visita. A azáfama das ruas, repletas de transeuntes que aproveitam a manhã para fazer as compras de Natal e de turistas que por ali passeiam ao ritmo das obras na cidade, é engolida pelo silêncio da casa. O espaço é pequeno, não mais do que 30 metros quadrados. O suficiente para guardar as memórias de uma vida, ilustradas nas fotografias que adornam as paredes da sala de estar.

Erguendo o indicador e apontando às molduras, Cristina apresenta-nos a família - a filha, a neta, as bisnetas, que volta e meia fazem uma visita. E o filho, cujo rosto aparece em várias fotografias. O rosto de Cristina depressa se retrai numa tentativa de conter as lágrimas. “O meu filho morreu quando tinha 20 anos. Tenho tantas saudades dele. Tinha um coração bom, era muito amigo”, recorda, de voz embargada. Dois anos depois da morte do filho, Cristina perdeu o marido e já não lhe restava nenhum dos 12 irmãos com quem cresceu. A menos de um mês de completar 85 anos, Cristina conta-nos que vive sozinha há 50.

"Foi-se tudo embora, deixaram-me sozinha”, lamenta, visivelmente emocionada.

Maria João Xavier segura as mãos de Cristina. A psicóloga, de 35 anos, integra a equipa técnica da Mais Proximidade, uma associação de serviços sociais de combate ao isolamento e solidão e que acompanha Cristina há oito anos. Pelo menos uma vez por semana, uma voluntária da associação dedica uma hora para fazer companhia a Cristina, mas não só. Sempre que necessário, faz a marcação de consultas e acompanha-a nas idas ao médico, faz a gestão da casa, resolvendo qualquer problema que surja, e concretiza sonhos.

O sonho de Cristina era voltar à terra onde nasceu, no concelho de Mafra. A associação conseguiu angariar fundos para concretizar esse desejo e Cristina voltou a ver a casa onde cresceu passados tantos anos, acompanhada de uma voluntária. “Passámos lá o dia inteiro. Nunca mais me vou esquecer desse dia. Vi a casa da minha mãe, chorei. Foi lá que eu nasci e foi lá que os meus pais se foram embora”, diz, recordando a morte dos pais, há mais de 50 anos.

Cristina Franco vive sozinha há 50 anos. Perdeu o filho, o marido e os 12 irmãos com quem cresceu. "O que tem sido mais difícil na minha vida é estar aqui sozinha", confessa-nos.

Durante cerca de uma hora, Cristina conta-nos episódios de uma vida que já lhe parece longínqua. Recorda-se da bondade da mãe, da rigidez do pai, de trabalhar horas a fio para ganhar apenas “dez tostões à hora” e de viver para a família. “Acho que já cá estou tempo a mais. Também não tenho mais ninguém”, desabafa.

Este é o pensamento de milhares de idosos que se sentem sozinhos em Portugal. São mais de 44.500 os idosos que vivem sozinhos e/ou isolados ou em situação de vulnerabilidade em Portugal, de acordo com um levantamento da GNR, no âmbito da Operação “Censos Sénior 2022”. Do total de idosos com mais de 75 anos que vive em Portugal, "20% reconhece sentir solidão", segundo dados divulgados à CNN Portugal pelo Observatório da Solidão, que confirma que "a solidão é maior entre idosos viúvos ou divorciados".

O discurso normalmente é ‘Já não vale a pena, o que é que estou cá a fazer? Quando é que me vou embora?’”, descreve Maria João Xavier, que trabalha na Mais Proximidade há mais de dez anos. "O que tentamos fazer é dar um propósito de vida às pessoas, mostrar-lhes que ainda vale a pena estar cá. Ainda há sonhos para concretizar, ainda há aniversários para festejar, ainda há vida para ser vivida, mas com qualidade.”

O combate ao isolamento e solidão de idosos é precisamente uma das linhas de intervenção da associação Mais Proximidade, fundada em 2006, na sequência de contactos porta a porta na Baixa de Lisboa com o objetivo de perceber porque iam sempre os mesmos “30 ou 40 idosos” aos convívios locais quando os Censos davam conta de “centenas de pessoas idosas a residir na freguesia” de Santa Maria Maior. “Começámos a percorrer as ruas da Baixa para tentar perceber se estavam ou não idosos a viver sozinhos. E fomos encontrá-los no quarto andar, quinto andar, sexto andar de prédios sem elevador, a morar em águas-furtadas. E estavam, de facto, isolados, em plena capital, em pleno século XXI”, conta Maria João Xavier, em entrevista à CNN Portugal.

Na altura, “não havia respostas na comunidade para esta problemática”, recorda a psicóloga. “Havia respostas para a higiene, alimentação, portanto tudo o que são as necessidades básicas. Mas não havia nenhuma instituição que olhasse para a solidão e para o isolamento como uma problemática. E hoje em dia sabemos que esta é uma problemática que mata, que causa depressões, que faz com que as pessoas vivam os últimos dias sem qualquer dignidade”, conta.

A Mais Proximidade nasceu então do reconhecimento dessa lacuna na comunidade. Mas, à medida que foi acompanhando os idosos, a associação percebeu que o facto de viverem isolados tinha outras consequências além da solidão. “Percebemos que muitas pessoas não estavam a ser acompanhadas ao nível saúde”, indica Maria João Xavier, apontando como motivos as dificuldades cognitivas ou de mobilidade dos idosos. “Imagine-se uma pessoa idosa que vai ao médico, que lhe altera a medicação, marca-lhe análises e exames e diz que a próxima consulta vai ser dali a três meses e que vai ter de levar as análises e exames que fez. Se até para nós isso já é complicado, porque temos de andar sempre a anotar e às tantas estamos perdidos, para alguém que já está mais confuso ou que já não está com tanta capacidade de reter essa informação e de se organizar, é o caos”, resume.

“Às vezes olhamos para isto de uma forma egoísta, que é pensar que se aquela pessoa não vai ao médico isso é um problema dela e para a saúde dela. Mas não é um problema só para ela”, adverte a psicóloga, que chama a atenção para os problemas de saúde pública que daí advêm. “Temos acumuladores de lixo, temos pessoas que se esquecem de pagar a água, a luz e o gás e, como não têm luz em casa, começam a acender velas, em casas que estão cheias de lixo. Começamos a ter pragas de pulgas, percevejos, etc. E isto de repente já não é só um problema daquela pessoa, é um problema de todos nós”, sublinha Maria João Xavier.

Foi neste contexto que surgiu a segunda linha de intervenção da Mais Proximidade - a promoção da saúde e bem-estar. “Não é só o ir de braço dado com a pessoa ao médico”, explica a psicóloga: “Nós vamos buscar a pessoa à casa, garantimos que ela tem tudo o que é necessário para ir ao médico - o cartão de cidadão, os últimos exames e análises, a lista da medicação que faz, os registos da medição da tensão arterial, etc. No hospital, se a pessoa autorizar a nossa entrada - que normalmente autoriza - ouvimos o que o médico diz, escrevemos tudo, marcamos as análises e os exames, telefonamos à pessoa na véspera, acompanhamo-la para fazer as análises e os exames, voltamos a marcar a consulta e acompanhamo-la novamente na consulta.”

Dores Mota, uma vida solitária passada "a semear" o que hoje "está a colher"

“Que dia é hoje, dona Dores?” A pergunta de Maria João Xavier assalta Dores Mota de surpresa, que olha de soslaio para o calendário afixado na parede da sala de estar. “É terça-feira”, responde, suprimindo um sorriso nos lábios, que hoje se esqueceu de colorir com o habitual batom. “Pinto todos os dias, mas hoje não pintei”, diz-nos.

Maria João Xavier dispõe em cima da mesa as caixas de comprimidos enumeradas com os dias da semana. “Vamos lá organizar isto”, diz a psicóloga, dando assim início à visita de rotina a casa de Dores Mota, de 94 anos.

Dores Mota é acompanhada pela Mais Proximidade há 13 anos. Não tem família e vive sozinha num apartamento na Baixa de Lisboa.

Todas as semanas, Maria João Xavier organiza a medicação e faz a medição arterial de Dores Mota, registando os dados num documento a pedido do médico que a acompanha. Depois, vê as cartas que lhe chegaram ao correio. Desta vez, só tem uma, com o endereço de uma empresa de comunicações a avisar para o prazo da renovação do contrato.

Depois do pagamento da renda da casa, sobram apenas cerca de 20 euros nos rendimentos de Dores Mota, que vive sozinha num apartamento na Baixa de Lisboa. Ao contrário de Cristina Franco, as paredes da casa de Dores Mota estão despidas de retratos de família. Um armário de madeira disposto horizontalmente divide a sala de estar e o quarto de Dores Mota.

“O senhorio já me quis tirar da casa”, lamenta. Uma situação que se resolveu com a ajuda da associação Mais Proximidade, que fez "a ponte" com os serviços sociais da Junta de Freguesia, conta Maria João Xavier.

Apesar de não ter família, Dores Mota conta com o apoio dos amigos que foi “cultivando” ao longo da vida. “Ela foi semeando ao longo da vida. E agora está a colher”, completa Maria João Xavier, que acompanha Dores Mota desde que começou a trabalhar na associação. “O nosso receio é que depois se mude para outro sítio onde não vai ter este apoio todo. Este apoio existe porque mora aqui”, diz, referindo-se aos apoios da Junta de Freguesia e dos amigos que lhe são próximos e que lhe oferecem almoços e lanches.

Uma vez organizados os medicamentos e medida a tensão, é o momento de lazer. Dores Mota, que já sabe os passos de cor, pega na caixa do dominó e, com entusiasmo, começa a distribuir as peças pela mesa. "Toda a gente quer jogar comigo. E quase sempre ganho. Às vezes perco, já tenho perdido, mas é muito raro”, conta, com o rasgo de um sorriso nos lábios, qual troça das adversárias. Esta é uma das formas de estimulação cognitiva que a associação procura promover junto dos idosos que acompanha. Tanto que a Mais Proximidade atribuiu uma voluntária só para jogar dominó com Dores Mota pelo menos uma vez por semana.

Ao longo dos últimos dez anos, Maria João Xavier e Dores Mota foram nutrindo uma amizade que em muito se assemelha a um laço familiar. Além das visitas ao domicílio e do acompanhamento ao nível da saúde, fazem passeios pela cidade, celebram aniversários e partem em aventuras, como o dia em que fizeram uma viagem de Hippotrip, em Lisboa. Estes momentos, captados em fotografias impressas em papel, são as únicas recordações que Dores Mota guarda numa gaveta do armário.

"Vou perder todas as pessoas que acompanho"

Apesar desta proximidade, a associação não tem como objetivo substituir as famílias dos 120 idosos que acompanha. “A família está em primeiro lugar. E, sempre que a família pode estar presente, nós nunca a queremos substituir. Aliás, nós queremos fomentar os laços familiares, sempre que a família e a pessoa o queiram”, indica Maria João Xavier.

Mas há casos e casos, ressalva a psicóloga. “Temos famílias presentes e preocupadas. Temos famílias ausentes e que, por algum motivo daquela história de vida, houve uma rutura e as pessoas não se falam ou nem sequer se conhecem. Também temos famílias que eu considero as famílias desafiantes, que são aquelas que colocam mais problemas e obstáculos do que soluções, ou seja, são aquelas em que há situações de violência, seja violência física, psicológica ou verbal”, enumera.

“E depois temos pessoas que pura e simplesmente não têm família nenhuma. Não têm filhos, não têm netos, não têm irmãos nem sobrinhos. Estão sozinhas no mundo”, acrescenta.

Em todo o caso, para Maria João Xavier, apesar de muitos destes idosos tratarem os voluntários e a equipa técnica como filhos, é importante que se estabeleça desde logo uma “distinção” entre o trabalho da associação e o que pode ser visto como uma relação familiar. “Até por motivos de salvaguarda da nossa saúde mental”, indica, salientando que a associação acompanha os idosos até à sua morte.

“É que eu sei que, à partida, se a lei da vida funcionar como deve funcionar, eu vou perder todas as pessoas que acompanho. Ao longo dos anos, ao longo dos meses, aparecem situações inesperadas de pessoas que estavam bem e por algum tipo de saúde morrem de forma inesperada”, afirma.

A equipa técnica da Mais Proximidade está preparada para lidar com estas situações. Afinal, as oito pessoas que ali trabalham têm todas formação nas áreas sociais, da psicologia à gerontologia.

"Apaixonei-me pela população idosa"

Maria João Xavier, de 35 anos, fez o curso de psicologia e ainda concluiu um mestrado em psicologia clínica. Mas foi a área social que a fascinou desde cedo. “Achei sempre que o meu destino seria acompanhar crianças ou adolescentes. Até que, assim que acabei os estágios, vi esta oportunidade de trabalho, candidatei-me e de repente apaixonei-me pela população idosa. Não há outro nome para isso”, diz. Foi nesta faixa etária que a psicóloga encontrou verdadeiros “exemplos de vida”. “Eu fiquei fascinada com a força, a motivação, as histórias de vida com percursos de dor, de sofrimento, mas também de superação, de valorização. Fiquei muito fascinada com a possibilidade de fazer a diferença na vida destas pessoas - quer esta vida dure uma semana, um mês ou anos.”

“E outra coisa que me apaixonou nesta faixa etária e aqui talvez um pouco egoísta, foi começar a olhar para a minha própria velhice”, continua Maria João Xavier. “Quando for idosa, não quero que as pessoas olhem para mim como alguém que só precisa de comer e de mudar a fralda. É verdade que essas são as nossas necessidades básicas, mas nós não somos só isso: somos seres sociais, precisamos de afeto, de criar relações com os outros e de nos valorizarmos a nós próprios.”

É para contrariar esta imagem redutora das necessidades dos idosos que a associação Mais Proximidade trabalha todos os dias, explica. “Eu costumo dizer que quando for mais velha gostava muito de ter uma associação Mais Proximidade perto de mim. Alguém a quem sei que posso telefonar se me sentir insegura, que eu sei que me vai ligar para saber de mim e que me vai ouvir do outro lado. E que se eu tiver um problema de saúde, levam-me ao hospital. Mas se tiver um problema para mudar uma lâmpada, também vou ter resposta.”

Atualmente, a Mais Proximidade atua apenas na Baixa de Lisboa, mas “o sonho” da associação seria “expandir” os seus serviços a outras zonas além de Lisboa. “O sonho é que cada cidade ou cada Junta de Freguesia pudesse ter uma associação Mais Proximidade que iria colmatar as necessidades das outras entidades. Porque as outras entidades não o fazem não porque não querem, mas porque não podem. 

Mas, para já, “isso não é possível por questões financeiras e de sustentabilidade", lamenta Maria João Xavier. É que os serviços da Mais Proximidade são gratuitos, ou seja, os 120 beneficiários da associação “não pagam nada” para serem acompanhados.

Sendo este “um trabalho muito personalizado”, no qual é traçado “um plano de intervenção individualizado” para cada um dos 120 idosos que estão a ser acompanhados, consoante as suas características e necessidades, “não é possível acompanhar 300”, por exemplo, argumenta a psicóloga.

“Se aquilo que nos distingue das outras instituições é oferecermos um serviço personalizado e individualizado, ao aumentarmos o número de pessoas que acompanhamos vamos perder essa identidade. Então preferimos manter os 120 beneficiários e garantir que conseguimos manter a qualidade do serviço. Se era bom acompanhar mais? Claro que sim. Mas para isso precisávamos ter mais pessoas na equipa técnica. E para isso precisávamos ter mais financiamento”, sustenta.

Os serviços da Mais Proximidade são só possíveis com o apoio de parceiros sociais e de empresas, bem como da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior e de fundos para apoios sociais destinados à comunidade sénior. A associação também aceita donativos de associados que queiram contribuir para ajudar o seu trabalho "por mais vidas vividas".

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