Sente-se sozinho neste Natal? Saiba como sair do "círculo vicioso" da solidão, que "dói desesperadamente" mesmo que esteja acompanhado

25 dez 2022, 08:00
Solidão no Natal (NÃO USAR)

A solidão não afeta só os mais idosos. A linha SOS Voz Amiga recebe chamadas de pessoas de todas as idades, até de menores de 16 anos, que contactam a linha de apoio apenas para falar com alguém. Incluindo no Natal

O dia de Natal é, para muitos, o mais aguardado do ano, convidando à reunião da família em ambiente de festa. Mas há quem viva este dia numa solidão profunda, estando só ou acompanhado dos familiares ou amigos. Este sentimento reveste-se de uma tristeza que "dói desesperadamente" e da qual é muito difícil sair. Mas há estratégias que podem ajudar a combater esta sensação, e que passam sobretudo por incomodar e contrariar o "conforto" da solidão.

“A solidão não significa estarmos sós; é a forma como nos sentimos interiormente. Podemos estar rodeados de pessoas e sentirmo-nos sozinhos”, explica à CNN Portugal a psicóloga clínica Margarida Mendes, do hospital Lusíadas.

Este sentimento “agudiza-se” nesta época festiva, marcada por anúncios publicitários com imagens de uma família numerosa rodeada à mesa de Natal, imbuída num ambiente onde impera a felicidade. Não é por acaso que “esta é uma altura em que as linhas de apoio à solidão recebem mais pedidos de ajuda”, destaca a psicóloga, garantindo que o mesmo se verifica nos pedidos para a marcação de consultas.

Manuela Borges trabalha há oito anos como voluntária na linha de SOS Voz Amiga, uma linha de apoio emocional que tem como missão combater a solidão, e confirma que esta é uma altura crítica para quem se sente sozinho, sobretudo as pessoas com idade mais avançada. “Os idosos sentem-se muito sozinhos nesta fase, especialmente os que perderam familiares, como os seus cônjuges, ou cujos filhos moram longe, no estrangeiro. Sentem-se tristes e abandonados”, afirma.

Mas a solidão não afeta só os mais idosos: também os jovens se sentem sozinhos, mesmo que estejam acompanhados da família ou amigos. “A solidão é transversal a todos. Na linha SOS Voz Amiga atendemos muitos jovens, com 12, 13, 16 anos, que nos dizem que se sentem sozinhos, especialmente depois da pandemia. A pandemia veio aumentar exponencialmente a solidão”, vinca a responsável.

E os números mostram isso mesmo: se em 2016 a linha SOS Voz Amiga recebeu 3.700 chamadas, em 2020 foram feitos 10.800 pedidos de ajuda. No ano passado, registaram-se 10.000 chamadas, e a tendência deverá manter-se este ano: de janeiro a novembro, os voluntários desta linha de apoio atenderam 8.300 chamadas.

Os dados estatísticos da SOS Voz Amiga a que a CNN Portugal teve acesso mostram precisamente que este é um problema transversal a todas as faixas etárias: do total de chamadas efetuadas este ano, 1.323 (16,2%) foram feitas por pessoas da faixa etária dos 46-55, enquanto 1.210 (14,8%) foram efetuadas por pessoas da faixa etária dos 16-25, seguindo-se a faixa etária dos 56-65, com 1.150 (14,1%) pedidos de ajuda. A linha de apoio recebeu ainda 156 chamadas de menores de 16 anos, o que corresponde a 1,9% do total de pedidos de ajuda.

Ainda assim, os estudos sugerem que "a prevalência da solidão parece aumentar com a idade", estando relacionada muitas vezes com "as perdas sucessivas" que as pessoas com idade mais avançada vão enfrentando ao longo da vida. "Os filhos saem de casa, surgindo a síndrome do 'ninho vazio', seguindo-se frequentemente a reforma, com a perda do papel laboral, do sentimento de se ser útil e o afastamento da rede social laboral", pode ler-se num estudo sobre a solidão publicado em 2018 na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar.

A solidão afeta pessoas de todas as idades e classes sociais, embora os estudos revelem que a prevalência deste sentimento aumenta ao longo da vida.

"Sabemos coisas que nem as paredes devem saber"

A maioria (31%) das pessoas que contactam a SOS Voz Amiga fazem-no pelo simples desejo de desabafar. “As pessoas têm muitas maneiras de nos abordar: ou dizem que estão em sofrimento, ou que estão sozinhos e querem falar um bocadinho. E nós, mais do que tentar ajudar, deixamos que as pessoas falem, porque, de uma maneira geral, as pessoas querem é ser ouvidas, mandar cá para fora tudo o que lhes vai na alma e provoca sofrimento”, conta Manuela Borges.

E há quem ligue mais do que uma vez, sendo já reconhecidos pela voz. Os voluntários chamam-lhes "os habituais": "São pessoas com problemas mentais de uma certa gravidade, que estão sozinhos ou não, até podem estar acompanhados, mas que têm necessidade de falar com outras pessoas". De acordo com os dados estatísticos da SOS Voz Amiga, 2.747 (36,8%) das pessoas que ligaram para a linha de apoio, fizeram-no pela primeira vez, enquanto 2.611 (36,8%) fazem-no habitualmente.

A linha SOS Voz Amiga conta neste momento com 38 voluntários em atendimento e tem outros 18 em formação. Todos os dias, das 15:30 à 00:30, estes voluntários estão a uma chamada de distância para fazer a diferença na vida de quem sente a solidão como um sufoco, garantindo-lhes o anonimato que serve de motor às palavras.

“Somos duplamente anónimos, porque nem eu sei quem liga para mim, nem quem me liga sabe quem eu sou. Por isso é que muitas vezes sabemos coisas que nem as paredes devem saber. As pessoas sentem-se seguras e desabafam”, nota.

Quando a solidão “dói desesperadamente”

Já todos nos sentimos sozinhos a dada altura da vida e há mesmo quem tenha preferência por passar mais tempo sozinho(a), os chamados introvertidos. Ricardo Moreira Rodrigues, autor do estudo Solidão, Um Fator de Risco, classifica esta preferência como um "isolamento ativo", que não significa que a pessoa se sinta sozinha.

Quer isto dizer que estar sozinho não é sinónimo de solidão, por muito que os conceitos pareçam semelhantes. "A solidão implica uma discrepância entre as preferências pessoais de envolvimento social e a rede social que o indivíduo possui (isolamento passivo)", escreve o autor.

“Estar sozinho é bom. Muitas vezes, precisamos de estar sozinhos, para nos organizarmos, tomarmos conta de nós. O problema é quando começamos a sentirmo-nos vazios, quando a solidão começa a doer. Algumas pessoas transmitem-me em consulta que a solidão dói desesperadamente”, indica a psicóloga Margarida Mendes.

A psicóloga Margarida Mendes descreve a solidão como "um conforto que dói".

Tendo em conta que o isolamento social pode desencadear a solidão, é importante estar atento a alguns fatores de risco que podem aumentar a probabilidade de isolamento, nomeadamente a doença mental grave, doença crónica, mobilidade reduzida, ser cuidador informal, entre outros. 

A solidão não se esgota na dor psicológica - é uma sensação de tal forma avassaladora que acaba por ter consequências a nível do bem-estar físico, como stress e insónias, que provocam invariavelmente outros problemas. “Não nos podemos esquecer que o ser humano precisa de socializar. Somos um ser biopsicossocial, e se alguma destas três partes está em défice, as outras vão sentir automaticamente os seus efeitos”, explica Margarida Mendes.

Os estudos sugerem mesmo que os riscos de mortalidade associados à solidão são comparáveis aos do alcoolismo e tabagismo. O psiquiatra Robert Waldinger liderou um estudo desenvolvido pela universidade de Harvard que concluiu que uma vida social ativa está associada a uma melhor qualidade de vida e a uma vida mais longa. As conclusões do estudo não deixam espaço para dúvidas: “A solidão mata. É tão poderosa como o tabaco ou o álcool”, argumenta Waldinger.

Tal como o álcool e o tabaco, a solidão pode ser, de certa forma, viciante, uma vez que se transforma numa zona de conforto da qual é muito difícil sair. “O problema é que a solidão torna-se confortável. É um conforto que dói”, explica a psicóloga Margarida Mendes.

Por isso, a solução passa por “incomodar” quem está nesta situação. “Temos de contrariar a solidão. É extremamente complicado, porque estamos quase num círculo vicioso, mas temos de combater e contrariar”, insiste a psicóloga clínica.

Como combater o “o círculo vicioso” da solidão

Sendo a solidão um sentimento que se prolonga no tempo, o esforço para o combater deve ser também ele consistente ao longo do ano. Ainda assim, há estratégias que pode colocar em prática para contrariar - ou, pelo menos, aliviar, - esta sensação nesta quadra festiva.

Recordar é viver.

A perda de um familiar ou amigo pode desencadear o sentimento de solidão e, nesse caso, a psicóloga Marta Calado recorda este velho ditado para salientar a importância de manter vivas as memórias de um tempo que já não volta. “Temos de pensar no que essa pessoa teria desejado para nós. A melhor maneira de honrarmos a memória de alguém de quem gostamos é certificarmo-nos de que estamos bem, e isso inclui cultivar rituais comuns do Natal”, diz a psicóloga.

“Há quem mantenha próximo da mesa de Natal uma fotografia da pessoa que partiu, há quem acenda uma vela em memória do familiar ou amigo”, exemplifica.

A psicóloga Margarida Mendes também aconselha a “olhar para o lado positivo da saudade”, isto é, pensar nas memórias que partilhámos com quem partiu como um “privilégio” que tivemos oportunidade de viver.

Sozinho em casa? Sem problema.

Se vai passar o Natal sozinho(a), eis um bom pretexto para cuidar de si próprio(a). A magia do Natal que os anúncios publicitários tanto apregoam não tem de ser sinónimo de uma mesa farta, uma família numerosa e trocas de presentes.

“Pode fazer um almoço ou um Natal especial para si próprio(a), ir a um concerto de Natal, quem for mais religioso pode ir à missa, e quem tiver possibilidades pode sempre viajar nesta altura”, indica a psicóloga Marta Calado.

Além disso, pode participar numa iniciativa solidária, ajudando as pessoas que estão em situação de sem-abrigo, visitando lares, hospitais ou instituições sociais, por exemplo.

Contrariar, contrariar, contrariar.

A palavra-chave para combater a solidão é mesmo contrariar esta sensação e, por isso mesmo, as psicólogas aconselham a que faça um esforço por marcar presença no jantar ou almoço de Natal para o qual foi convidado pela família e amigos. “Se aquelas pessoas nos convidaram é porque gostam de nós. Podemos não o sentir no momento, porque, muitas vezes, o problema da solidão é exatamente esse - sentimo-nos isolados. Mas se fizermos um esforço para ir, percebemos que as pessoas nos dão atenção e gostam de nós”, diz Margarida Mendes.

Fazer um esforço por ir ao jantar e almoço de Natal pode acabar por revelar-se uma boa surpresa. Mas há outras formas de passar o dia de Natal, sozinho ou acompanhado.

Esta palavra-chave serve também para quem quer ajudar quem está nesta situação. Identificar uma pessoa solitária pode ser difícil - já vimos que nem sempre é fácil distinguir entre estar sozinho e estar, efetivamente, só. Mesmo quem sente solidão tem dificuldades em reconhecer este sentimento. Por isso, a psicóloga Marta Calado aponta alguns sinais a que devemos estar atentos em relação a quem nos rodeia:

"Quando a pessoa se sente mais triste, intempestiva, irritada. Quando cai num estado emocional de desesperança, pessimismo, utilidade e baixa autoestima", enumera. 

Ajudar alguém que está nesta situação é tão simples como enviar uma mensagem, convidar para um café ou um passeio, e, acima de tudo, ouvir e dar atenção. Esta é a missão de vários projetos espalhados um pouco por todo o país, como é o caso do projeto Mais Perto, dinamizado por um grupo de jovens da Paróquia dos Olivais Sul, em Lisboa. Em 2018, Eva Alves ajudou a fundar o projeto, que conta agora com 16 voluntários que visitam idosos isolados ou pessoas que, por qualquer razão, não saem de casa. 

Durante cerca de uma hora, os voluntários deste projeto procuram estabelecer uma ligação com quem lhes abre a porta à sua solidão. "É sobretudo conversa, as pessoas precisam e querem ser escutadas. A nossa postura é deixar que seja a pessoa a ditar os temas da conversa. Mas também procuro passar aos voluntários a mensagem de que se devem envolver na conversa, ou seja, que partilhem as suas experiências para que a vida da outra pessoa também enriqueça", conta Eva Alves.

Embora seja informal, este projeto solidário faz toda a diferença num quotidiano que muitas vezes se resume a quatro paredes: "Nota-se que as pessoas se animam quando nos veem. Estas interações têm resultado muito bem, é um cruzamento de experiências que enriquece as duas partes."

Projetos como este serão cada vez mais necessários, a avaliar pelo retrato do país desenhado pelos Censos 2021, que revelam que o número de pessoas que vivem sozinhas aumentou 18,6% na última década, representando, em 2021, praticamente um quarto (24,8%) dos agregados familiares. No seu estudo, Ricardo Moreira Rodrigues argumenta que "a solidão é um problema prevalente e crescente", atribuindo esta tendência ao "envelhecimento populacional, ao aumento das taxas de divórcio, à maior mobilidade geográfica e à diminuição progressiva das dimensões da família".

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