Maior partido do Japão debate hipótese de aceitar armas nucleares no país 

15 mar 2022, 03:03
Depois de deixar a chefia do governo Shinzo Abe lidera a maior fação do PLD

É uma consequência da guerra russa na Ucrânia e da ambiguidade chinesa: o PLD, maior partido do Japão, vai discutir a possibilidade de o país receber mísseis nucleares americanos. É mais um tabu que desaparece: esse debate nunca tinha acontecido

É um dos maiores tabus da política japonesa pós-II Guerra Mundial: desde a derrota nesse conflito, por força das duas bombas nucleares lançadas pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki, a hipótese de o Japão produzir, possuir ou albergar mísseis nucleares sempre esteve fora de questão. É a chamada tripla recusa da opção nuclear: nem produzir, nem ter, nem receber. Isso mudou. O assunto já não é tabu, e vai ser discutido por proposta do maior partido japonês, o PLD (Partido Liberal Democrático), do primeiro-ministro Fumio Kishida.

O tema é tão delicado que coloca o PLD e o chefe do governo em posições antagónicas: ao contrário de uma parte do seu partido, Kishida tem sido muito frontal na oposição a qualquer mudança na política tradicional nipónica de recusa de armas nucleares. O facto de a família Kishida ser de Hiroshima torna-o particularmente vocal na oposição a que o assunto seja, sequer, debatido. Há poucos dias, Kishida considerou “inaceitável” qualquer ideia de o Japão poder receber armas nucleares dos EUA. Mas não parece ter sido capaz de convencer os falcões do seu partido.

O anúncio de que esse debate interno vai mesmo acontecer foi feito nesta segunda-feira por deputados do PLD. A discussão, que no limite poderá levar a uma inversão histórica da posição do Japão sobre armas nucleares, é promovida pela ala mais conservadora do partido, onde se destaca Shinzo Abe, antigo primeiro-ministro.

Abe deixou a chefia do governo, por sua decisão, em setembro de 2020, após um total de nove anos à frente do Governo. Tem o recorde como primeiro-ministro mais tempo em funções na história do Japão, e continua a ser a voz mais influente do PLD, o partido que governou o país quase ininterruptamente desde os anos 50 do século passado. 

Após algum tempo em segundo plano, Abe voltou à primeira linha do debate político, assumindo-se como um falcão em questões de segurança e defesa. Tem sido a voz mais firme ao apontar os perigos que a China representa para a segurança do Japão, e é um dos mais insistentes defensores de uma maior cooperação militar com os Estados Unidos, incluindo a possibilidade de o Japão ter nas suas bases militares mísseis nucleares americanos.

“Discutir a realidade e como a segurança mundial pode ser protegida não devia ser um tabu”, tem dito Abe. A invasão russa da Ucrânia e a sua ameaça de utilização de armas nucleares convenceram os membros mais conservadores do partido a discutir abertamente o tema. Várias vozes do partido têm sido citadas nos media defendendo que se a Ucrânia tivesse mantido a sua capacidade nuclear (da qual abdicou em 1994), a atual invasão russa não aconteceria.

No fim de semana passado, durante uma visita à Malásia, o antigo líder do governo japonês chamou a atenção para os riscos que a agressão da Rússia representa para a ordem internacional, nomeadamente na Ásia-Pacífico. "As tentativas unilaterais de alterar o status quo pela força ou coerção económica representam também uma séria ameaça na Ásia", disse Abe, numa aparente referência às disputas territoriais alimentadas pela China junto de países vizinhos, e à questão de Taiwan. "Devemos erguer uma voz de oposição em uníssono", insistiu.

 

"Guarda-chuva nuclear" americano é suficiente?

Já esta quarta-feira, haverá um debate do PLD sobre segurança nacional, para o qual estão convidados peritos sobre as estratégias de dissuasão nuclear dos EUA e da Europa. Sanae Takaichi, chefe do gabinete de políticas do PLD, partilha com Abe uma visão mais dura sobre segurança e defesa, e já admitiu que em casos excepcionais poderia haver uma excepção ao princípio de "não permitir" que o país receba armas nucleares. E recusa a ideia de linhas vermelhas em relação à introdução de armas nucleares em território japonês. Também o secretário-geral do PLD, Tatsuo Fukuda, defendeu que "nenhum debate [sobre dissuasão nuclear] deve ser evitado".

Desde o final da II Guerra Mundial o Japão tem uma cláusula pacifista da sua Constituição, que o impede de recorrer à guerra como forma de resolução de conflitos, e segue os três princípios de recusa de armas nucleares. Face a três vizinhos com capacidade nuclear - a Rússia, a China e a Coreia do Norte - a dissuasão nuclear tem sido assegurada pelos EUA, o principal aliado militar de Tóquio. Mas nunca os EUA foram autorizados a colocar armas nucleares em território nipónico, apesar da importante presença militar norte-americana no Japão.

Contra a pressão de parte do seu próprio partido, e do seu mais importante antecessor, o primeiro-ministro Kishida continua a rejeitar a possibilidade de o governo iniciar internamente discussões sobre um potencial acordo de partilha nuclear. "Sob a aliança Japão-EUA, a dissuasão alargada está a funcionar", reiterou Kishida numa sessão parlamentar nesta segunda-feira, referindo-se ao “guarda-chuva nuclear” americano que protege o Japão.

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