Mattheus: o filho de Bebeto que aprendeu a bater livres no quintal lá de casa

27 out 2023, 09:54
Mattheus Oliveira (Getty)

Jogou contra o Sporting com uma terrível dor de dentes e acabou por bisar. Na próxima semana, vai regressar a Alvalade, no jogo 200 da carreira, e quer voltar a fazer valer a «Lei do Ex». Médio brasileiro voltou a ser feliz a jogar futebol no Farense, está de volta à Liga e abre ao Maisfutebol um baú cheio de memórias

Quando Mattheus Oliveira reencontrou Ruben Amorim no relvado do Estádio São Luís, no último dia de setembro, o técnico do Sporting não evitou o gracejo em jeito de provocação. «Vai devagar! Conheço o teu pé esquerdo», disse-lhe antes do Farense-Sporting, da jornada 7 da Liga.

Amorim não imaginava o sofrimento com que o seu antigo pupilo ia a jogo nessa noite. Tudo por culpa de um dente do siso, entretanto extraído.

«Na véspera, ao final da tarde, comecei a sentir uma dor de dentes insuportável, liguei para o médico do clube e disse: “Doutor, pelo amor de Deus, me dê alguma coisa que eu possa tomar.” E ele medicou-me, mas, mesmo assim, fui a jogo com muitas dores. A verdade é que toda essa preocupação acabou por ser boa. Deixou-me mais vivo», revela Mattheus Oliveira à conversa com o Maisfutebol.

Aí estava ele, regressado à I Liga pela porta grande. Entrou em campo, fez dois golos de livre e por pouco não fez surpreendeu Antonio Adán com um hat-trick. Superou a dor de dentes e tornou-se numa autêntica dor de cabeça para o seu antigo clube; embora o Sporting, líder do campeonato, tenha acabado por vencer por 3-2, graças a um penálti em cima do minuto 90.

A celebração dos jogadores do Farense, após Mattheus bisar contra o Sporting

No final, o médio brasileiro de 29 anos saiu com um sorriso, apesar do desaire. «É muito treino», soltou na flash interview pós-jogo ao ser questionado sobre a sua técnica para bater livres.

Na verdade, é uma prática de muitos anos, que nos faz recuar aos ensinamentos de um pai que é craque: Bebeto, campeão do mundo em 1994 e sexto maior goleador da história da seleção do Brasil (39 golos em 75 jogos) – apenas atrás de Neymar, Pelé, Ronaldo, Romário e Zico.

Olhos na baliza, pé esquerdo na bola, arco perfeito e… GOLO! Tudo começou no quintal lá de casa.

«O meu pai fez um campinho de futebol sintético na nossa casa, no Rio de Janeiro. Ao ver que eu tinha jeito para bater livres, ele mandou construir uma barreira de madeira. Então, colocava um colete no ângulo da baliza e nós os dois ficávamos ali a bater na bola horas e horas, ele e eu, a tentar acertar. Ele dizia: “Meu filho, o treino é muito importante. Na minha época, eu batia uns 20 ou 30 livres por dia.” Ele via o Zico, ídolo dele, ficar depois dos treinos no Flamengo a bater livres e seguiu o exemplo», revela Mattheus, que nunca mais perdeu o hábito, aprimorado na passagem em Alvalade – que começou em 2017: «Quando estava no Sporting, ficava a marcar livres juntamente com o Bruno Fernandes, o Mathieu, o Acuña… E é por isso que depois no jogo tudo sai naturalmente.»

Um fardo e uma benesse, sob o signo do “7”

Mattheus é um caso raro de alguém que ainda antes de nascer já era famoso. Logo após o parto, a mãe, a antiga jogadora de voleibol Denise Oliveira, entrou em direto para todo o Brasil para dar a boa nova a Bebeto, que estava concentrado com a seleção a dois dias de defrontar os Países Baixos nos quartos de final do Mundial de 1994.

No estúdio do canal SBT, montado nos Estados Unidos para acompanhar a “Copa” [ver vídeo], o craque foi desafiado a marcar naquela que viria a tornar-se numa caminhada triunfal do Brasil até à conquista do “Tetra”.

Bebeto não só fez o golo, contornando o guardião neerlandês Ed de Goey, como popularizou um dos festejos mais icónicos da história do futebol mundial, balançando as mãos, como que a embalar o recém-nascido, ladeado por Romário e Mazinho.

Quase três décadas depois, os adeptos não esquecem aquele gesto, conta-nos o médio do Farense: «Se eu estiver com o meu pai, as pessoas vêm ter connosco e pedem para embalarmos juntos e tiram fotos, fazem vídeos… Em Portugal, no Brasil, nos Estados Unidos… Onde vamos, é assim. Isso ficou marcado. E então dizem: “Já não é mais um neném…”»

A icónica celebração de Bebeto no Mundial de 1994, após o nascimento de Mattheus

Esse gesto é um símbolo de como ser filho de uma lenda do futebol mundial é uma benesse, mas também pode ser um fardo. Mattheus dá «graças a Deus» pelo pai que tem, mas recorda os obstáculos psicológicos que teve de ultrapassar.

«Qualquer dúvida sobre futebol ou ajuda que eu precise, eu sei que ele está aqui. Depois dos jogos, conversamos muito. O contra é que há pessoas muito maldosas. Imagina para um miúdo de 10, 11 anos ouvir que estás em determinado patamar só porque és filho do Bebeto. Tive de passar por muitas batalhas mentais na minha vida, porque tinha de provar mais do que qualquer outro que eu merecia lá estar. Esse desafio tornou-me homem mais cedo.»

O legado paterno nunca o pressionou a ser futebolista, garante. Foi assim até quando em criança foi “incógnito” fazer testes para ficar na equipa de futsal do Flamengo, onde o pai virou ídolo nas décadas de 1980 e 1990.

Mattheus na Disneyland Paris com os pais, Bebeto e Denise, e a irmã Stéphannie

«O meu pai não foi comigo, para que as pessoas não falassem que eu tinha ficado por ser filho do Bebeto. Mesmo depois, ele ficava escondido a assistir aos meus jogos, nem eu conseguia ver onde ele estava. Só passado dois ou três meses é que o descobriram lá, por acaso, e ele acabou por contar. Como ele sempre diz, “eu quero que o meu filho caminhe pelas próprias pernas”», recorda o jogador, hoje já tarimbado sobre o tema: «Tenho a cabeça formada, não ligo mais para isso, mas houve um tempo em que foi difícil.»

Mattheus ao serviço do Flamengo, clube onde se formou e que representou até 2014

A consciência de «ter um ídolo dentro de casa» surgiu de forma plena já na adolescência.

«Sempre via as pessoas a parar o meu pai para pedirem autógrafos e a elogiá-lo… Eu ficava “Pôxa, o meu pai deve ter sido um grande jogador”, mas, só mais tarde, com uns 14, 15 anos tive noção da dimensão que ele teve», diz Mattheus, cujo nome não foi escolhido como homenagem ao médio alemão Lothar Mathäus, como aparece replicado até na Wikipédia: «Apesar de ele ser um craque, não foi por isso. Os meus pais escolheram o meu nome por significar “presente de Deus”.»

Mattheus a jogar pelos sub-20 do Brasil, em 2013, contra o Uruguai

Tinha de ter uma explicação significativa, para uma família que valoriza todos os sinais, como os números: em particular ao 7, da camisola com que Bebeto se celebrizou no “escrete” e que acabou por acompanhar a sua descendência:

«Quando estava na formação do Flamengo, escolhi o número 43 porque a soma dava 7. Lá na casa dos meus pais é tudo 7. Aliás, eu nasci no dia 7 do 7 num quarto que era o número 7. As minhas filhas nasceram uma no dia 27 e outra a 7… E nada foi planeado!»

Da aposta de Jesus à felicidade reencontrada em Faro

Em Faro, Mattheus é agora o camisola 27. No Algarve, encontrou um lugar para ser feliz. Desde que deixou o Mafra, a meio da época passada, foi determinante para a subida da equipa de José Mota. Agora, de regresso à I Liga, é titular indiscutível e alcançou o seu melhor registo da carreira neste início de época, com quatro golos e uma assistência.

Depois da formação e da estreia pela equipa principal do Flamengo, para trás ficaram Estoril, Vitória de Guimarães, Sporting e um breve regresso ao Brasil para representar o Coritiba.

«Sei da minha força mental e que, estando bem, as coisas saem naturalmente. Precisava de voltar a ser feliz naquilo que eu mais gosto de fazer. Tinha perdido um pouco essa alegria de jogar futebol. Vir para o Farense foi um passo importante para voltar a afirmar-me. Mostrei capacidade para dar a volta por cima e as coisas têm acontecido até melhor do que eu esperava», confessa, depois de ter percorrido Portugal de Norte a Sul.

Mattheus e Nico González, filho de Fran, ex-colega de Bebeto no Deportivo da Corunha

Na verdade, Mattheus já era português desde que, aos 15 anos, obteve a dupla nacionalidade.

«Os meus bisavós são de Trás-os-Montes, pelo que, por conselho do meu pai, tirei o passaporte português quando ainda jogava nas seleções jovens do Brasil. Acabei por vir cá parar bem mais tarde, mas amo Portugal! Temos uma boa qualidade de vida, segurança, aqui come-se muito bem. Bom peixe, bom marisco… Além do mais, a minha segunda filha nasceu em Lisboa.»

A história de Mattheus em Portugal já teve outros capítulos. Entrou pela porta do Estoril, em 2015, vindo do Flamengo, e acabou por se destacar num jogo na Luz frente ao Benfica (em abril de 2017). No dia seguinte, tinha o Sporting a bater-lhe à porta. Um pedido de Jorge Jesus.

Mattheus ao serviço do Sporting, ao qual esteve vinculado entre 2017 e 2021

«Já havia conversas com os meus empresários, mas aquele jogo contra o Benfica acelerou tudo. Fui um pedido de Jorge Jesus. Agradeço-lhe por me ter dado a oportunidade de estar num grande, de jogar na Liga dos Campeões e viver um sonho de criança. Só de ouvir aquele hino… já arrepia. É o melhor treinador com quem eu já trabalhei. Taticamente, ele é fora de série. Treinávamos a linha defensiva e, se não estivesse perfeito, estaríamos ali duas ou três horas até ficar do jeito que ele queria. Mas depois, no jogo, fica fácil, porque já sabemos exatamente o que fazer. Ele cobra o máximo de cada jogador, é exigente ao extremo, mas isso faz a diferença.»

Luís Castro, Ruben Amorim e a «Lei do Ex»

Mattheus guarda também boas memórias de Ruben Amorim, apesar de ter convivido poucos meses com ele antes de sair em definitivo do Sporting, em agosto de 2021, e também de Luís Castro, por quem foi treinado no Vitória de Guimarães, e que acabou por se destacar nesta temporada ao levar à liderança do Brasileirão o Botafogo, onde joga o seu cunhado: o ex-FC Porto e Estoril Carlos Eduardo.

«Torço para que o Botafogo seja campeão brasileiro esse ano. Acho que vai ser. É uma equipa que está muito bem entrosada, com intensidade, dá gosto de ver os jogos deles. O Carlos está lá, é da minha família. Quem amamos, queremos que se dê bem.»

De olhos no Brasil, mas com os pés bem assentes em Portugal, Mattheus tem outra oportunidade para reencontrar o Sporting, na próxima quinta-feira, 2 de novembro. Num jogo que tem tudo para ser especial, até porque será o número 200 da sua carreira profissional.

Médio brasileiro em ação contra a Roma, de José Mourinho

Depois do cartão de visita no São Luís, para a Liga, regressa a Alvalade desde a sua saída, num jogo para a fase de grupos da Taça da Liga.

Será também um bom momento para voltar a fazer prevalecer a chamada «Lei do Ex»?

«Não falha comigo! Tive esta agora contra o Sporting, com os dois golos de livre com esse episódio da dor de dentes, mas também me aconteceu com o Flamengo [em novembro de 2020], quando estava no Curitiba. Estive uma semana com gripe e sem treinar, mesmo assim o treinador levou-me para o jogo à última hora. Entrei a dez minutos do fim, toquei na bola duas vezes e faço um golo.»

Aquele garoto bem-educado pelos pais virou um homem de fé e de princípios. Mattheus marcou ao “seu” Flamengo e não festejou. Hoje, recorda com o tal sorriso as vezes em que foi protagonista da tal ironia em que o futebol é tantas vezes fértil.

«Foi muito engraçado. Estive das duas vezes mal, cheio de dores, e acabei por marcar às minhas antigas equipas.»

Agora, ele acredita que não há duas sem três. Pode ser que aconteça já na próxima semana, em Alvalade: «Tenho esperança. A superação tem destas coisas.»

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