A passagem de testemunho está efetivada, de António Costa para Pedro Nuno Santos. Praticamente nove anos depois, revisitámos a moção que o ainda primeiro-ministro levou ao Congresso do PS que o confirmou como secretário-geral. E, área a área, comparámos com a visão para o país que tem o sucessor
Sobre cenários de governação, tanto para António Costa (AC) como para Pedro Nuno Santos (PNS), a esquerda sempre pareceu o território mais confortável para alianças. Em 2014, num período pós-troika, Costa desdobrava-se em críticas ao “retrocesso social” da governação PSD/CDS-PP e insistia que “a esquerda que no Parlamento se senta à esquerda do PS não pode voltar a enganar-se no adversário”.
Havia que “transformar a ‘maioria do contra’ numa maioria de Governo”. É nessa direção que olha também agora Pedro Nuno Santos que, durante a corrida à liderança do PS, foi insistindo na necessidade de obter o “melhor resultado possível”, mas sem nunca descartar uma reedição da geringonça. “Foi um sucesso”, “não fechamos portas”, tem repetido.
Passaram os anos. Se Costa avisava para os riscos de “derivas populistas”, Pedro Nuno Santos aponta na sua moção para os “sucessos eleitorais da extrema-direita populista em vários pontos da Europa”. Ambos insistem também nas ideias da regionalização e da necessidade de uma integração plena na Europa.
Em 2014, Costa foca-se na necessidade de um plano de recuperação pós-troika, com uma estratégia diferente da direita. Daí que, na moção apresentada nesse ano, não tenham surgido referências que preocupam hoje os portugueses como a habitação ou as alterações climáticas – já referenciadas por Pedro Nuno Santos.
Vejamos área a área como se aproximam e distanciam o oitavo e o nono secretários-gerais do PS.
Impostos
AC: Em 2014, a moção de António Costa não trazia referências diretas sobre impostos a alterar. Antes do congresso que o confirmaria, haveria de tornar clara a vontade de eliminar a sobretaxa do IRS. O imposto tornou-se uma bandeira de Costa, que chegou a prometer uma redução de dois mil milhões de euros até 2027.
PNS: No que respeita a impostos, Pedro Nuno Santos tem outras prioridades: a moção lembra que “quase metade dos portugueses não aufere rendimentos suficientes para pagar IRS, pelo que, quando baixamos este imposto, estes contribuintes em nada beneficiam dessa redução”. Por isso, a aposta vai para o IVA, “o imposto que praticamente nenhum contribuinte consegue evitar”.
Pensões
AC: Em 2014, Costa acenava com a promessa de “estabilidade nas prestações sociais já atribuídas, particularmente nas pensões de velhice de invalidez” e com regras mais simples de atribuição das prestações sociais. Uma das prioridades na altura era o reforço do Complemento Solidário para Idosos. No contexto da altura, e dada a necessidade de fazer entrar mais jovens no mercado de trabalho, admitia a possibilidade não de reformas antecipadas, mas antes de um “programa de reformas a tempo parcial sob a condição de contratação de jovens desempregados”, financiado por fundos europeus para minimizar “os custos para a sustentabilidade da Segurança Social e garantindo a não penalização das pensões”.
PNS: Tal como há praticamente nove anos, insiste-se no reforço da Segurança Social, com Pedro Nuno Santos a colocar o foco na necessidade de “avaliar a taxa de formação das pensões das pessoas que estiveram desempregadas ou que, em virtude da intermitência ou precariedade, veem a estimativa das suas pensões degradada”. Admite-se que, “em complemento à pensão em sistema de repartição, todos os trabalhadores devem poder beneficiar de um patamar de proteção que melhore os seus rendimentos através de um mecanismo de poupança apoiado pelo Estado”. E que será necessário rever os critérios de acesso ao Complemento Solidário para Idosos.
Salários e política laboral
AC: Costa era claro no valor que desejava para o salário mínimo nacional do ano seguinte: 522 euros em 2015, para começar a “garantir a revalorização do salário mínimo nacional”. Admitia também combater a precariedade com uma diferenciação da Taxa Social Única (TSU) para quem optasse por esse tipo de vínculos. À altura, insistia-se muito na ideia de “rejeitar um modelo de desenvolvimento assente nos baixos salários”, para contrastar com a governação PSD/CDS-PP. Antes de ser primeiro-ministro, Costa já apontava a concertação social como “palco de mobilização social”, com uma preocupação mais vincada no emprego jovem. Os anos de governação confirmaram estas ideias.
PNS: A moção do novo líder do PS defende a subida dos salários como parte de um esforço de melhoria da competitividade da economia portuguesa. No que respeita ao salário mínimo, defende o seu aumento “numa perspetiva plurianual”, bem como o “fortalecimento da negociação coletiva e o investimento em qualificação”. Pedro Nuno Santos dá também um sinal aos patrões, dizendo que “é preciso evitar a tentação de fazer alterações sucessivas à legislação” do trabalho. Promete-se a avaliar novas realidades, como a implementação de creches nos locais de trabalho e a redução da semana de trabalho para quatro dias.
Função Pública
AC: Por vários momentos, a moção de António Costa aponta a modernização da administração pública como determinante para uma “economia mais competitiva”. “Um Estado mais simples e inovador, para uma cidadania mais forte”, “que use a tecnologia como instrumento de transformação”, lê-se. Na altura, António Costa defendia ser “preciso um Estado que valorize os seus trabalhadores, cuide da sua formação e das suas expectativas”. Admitia acabar com os obstáculos à progressão nas carreiras. Mas, em fim de mandato, a realidade diz outra coisa, com médicos e professores a protagonizar os braços de ferro mais duros.
PNS: Em contraste, o novo secretário-geral do PS é claro ao falar na “recuperação faseada do tempo de serviço congelado”. Não faz uma referência exclusiva aos professores, aplicando-se por isso a medida a toda a Função Pública. E mais à frente no documento clarifica: “voltar a negociar com as associações representantes dos professores as regras relativas ao tempo de serviço”. “Atrair para a Administração Pública pessoas qualificadas passa pela valorização das carreiras, das condições de trabalho e dos regimes funcionais e remuneratórios”, justifica. A moção define a prioridade de “modernizar e simplificar” os serviços do Estado com recurso a “serviços partilhados e à própria tecnologia.
Empresas
AC: “Com um longo caminho de recuperação a fazer em relação aos níveis de desenvolvimento tecnológico dos países mais ricos da zona euro, o Estado tem de ser mais do que um facilitador da iniciativa empresarial privada”, defendia António Costa em 2014. O Estado era então posicionado como “promotor” de investimentos, contribuindo para “incrementar fatores de competitividade empresarial efetivos, que passam, por exemplo, pela estabilidade fiscal, laboral, legislativa e regulatória” bem como por um “ambiente de negócios desburocratizado e com custos de contexto reduzidos”. Na altura, a recuperação era vista como possível através da “criação de emprego duradouro e sustentável”.
PNS: O novo líder do PS argumenta que o Estado também deve ser “promotor do investimento em setores inovadores”. Para Pedro Nuno Santos, o país “precisa de crescer a um ritmo mais acelerado” e de “olhar para a qualidade do crescimento económico”, evitando a “armadilha dos países de rendimento intermédio”. Defende que o apoio ao tecido empresarial deve passar pelo investimento em infraestruturas, bem como por “reduções de tributação ou benefícios fiscais dirigidos a objetivos de política económica e não usadas de forma transversal”.
Contas certas
AC: No pós-troika, António Costa dizia encontrar uma economia “bloqueada entre o cumprimento dos compromissos assumidos em matéria orçamental, a necessidade de reduzir os custos da dívida e a inexistência de condições para assegurar maiores níveis de crescimento e de desenvolvimento”. Costa defendia um “novo equilíbrio entre um sério cumprimento dos nossos compromissos externos” e uma “renovada capacidade de dar resposta às necessidades de desenvolvimento da nossa sociedade”.
PNS: Praticamente nove anos depois, Pedro Nuno Santos também defende “um novo equilíbrio entre a redução da dívida e o investimento público e o estímulo à economia”. Ou seja, a ideia de que ter contas certas e reduzir a dívida não pode ser uma “prioridade isolada” comprometendo outras metas, como o “investimento público” ou a “transformação do Estado”. “Uma política de excedentes orçamentais acelera a redução da dívida pública, mas pode reduzir excessivamente o espaço orçamental de que o Governo precisa para fazer o investimento público em infraestruturas e em serviços públicos e para apoiar as famílias e as empresas”, argumenta. Assim, é defendido uma “discussão” sobre o “ritmo dessa descida” da dívida pública.
Justiça
AC: O ainda primeiro-ministro, ainda antes de o ser, encarava a justiça como uma “condição essencial” de um Estado mais democrático. De uma forma breve, argumentava com a “garantia da igualdade de todos perante a lei, da transparência e legalidade no funcionamento da administração, na prevenção e na repressão da corrupção, sendo necessário restabelecer elevados níveis de confiança no sistema de justiça”.
PNS: Eficiente, transparente, acessível. São os três adjetivos de Pedro Nuno Santos para a área da justiça, tirando partido das vantagens da tecnologia. Defende-se a “interoperabilidade entre sistemas informáticos”, a aposta em mecanismos de conciliação e de arbitragem, um programa nacional de expansão dos julgados de paz. Sugere-se que seja revisto o “modelo de acesso ao Direito e à Justiça”, inclusivamente no que respeita a custas. Pedro Nuno Santos quer também que se pondere “a introdução do direito de queixa constitucional (ou recurso de amparo), de modo que as pessoas e empresas possam aceder diretamente ao Tribunal Constitucional”. Fala-se ainda numa valorização das carreiras dos profissionais de justiça.
Saúde
AC: Em 2014, a moção de António Costa referia apenas que “o reforço da coesão passa também por serviços públicos de educação e saúde de qualidade”. Dizia-se que “todos os portugueses” deveriam ter acesso a “cuidados de saúde de qualidade, reduzindo o peso da saúde nos orçamentos das famílias”. Praticamente nove anos depois, o SNS é uma das heranças mais frágeis que deixa.
PNS: A candidatura argumenta que é preciso “defender e consolidar o SNS”, concluindo as reformas que estão em curso. Essa melhoria, diz, passa por “valorizar os profissionais da saúde” e por “dotar progressivamente os centros de saúde e unidades de saúde familiar de mais meios de diagnóstico”. Pedro Nuno Santos quer também “clarificar a relação com os privados”.