Com 50 anos, professora vive num quarto para poder dar aulas. Mas não é caso único

Agência Lusa , DCT
10 set 2023, 08:17
A professora do 1º ciclo da Escola Alice Vieira, na Buraca, Amadora, Ana Rita Pinto, que já é "avó" e vive num quarto porque não tem dinheiro para viver numa casa (António Cotrim/Lusa)

A Lusa falou com quatro professoras do norte que, durante a semana, vivem longe das famílias, em quartos arrendados na região de Lisboa.

O recomeço das aulas significa para muitos professores afastarem-se das famílias e viverem em condições precárias, como Ana Rita que já é avó e vive sozinha num quarto alugado na Buraca, na Amadora.

Ana Rita é professora do 1.º ciclo e no ano passado entrou finalmente para os quadros. Aos 49 anos ficou numa escola do bairro da Buraca, na Amadora, a 300 quilómetros de casa.

Natural de Viseu, tentou dar aulas na região, perto da família, mas as dívidas aumentavam de dia para dia. “Num ano tive um horário de sete horas por semana e, no seguinte, um horário de cinco horas, sendo que recebia menos de cinco euros à hora”, recordou, contando que tentou arranjar trabalhos em part-time mas, no final do mês, levava para casa cerca de 300 euros.

A solução foi aceitar uma vaga onde mais faltam professores: nas escolas do sul do país. Ana Rita já tinha estado sete anos na zona de Lisboa e um ano em Portimão, sempre em quartos arrendados.

“Costumo dizer que há estudantes da faculdade que estão melhores do que eu. Acho que já merecia, eu e muitos outros, um bocadinho mais de respeito”, lamentou a docente, sublinhando que teve de deixar o filho com os avós em Viseu para poder continuar a dar aulas.

Ainda tentou, sem sucesso, levar o filho: “Disse-lhe para vir, mesmo tendo de ficar num quarto improvisado, mas não quis, já estava a ficar crescido”, recordou a mãe, que vive agora com o peso de ter visto o filho abandonar os estudos antes do tempo.

Ana vive num quarto no bairro da Buraca, na Amadora, e prepara as aulas na cozinha ou no quarto, porque “a casa não tem sala”.

“Sujeitei-me a muita coisa porque sempre acreditei que um dia teria alguma compensação, mas o tempo passa e eu ponho-me a olhar para trás e a questionar: Quando é que isto vai acabar?”, desabafou.

Para trás ficaram 18 escolas de norte a sul do país e “14 quartos aqui e ali”.

“Já cheguei a acordar em quartos e perguntar-me: ´Onde é que eu estou?! Alto, lembras-te que alugaste um quarto ontem´. É um desgaste enorme”, contou.

Além da falta de condições, Ana Rita sente-se muitas vezes sozinha: “Às vezes, é chegar a casa, ao quarto e estamos ali na nossa solidão. Ao telefone, vamos acompanhando a nossa família e depois é a correria de fim-de-semana”.

Todas as semanas faz, religiosamente, 300 quilómetros para estar com os pais, o filho e os netos.

Nessas viagens, quase sempre de transportes públicos ou em boleias partilhadas, conhece histórias “ainda piores”.

“Tenho colegas com crianças pequenas que choram e têm pesadelos, porque a mãe vai embora e elas ficam com o pai ou com os avós. Quantos anos é que as pessoas vão andar nisto?”, questionou.

Elisabete Rodrigues desistiu este ano, depois de dois anos a dar aulas em Lisboa, longe dos dois filhos, agora com quatro e 14 anos.

“Coloquei a família em primeiro lugar e abandonei a profissão”, contou à Lusa a professora de Matemática do 3.º ciclo e ensino secundário, uma das disciplinas com mais falta de docentes.

Elisabete viveu num quarto alugado no bairro do Lumiar, em Lisboa, a 400 quilómetros de casa, em Viana do Castelo.

Também de Viana do Castelo, Carla Rodrigues, 46 anos e 20 de experiência profissional, conseguiu ficar este ano perto de casa, no Agrupamento de Escolas de Monserrate, depois de quatro anos numa escola em Agualva-Cacém, em Lisboa.

Também esteve separada dos filhos – agora com 18 e 12 anos - e também viveu em quartos, já que o ordenado de cerca de 1.100 euros não lhe permitia pagar uma renda superior a 350 euros.

Arrendar um apartamento para poder estar com a família é financeiramente inviável, dizem as professoras com quem a Lusa falou.

Quem começa por procurar apartamentos, depressa descobre que “o céu é o limite”, contou à Lusa Vasco Barata, da Chão das Lutas – Associação pelo Direito à Habitação, lembrando que um T0 pode custar 900 euros e um T3 passar os dois mil euros. À associação chegam cada vez mais relatos de professores desesperados.

O representante da Associação Chão das Lutas, Vasco Barata, que defende habitação para todos (António Cotrim/Lusa)

Professores obrigados a viver em quartos alugados "em situações indignas" 

Há cada vez mais professores a dividirem apartamentos e até quartos, segundo a associação Chão das Lutas, que tem ouvido relatos de docentes que se queixam de “transtornos familiares” e de viverem "situações indignas".

Quem começa por procurar um apartamento para arrendar, depressa descobre que “o céu é o limite” no que toca aos preços pedidos pelos proprietários, contou à Lusa Vasco Barata, da Chão das Lutas – Associação pelo Direito à Habitação.

“É muito comum vermos rendas de T0 a 900 euros e até um T3 por dois mil e tal euros. É a loucura em que vivemos, em que a renda média pode ser quase o dobro do salário mínimo ou o triplo, ou seja, é uma situação verdadeiramente insustentável”, criticou o advogado, dando exemplos de preços da zona de Lisboa.

O aumento das rendas levou a que a habitação passasse a ser um problema de cada vez mais pessoas, nomeadamente professores e médicos, que agora recorrem à associação “para pedir ajuda ou apenas desabafar”.

Os ativistas, juristas e advogados da associação têm ouvido muitos relatos de professores desesperados. Vasco Barata diz que o problema não é de agora e que é cada vez mais usual ver docentes a dividir casa e até quarto.

“Veem-se com graves problemas por falta de salário que lhes permita pagar as rendas. Com o aumento de rendas, os professores são obrigados a viver em situações indignas ou que lhes causam grande transtorno familiar”, alertou.

A Lusa falou com quatro professoras do norte que, durante a semana, vivem longe das famílias, em quartos arrendados na região de Lisboa.

Uma das docentes, que dava aulas de Matemática numa escola secundária de Lisboa, desistiu este ano da carreira e voltou para Viana do Castelo, para junto do marido e dos dois filhos.

“Ter de partilhar quarto numa fase da vida em que já deveriam ter autonomia é muito violento. Estamos a falar de pessoas com 50 ou até mais anos, não estamos a falar de um início de carreira, que já de si não é desejável”, lamentou Vasco Barata.

As professoras defenderam que se conseguissem arrendar um apartamento, seria mais fácil manter a família junta. Os sindicatos de professores e diretores escolares têm reivindicado um subsídio para os deslocados.

Em alternativa, o Ministério da Educação anunciou este ano a disponibilização de 29 apartamentos a preços acessíveis nas zonas de Lisboa e Portimão, uma oferta que os professores dizem ficar aquém das necessidades.

É na zona e Lisboa e do Algarve que se nota mais a falta de professores e essas são as zonas onde as rendas são mais altas, lembrou Vasco Barata.

Lisboa é atualmente uma das cidades com as rendas mais elevadas do mundo, mas Portugal aparece na cauda da Europa no que toca a salários, lembrou o advogado.

A Lusa fez uma pesquisa esta semana em ‘sites’ na internet e os únicos quartos que encontrou na zona de Lisboa abaixo de 400 euros eram partilhados.

Em São Marcos, em Sintra, por exemplo, o senhorio oferecia uma cama por 200 euros, mas num quarto com dois beliches.

Na Pontinha, havia uma “vaga de cama em quarto partilhado para homens” por 220 euros, sendo que o quarto tinha cinco camas: dois beliches e uma cama individual.

Por outro lado, a Lusa encontrou um quarto com casa de banho privativa e zona de estudo em São Domingos de Rana, Cascais, por dois mil euros.

No centro de Lisboa, no Bairro de São Miguel, havia um apartamento T4 com quartos para alugar: A partir de 550 euros em quarto duplo e 800 euros para ficarem sozinhos.

Aos preços dos quartos, é preciso somar as contas do gás, água, eletricidade, conta de supermercado e despesas inesperadas, como uma avaria do carro.

A professora Ana Rita, 50 anos, contou à Lusa o dia em que teve de levar à oficina o seu “carro velhinho, que usava para dar aulas em várias escolas”.

“Eu ganhava muito mal e quando o mecânico me apresentou a fatura, que era praticamente o meu ordenado, até lágrimas me caíram”, recordou a professora do 1.º ciclo, que ficou sem dinheiro para pagar os 400 euros do quarto alugado no bairro de Benfica.

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