Há cabanas de praia a receber turistas por centenas de euros por noite. O Estado sabe e admite que estão ilegais (mas não deixa de receber os impostos)

2 abr 2023, 08:00

O Estado decidiu há largos anos que os palheiros da Costa de Caparica seriam para demolir, tendo deixado de emitir licenças. Mas isso não impediu que as estruturas, localizadas em terreno público, fossem mudando de donos, com recurso à “papelada antiga”. Enquanto o futuro não se decide, muitas das cabanas foram recuperadas. E ganharam estilo e fama, ao ponto de haver turistas a pagar 300 a 650 euros por cada noite nelas

Praia da Saúde, Costa de Caparica. Ao percorrer o areal, não há como não cruzar o olhar com elas. Coloridas, de madeira, assentes na areia. Uma com redes, outra com um cão de louça, cadeiras para descanso. E turistas. Muitos turistas que nelas ficam alojados.

Em época alta, cada noite num destes alojamentos pode custar entre 300 e 650 euros. Basta navegar pelas plataformas de alojamento, como a Airbnb, para confirmá-lo. Na generalidade dos casos, estão ocupadas com meses e meses de antecedência. Afinal, combinam o que há de melhor nas férias: uma vida simples, cheia de sol e com o mar a poucos passos. Algumas estão mesmo destacadas entre as melhores da Europa.

E, à primeira vista, não haveria aqui qualquer problema. A não ser um pormenor: é que estes palheiros não estão licenciados para acolher turistas. Não por falta de vontade dos proprietários, mas antes pelo vazio em que o Estado português tem deixado estas construções ao longo da última década.

Anúncios disponíveis na plataforma Airbnb

A origem do problema

Voltemos atrás no tempo. Estas construções, dispostas ao longo do areal da Costa de Caparica, serviam como apoio à atividade dos pescadores ou então como casas de veraneio. Era atribuída uma licença de utilização aos pescadores, que foi sendo passada de geração, e renovada pelas autoridades.

Só que, neste novo milénio, essas licenças deixaram de ser renovadas, uma vez que o programa de reabilitação daquela orla costeira, entregue à empresa Costa Pólis, previa a demolição daquelas estruturas. Seguiu-se muita contestação, alguns estudos para avaliar a natureza patrimonial e cultural dos palheiros. E, volvida mais de uma década, continuam no areal.

Muitos dos palheiros têm mudado de donos ao longo dos últimos anos, com destaque para os compradores franceses. Um dos proprietários mais recentes será um dos mais influentes artistas portugueses de arte urbana, segundo relatos dos vizinhos. Os negócios são feitos com base na papelada antiga. E com o aviso de que, a qualquer momento, a estrutura pode ser demolida ou forçada a mudar de lugar.

“A maioria das pessoas que vão comprando as casas, vão passando os papéis de umas mãos para as outras. Papelada antiga. Quando comprei a minha, já não havia licença. Era uma ruína. Tinha a perfeita noção de que era perigoso e difícil fazer obras. Foi o senhor que me vendeu a casa que fez as obras”, conta um dos proprietários.

Isto porque estas construções se encontram em Domínio Público Marítimo (DPM). Ou seja, os proprietários são apenas donos das estruturas de madeira, porque o terreno é do Estado.

“Foram extintas as concessões e os direitos de uso privativo de bens dominiais nas zonas de intervenção do Programa Polis, desafetando esses mesmos bens domínio público e atribuindo às sociedades gestoras o dever de indemnizar e compensar as diversas pessoas coletivas públicas pelos prejuízos sofridos com a desafetação”, concretiza a Câmara Municipal de Almada, a quem cabe a competência da gestão do DPM desde 2019.

Imagens aéreas mostram proximidade das estruturas ao mar

Uma questão de licenças

Na plataforma Airbnb, quando se consultam os anúncios destes palheiros, no campo relativo ao número de licença aparece a palavra “isento”. Os proprietários ouvidos pela CNN Portugal/TVI referem um regime excecional para este tipo de construções.

Mas a lei portuguesa (e a associação que representa o alojamento local, a ALEP) diz outra coisa: só é possível receber turistas em alojamento local num espaço devidamente licenciado. As regras definem que, na maioria dos municípios, incluindo Almada, é necessária uma licença de habitação válida – algo que não acontece nestes palheiros.

A ALEP chegou a negociar com o Governo no sentido de integrar novas formas de alojamento na lei – como as cabanas, as tendas, as caravanas ou os barcos. Mas esses esforços, conta o presidente Eduardo Miranda, acabaram por cair por terra com o novo pacote do Governo para a habitação, em que são proibidas novas licenças de alojamento local.

“Nós nos últimos anos tínhamos falado em acompanhar aquilo que é a evolução da oferta e tentar encaixar isto na regulamentação. Mas, na verdade, neste momento, é algo secundário, porque o Governo tomou a decisão de matar o alojamento local”, conta.

Cabanas têm vindo a ser alvo de obras de remodelação

Câmara não tem registos, Estado receberá impostos

“A Câmara Municipal de Almada informa que não detém qualquer registo de licenciamento destas estruturas – quer no Departamento de Administração Urbanística, quer na Divisão do Turismo. Tendo em conta que se tratam de estruturas implantadas sobre o DPM, com previsão de demolição pelos instrumentos de gestão territorial aplicáveis, não reúnem condições para serem registadas como Alojamento Local”, responde a autarquia.

Na mesma resposta, a CMA clarifica que promoveu uma ação de vistoria ao local, “com a participação de vários Serviços Municipais, tendo em conta as várias denúncias que nos chegaram destas estruturas, nomeadamente da APA”.

Mas certo é que, depois desta resposta, a equipa de reportagem da TVI/CNN Portugal confirmou que havia turistas a fazer “check-in” e até mesmo uma equipa de filmagem a rodar um anúncio em palheiros que têm anúncios ativos na Airbnb – um dos muitos que têm acontecido neste local.

Ainda assim, reconhecendo que os seus espaços não estão licenciados como manda a lei, estes proprietários asseguram que há quem pague impostos ao Estado sobre a atividade de alojamento de turistas. A fazer fé nesta versão, o Estado estará a lucrar com uma situação que ele próprio considera ilegal.

Mas é possível isto acontecer: o Estado receber impostos sobre algo que está ilegal? Sim, responde a advogada Joana Maldonado Reis. “A partir do momento em que eu consiga qualificar um determinado rendimento, em sede de IRS ou IRC, e se esse rendimento estiver enquadrado, o Estado pode tributar efetivamente, independentemente de a atividade esteja ou não licenciada. O licenciamento é um requisito para o regular funcionamento da atividade mas não é um requisito para a tributação da mesma”, explica.

Mas o Estado, acrescenta a advogada, neste tipo de situações, “falha seguramente no lado da fiscalização e da supervisão, a verificar se as atividades estão licenciadas ou não”

Cabanas marcam paisagem da Praia da Saúde

Vai tudo abaixo?

Foram contactados vários proprietários destas estruturas. Mas nenhum se mostrou disponível para dar a cara pelo tema, alegando que não querem “levantar ondas”. Ou seja, manter-se no estado de indefinição atual é visto como o melhor cenário. Porque isso tem permitido, entre outras situações, fazer obras nas cabanas sem ter as autoridades à porta, evitando que as madeiras se deteriorem ainda mais com o desgaste do mar, e receber turistas.

A Câmara de Almada reconhece que o Programa da Orla Costeira “mantém a necessidade de retirar estas construções daquele local, por se tratar de uma área de risco elevado, vulnerável aos galgamentos oceânicos e à erosão costeira”.

Também a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) reforça que as construção “não têm licença válida para a ocupação do DPM”, sendo que as últimas licenças “caducaram”, não permitindo a “utilização privativa dos recursos hídricos”. “Não são aptas nem legalmente elegíveis para obtenção de licença administrativa, nomeadamente, para fim habitacional”, atesta fonte oficial.

A APA, sob tutela do Ministério do Ambiente, reconhece que os casos de alojamento de turistas nos palheiros “são do conhecimento desta Agência”, tendo sido “reencaminhados aos serviços da Câmara Municipal de Almada”.

A APA também aponta o mesmo destino para estas construções: “Há ações de demolição previstas, em concreto, nos planos de intervenção na praia aprovados para as Praias da Saúde e Mata”.

A sensação, partilhada pelos proprietários, é de que as diferentes entidades públicas fazem pingue pongue entre si sobre este tema, deixando-os em “terra de ninguém”.

Fotografia antiga mostra comunidade piscatória junto das cabanas da Costa de Caparica (Torre do Tombo)

Património a defender

Estes palheiros fazem parte da paisagem e da história da Costa de Caparica. “Com origem na altura em que a vila viu transformada a sua comunidade piscatória em estância balnear”, tendo sido “levadas em carros de bois da Cova do Vapor para a Costa de Caparica” na década de 1950.

Mas pode-se demolir algo que se considera património? Ricardo Salomão, um dos académicos que se tem dedicado ao estudo destes palheiros, repudia esse cenario. Para este especialista, o único caminho só deveria passar pelo licenciamento. Mesmo que isso implicasse que estas construções fossem recuadas mais um pouco face à linha de costa.

“Antes de mais nada, é preciso criar um enquadramento legal claro. Isto devia ser considerado património cultural do município. O que é principal é que este património seja preservado, seja enquadrado, porque faz parte da nossa identidade, defende.

Um dos critérios que aponta, nas exigências para a sua legalização, é que “a traça das casas não fosse alterada, para não se desviar desse enquadramento cultural e patrimonial”.

Os palheiros têm resistido a ventos e marés, obrigando a fortes gastos na manutenção. Com as adaptações de que foram alvo para receber turistas, ganharam nova vida e cor. Mas o futuro é uma incógnita. 

Registos mostram o processo de transporte em bois

País

Mais País

Patrocinados