Acabou a "linguagem comercial e bem produzida". Podem os memes ajudar a decidir umas eleições?

7 fev, 10:00
Memes

Com a noite eleitoral à porta, cresce o número de imagens satirizadas dos candidatos políticos. Fomos perceber de que forma é que o fenómeno dos "memes" pode influenciar a decisão dos eleitores.

“Mas o que é que não funciona em Portugal?” – A questão lançada por Pedro Nuno Santos a Rui Rocha no primeiro debate eleitoral de ambos, esta segunda-feira, rapidamente conquistou a atenção daqueles que os ouviam. Não levou muito tempo até que a figura do novo secretário-geral do PS surgisse em grupos do Whatsapp, partilhada pelo tio da irmã do marido da prima, ao lado de um Serviço Nacional de Saúde em chamas.

Pelas 21:45 desta terça-feira, “O PNS” já ocupava o 10.º lugar nas “Tendências de Portugal” da rede social X (antigo Twitter), logo a seguir a “Paulo Raimundo” e antes de “Ventura”. Não obstante, Rui Rocha alcançou o terceiro lugar da lista, na sequência do frente e frente que, segundo o Pulsómetro da CNN Portugal, resultou numa vitória da Iniciativa Liberal. “Montenegro” e “Mariana Mortágua” disputam o topo.

A internet é um autêntico campo de batalha e os períodos eleitorais são prova viva disso. E nessa incessante caça ao voto é nas redes sociais que inúmeras figuras partidárias e respetivos apoiantes encontram a artilharia perfeita: os memes.

Mas não é de agora.

Recuemos dois anos, até às últimas eleições legislativas que deram a maioria ao PS. Mais uma das sagas políticas marcadas por milhares de reações, onde o humor é o fator predominante, desde os famosos papéis de André Ventura ao debate dos partidos sem assento parlamentar.

Já na noite eleitoral, ainda que o hashtag oficial “#Legislativas2022”, os nomes “Catarina Martins” e “João Oliveira”, “Portugal” e “O PS” dominassem a lista de temas mais falados no Twitter, os verdadeiros protagonistas foram António Costa, Francisco Rodrigues dos Santos, Rui Rio e… o gato Zé Albino.

Ora, quando estas imagens, vídeos ou GIF’s são utilizados como recurso persuasivo para o voto eleitoral, a conversa já é outra.

Direita mais adaptada à linguagem?

Raphael Primos, especialista em Marketing e Comunicação destaca a importância de, antes de tudo, haver uma definição própria, argumentando que “nem tudo o que chamamos de meme é necessariamente um meme na internet”, além de que “nem tudo o que é viral é um meme”.

“O meme é um conceito, uma ideia, um comportamento que fala de pessoas com pessoas, numa cultura, em determinado grupo”, explica. “Esse conceito, essa ideia, pode ser uma imagem, pode ser um vídeo, pode ser uma forma de escrever, pode ser uma palavra”. Mais concretamente, “aquela piada que não se consegue explicar, mas é preciso ver”.

Chama-lhe “linguagem estética de internet”, utilizada por muitos políticos e empresas que solicitam a geração de um meme, “que acaba por viralizar devido às suas características”. “Apropriam-se dessa linguagem, entendem-na, como ela funciona e passam a replicá-la com situações absurdas”, continua. “Já não recorrem mais àquela linguagem comercial, bem produzida”. E na perspetiva do especialista, a “direita internacionalizada” tem vindo a aplicá-la de forma mais eficaz do que a esquerda.

“Pela primeira vez, à custa da internet, tem criado conexões globais, um padrão e uma estratégia”, diz. E como se prova isso? Raphael Primos debruça-se sobre um dos recentes vídeos do ex-presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, onde fala sobre a vacina. “Ele pega num vídeo bem amador e diz muitos disparates que não dizia há muito tempo, porque domina essa linguagem e sabe que por ser tão absurdo a imprensa vai cobrir e o vídeo vai repercutir”, afirma. Ou seja, “não é feito de maneira espontânea, é pensado e treinado por uma direita internacional”.

Defende que com André Ventura, por exemplo, verifica-se a mesma situação nos seus conteúdos virais. “Ou está com alguma coisa na mão, ou está a dizer alguma coisa que é absurda, tem toda uma intenção em relação a isso”, declara. “Essas imagens, vídeos, piadas, tornam-no muito mais interessante do que um discurso político tradicional”.

Analisamos a anteriormente referida imagem de Pedro Nuno Santos ao lado de um edifício em chamas, divulgada pela página Salsaparrilha X, na rede social X (antigo Twitter), e comparamos com outra imagem de António Costa, significativamente mais “limpa”, numa analogia ao filme “Good Fellas”.  De um lado vemos um meme amplamente divulgado, do outro “uma linguagem mais produzida, mais séria, que vai acabar por morrer”.

Influenciadores que apelam às emoções

Graça Canto Moniz, professora universitária e CEO da FUTURA, observa que “atualmente as pessoas estão muito vulneráveis a apelos às emoções. Seja o ódio, as gargalhadas, o humor”. Somando ao facto de vivermos “numa altura onde há uma sobrecarga de informação, o conteúdo é fácil de consumir e de partilhar”, explica que este “é um caminho para influenciar a opinião das pessoas que estão disponíveis para esse tipo de consumo”. “São muito mais fáceis de influenciar, do que estar numa discussão com argumentos racionais detalhados. Uma imagem é óbvia e evidente”, continua.

Para a especialista em redes sociais, isto reflete a forma como as gerações mais novas consomem a informação nessas plataformas, uma vez que “estão muito habituadas ao TikTok ou ao Instagram e têm muito pouca disponibilidade para perderem três, quatro, cinco minutos com uma determinada notícia, livro ou filme”, sobretudo as pessoas abaixo dos 27 anos. “Tudo o que seja curto e eficaz a transmitir a mensagem, por esta razão, é bem-sucedido. Então se apelar ao humor ainda mais”, declara.

Para além de uma questão de tempo, considera que se trata de “menos disponibilidade intelectual”. “É mesmo a maneira como foram educados, estão habituados a dar swipe e vem algo novo. Ao fim de uns minutos a consumir uma coisa fartam-se, há ali uma sensação de fastídio e têm já de ver a próxima coisa que vem a seguir”, esclarece.

Acrescenta ainda que pode ter consequências nefastas no processo cognitivo e no modo como as pessoas pensam e interagem entre si. Em suma, não possuem capacidade suficiente para ler, por exemplo, um programa eleitoral. “Os programas eleitorais já são muito pouco lidos no geral e sempre foram, mas no futuro vão ser ainda mais porque as pessoas não estão disponíveis para perder muito tempo com documentos longos”, afirma. “Depois também afasta os jovens da política”.

“É muito prejudicial para a democracia”

Graça Canto Moniz serve-se do exemplo de complexos problemas na sociedade que precisam de ser discutidos, como a Segurança Social, a Saúde e a Educação, “que não se resolvem com memes”. Mas com estes, “há uma simplificação do debate público e político que é muito prejudicial para a democracia”.

Acredita que evitá-los “é mesmo impossível”, uma vez que pressupunha que as redes sociais onde esses conteúdos são partilhados tivessem formas de moderação. “E estamos a falar de conteúdos que não põem linhas vermelhas, como a pornografia ou os suicídios. São coisas engraçadas, são coisas divertidas, maior parte delas são vídeos disparatados”, remata.

Regina Queiroz, professora na Universidade Lusófona e especialista em filosofia e teoria política concorda que será “muito difícil utilizar estas formas de comunicação para o bem”, uma vez que o próprio método é utilizado como “uma arma de arremesso para destruir pessoas”. “É um tipo de política muito destrutiva através do outro”, continua acrescentando que os próprios partidos também a utilizam “sempre na tentativa de descredibilizar os seus adversários”.

Sugere o caso de Donald Trump, que é capaz de “dar a volta à situação ridicularizando-se a ele próprio”, ao passo que para Joe Biden “é mais difícil”, levando muitas vezes o presidente norte-americano a ser associado a uma imagem mais frágil, com sinais de demência.

Tradição dos cartoons

A professora remete este fenómeno para 1967, aquando do surgimento dos “cartoons” com base numa comunicação mais visual. “As pessoas eram mais sensíveis à imagem do que propriamente ao raciocínio lógico”, esclarece. “Estes memes provêm da prática da comédia que tenta denegrir políticos para, de alguma forma, se perceber que não estão acima da lei, que não são pessoas divinas, são mortais, e isto está muito ligado à tradição satírica do humor”.

Aponta também o facto de os jovens participarem mais na política do ponto de vista emocional, como causa para a crescente partilha dos memes nas plataformas online. “Já praticamente toda a participação deles na política é feita do modo virtual, não é ligada aos partidos políticos ou aquilo que são as instituições formais da vida política portuguesa”, afirma. Outra razão é “a degradação dos sistemas de ensino”, que, tal como referiu Graça Canto Moniz, pode resultar na perda de competências, não apenas sociais, mas sobretudo cognitivas.  

“É preciso mais literacia digital, mais globalismo nas televisões, mais jovens a participar na política e mais pessoas de fora daquilo que e o mainstream, a participarem na vida cívica sem ser nas redes sociais”, defende.

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