Porque há cada vez mais adeptos do poliamor? "A não monogamia não tem a ver com o número de parceiros, tem a ver com eu decidir o que fazer com o meu corpo"

4 nov 2023, 08:00
Relações (DR/Pexels)

Ainda há muito preconceito social e não há enquadramento legal, mas os especialistas concordam que há cada vez mais pessoas a recusar o sistema monogâmico, que consideram opressor: "A monogamia diz-nos que só há uma maneira de viver as relações. A não monogamia dá-nos liberdade para vivermos como quisermos"

Sónia foi casada durante dez anos e feliz no casamento durante grande parte desse tempo. Ambos tinham muitas atividades e viajavam muito em trabalho. "Cada um de nós tinha o seu espaço e não dávamos satisfações um ao outro, não sentíamos aquela obrigação de dizer tudo o que tínhamos feito, onde íamos, com quem tínhamos estado. Não partilhávamos e não havia stresses." Quando sentia atração por outra pessoa, quando flirtava ou se envolvia com outras pessoas, não sentia culpa. "Sentia liberdade para ter outros casos. E penso que ele também. Mas não falávamos abertamente sobre isso, não havia propriamente um consentimento, era omisso. O que nos importava era o que acontecia entre nós quando estávamos juntos e a educação das nossas filhas. Não sentíamos ciúmes nem medo de perder o outro."

"Todos diziam que nós éramos muito liberais, mas não lhe chamávamos poliamor", recorda. Era uma relação que funcionava para eles e nunca houve necessidade de lhe dar um nome. Foi só quando se separou, já depois dos 40 anos, e refletiu um bocadinho sobre o que queria realmente para si, que percebeu que não queria ter um namorado nem voltar a casar. "Nunca dei muita importância ao que os outros dizem, mas agora, finalmente, tenho liberdade para fazer o que quero. E descobri que quero fazer outras coisas e estar com outras pessoas. Nunca acreditei no príncipe encantado, sempre houve várias pessoas que me encantavam. Agora, estou só a assumir isso. Foi um processo muito tranquilo", conta. Hoje, assume-se como poliamorosa. Tem tidos relações com homens, com mulheres, com casais. Umas vezes essas relações são simultâneas, outras vezes dedica-se apenas a uma relação. A regra é não haver regra. "A monogamia diz-nos que só há uma maneira de viver as relações. A não monogamia dá-nos liberdade para vivermos como quisermos", resume.

Somos monogâmicos ou aprendemos a ser monogâmicos?

"Algumas pessoas consideram que a verdadeira monogamia é estrita ou vitalícia, onde uma pessoa tem um único parceiro durante toda a vida. Enquanto outras podem ter vários parceiros sequencialmente, mas ainda se consideram pessoas monogâmicas em cada relação amorosa", começa por dizer o sexólogo e psicólogo Fernando Mesquita. "Embora não exista uma resposta consensual, diversos investigadores defendem que a monogamia é essencialmente uma convenção social e cultural, na qual somos educados e condicionados, e que reflete as normas e expectativas predominantes sobre relacionamentos numa determinada cultura."

"A partir de produtos culturais como os anúncios publicitários ou a arte, a monogamia é atualmente sinónimo de amor (uma forma romântica e sexualizada de amor 'autêntico') e de casal, que é a construção prática que se entente como 'natural' desse amor 'autêntico'. O que chamamos de monogamia é o sistema invisível no qual o jogo do amor é jogado, o tabuleiro. Tanto assim é que não é nomeado: é dado sem questionamentos", escreve Brigitte Vassalo no livro "O Desafio Poliamoroso". 

A monogamia é-nos apresentada como facto consumado: é isto que a sociedade espera de nós. É o que vemos, desde pequenos, à nossa volta, nas pessoas que nos rodeiam, nos filmes, nas canções, nas revistas, nos livros. O desejado "final feliz" é quando um par de namorados decide ficar junto para sempre. Da mesma forma, a sociedade e a cultura ensinam-nos que a traição, numa relação conjugal, é algo condenável. Por isso, as relações com os ou as amantes são mantidas em segredo, consideradas ilegítimas e pecaminosas. Quando descoberto, o adultério dá origem a discussões e, se não for perdoado, à separação do casal. 

E, no entanto, quantas relações são verdadeiramente felizes e para sempre? Quantas pessoas têm relações ditas monogâmicas, mas já tiveram vontade de trair? Quantas acabam por se envolver sexualmente com outras pessoas? Nestes casos, o que define a monogamia não é a exclusividade sexual, mas a hierarquia - a importância do casal face aos outros relacionamentos secundários. "Pode haver outras relações sexuais, mas apenas uma recebe apoio social, apenas uma está certificada como correta, apropriada", explica Brigitte Vassalo, escritora e ativista feminista espanhola. 

"A monogamia é um sistema opressor" - sobretudo para as mulheres

A psicóloga Catarina Graça explica que a monogamia se tornou o modelo dominante mais por exigências materiais e sociais do que por motivos afetivos: "Foi a maneira como a sociedade se foi organizando. Tem a ver com a necessidade de estabelecer a paternidade dos filhos e com as heranças, o garantir que o património se mantém na família", esclarece. O casamento começou por ser um contrato entre famílias (ainda hoje é assim em algumas comunidades), a ideia do "amor romântico" é uma construção social.

Marcela Aroeira, também psicóloga e autora do projeto "Amores Plurais", concorda e vai mais longe: "A monogamia é o braço direito do capitalismo e do patriarcado". Está intrinsecamente relacionada com o facto de a sociedade em que vivemos ser tendencialmente machista: a monogamia permitia controlar as mulheres e os seus corpos. "Não tem a ver só com relações interpessoais, é muito mais vasto do que isso", diz. A monogamia "facilita essa engrenagem de desigualdade de género e exploração das mulheres. São as mulheres que cuidam dos filhos e que desistem de projetos profissionais porque são educadas para se dedicarem ao seu parceiro. Está tudo interligado. A monogamia é uma estrutura opressora, nas relações, no trabalho, na vida doméstica..." 

E não é por acaso que as traições dos homens sempre foram mais aceites do que as traições das mulheres. "Historicamente, e ainda hoje, são as mulheres que são criticadas e até mortas por serem adúlteras. Já para os homens, sempre houve bordéis, a traição masculina está normalizada", lembra Marcela Aroeira.

Para definir as relações com mais do que dois elementos geralmente usa-se a expressão não monogamia ética ou não monogamia consensual, o que significa que é uma situação que tem o acordo de todos. Mas, para falar das suas relações, Vera prefere falar só em não monogamia: "Quando não é consensual não é não monogamia, é uma traição e continua a obedecer ao sistema monogâmico", explica. "Neste momento estou muito mais ligada a uma não monogamia política, porque para mim a monogamia é um sistema opressor de outros tipos de família que não a tradicional, de duas pessoas (e já nem digo que tenham de ser homem e mulher). Mesmo para uma pessoa sozinha a monogamia é opressora. É um sistema que não tem nada a ver com amor e tem pouco a ver com relações. O meu desejo é acabar com a monogamia como sistema, não com as relações monogâmicas. Dentro um sistema não monogâmico há lugar para relações monogâmicas, mas dentro do sistema monogâmico não há lugar para relação não monogâmicas."

Portanto, aceitar a não monogamia é também um ato de libertação. "Não se trata da legitimação da traição", diz Marcela Aroeira. "A não monogamia não tem a ver com o número de parceiros que se tem, nem com querer ter relações sexuais com várias pessoas. Tem a ver com autonomia do seu corpo e não terceirizar o controlo do seu corpo. Eu decido o que fazer com o meu corpo em cada momento, inclusive eu posso decidir estar só com uma pessoa. Mas isso não me torna monogâmica. Tem a ver com querer viver num sistema diferente, onde não somos definidos pela relação que temos. Porque é que não podemos desfocar a nossa vida de uma relação romântica e viver independentemente disso? Eu não preciso seguir essa escada relacional: namorar, casar, ter filhos. Posso descobrir o que eu gosto e ser outra coisa, completamente diferente."

Não exclusividade não é sinónimo de não compromisso 

É possível amar mais do que uma pessoa ao mesmo tempo? - esta é a pergunta que mais fazem às pessoas não monogâmicas. "Não há uma resposta definitiva para essa pergunta, pois os sentimentos de amor são subjetivos e influenciados por diversos fatores. Cada individuo tem uma visão própria sobre o conceito de amor", responde o sexólogo e psicólogo Fernando Mesquita. Para umas pessoas é possível, para outras não. Por isso, "o mais importante é garantir que todas as partes envolvidas estão confortáveis e satisfeitas com a dinâmica dessa relação amorosa". Além disso, as relações não monogâmicas não são todas iguais, podem ter diferentes formas e diferentes dinâmicas. "O termo "poliamor" inclui a palavra "amor" e, portanto, há um foco na construção de relacionamentos amorosos. Embora o poliamor também possa envolver aspetos sexuais, não é apenas sobre a busca de parceiros sexuais casuais", esclarece Fernando Mesquita. "Em contrapartida, nas relações abertas, por exemplo, o foco está essencialmente no sexo e não no envolvimento emocional ou amoroso."

Seja como for, o facto de ser uma relação não monogâmica não quer dizer que não haja um compromisso. "Muitos praticantes de poliamor têm relacionamentos duradouros baseados no compromisso com várias pessoas. Este compromisso pode ser emocional, sexual, financeiro e até envolver a coabitação e criação de filhos, dependendo das preferências e acordos das pessoas envolvidas", explica ainda o sexólogo. Marcela Aroeira também é muito clara nesse ponto: "A não monogamia é muito confundida com descuido e falta de compromisso. Mas é exatamente oposto. O que queremos são relações responsáveis, que não descartem o outro, onde nos cuidamos coletivamente". A relação não monogâmica exige honestidade e comunicação, mais ainda do que uma relação monogâmica.

"Nós temos mesmo que falar sobre todos os assuntos", explica Vera. "Nas outras relações isso também deveria acontecer, mas muitas vezes não acontece, há muita coisa de que não se fala. Aqui tem mesmo de ser. Temos de falar do que é que consideramos traição, porque é diferente para cada pessoa, temos de definir limites, se não estivermos confortáveis com alguma temos de falar, porque se não a relação torna-se impossível." É Lourenço, o marido de Vera, que toma agora a palavra: "Fomos estabelecendo regras e percebendo o que é que funciona e o que é que não funciona connosco, às vezes é preciso voltar atrás, fazer ajustes."

Sobre a possibilidade de amar várias pessoas ao mesmo tempo, Vera, tal como Sónia, não tem quaisquer dúvidas: percebeu muito cedo que amar outras pessoas não a faz amar menos a pessoa com quem está. Por outro lado, também não tem ciúmes. "Gosto de partilhar os meus amores, são pessoas tão especiais que compreendo que outros gostem delas. E quero que estejam felizes, por isso nunca seria capaz de lhes dizer para não estarem com outra pessoa se é isso que elas querem." 

O desafio de construir uma família poliamorosa

"Considero que sempre fui poliamorosa. Lembro-me de desde muito cedo achar que é possível gostar de duas ou mais pessoas ao mesmo tempo, mas depois, na minha cabeça, tinha de se escolher uma para ter uma relação. Não questionava a monogamia." Por isso, e como tantas outras pessoas, Vera acabou ter relações falhadas: "Comecei por ser traidora e trair nas minhas relações monogâmicas, antes de perceber que a monogamia não se me servia." 

Quando conheceu Lourenço, há 11 anos, Vera tentou ser o mais honesta possível e disse-lhe: "Quando estou em relações às vezes gosto de me envolver em flirts com outras pessoas, muitas vezes não dá em nada, por isso eu não te vou dizer a não ser que isso influencie o que sinto por ti." Vera e Lourenço casaram-se e, à medida que a relação foi evoluindo, este acordo foi ganhando novos contornos. Um dia, Vera conheceu Matilde, apaixonaram-se e começaram a namorar. Depois, o Lourenço também conheceu Matilde e desenvolveram uma relação os dois, autónoma. Entretanto, os três decidiram assumir-se como uma família, até porque Vera engravidou e, desde o início, foi assumido entre todos que - embora não legalmente - seria uma filha dos três, com um pai e duas mães. "É uma relação com muitos níveis e muitos desafios", admite Vera. "As relações têm evoluído muito, nem sempre é fácil, tem sido um caminho, conturbado, doloroso por vezes." Mas também tem sido bom, todos concordam. 

Construir uma família poliamorosa nem sempre é fácil: "é um caminho conturbado", admitem Vera, Lourenço e Matilde

"Constituir uma família de acordo com um modelo não monogâmico pode ser um grande desafio, mas é possível." Para isso, avisa o sexólogo e psicólogo Fernando Mesquita, "é importante existir uma comunicação sólida, acordos claros e uma abordagem refletida sobre as responsabilidades de cada um dos envolvidos. Tal como qualquer outra relação amorosa, as relações poliamorosas também têm alguns desafios, estando entre as mais comuns: a necessidade de terem de lidar com possíveis preconceitos da sociedade ou a gestão de tempo e a comunicação entre parceiros/as. Existem ainda dificuldades inerentes ao não reconhecimento legal e institucional, principalmente quando há filhos."

Vera, Lourenço e Matilde conhecem todas essas dificuldades. Na escola, todos conhecem a família da bebé, atualmente com oito meses. Na consulta de pediatria comparecem as duas mães e o pai. "Temos sentido uma grande aceitação", reconhece Vera. "Essa parte é fácil. Mas, legalmente, a Matilde tem zero direitos sobre a filha. Ela não pode meter baixar para cuidar da filha doente. Se nos acontecer alguma coisa, enquanto pais biológicos, temos de fazer uma procuração para a Matilde ser a tutora legal. Se algum dia nos separarmos, ela só continua a ver a filha se nós quisermos. E isso é muito injusto. A lei não prevê, de todo, a existência de famílias com mais de dois elementos parentais. Nós não temos espaço para existir", lamenta Vera.

"Os benefícios legais são todos monogâmicos", concorda Marcela Aroeira. Seguro de saúde, visto de residência, benefícios na compra da casa ou nos impostos, responsabilidades parentais - tudo isso só existe para os casais monogâmicos. "Se se sai da norma, não há uma resposta."

Ainda há preconceitos, mas há cada vez mais uma busca pela autenticidade

"É remar contra a maré, a gente consegue, mas é difícil", brinca Marcela Aroeira, alertando: "Ainda há muito preconceito social." Por causa disso, os entrevistados nesta reportagem não querem dar a cara e pedem para não usarmos os nomes verdadeiros. Para já, Sónia só contou às amigas mais chegadas. Vera, Lourenço e Matilde também contaram aos amigos e garantem que todos os aceitaram e começaram logo a tratá-los como família. Mas Lourenço não contou aos pais nem aos colegas do trabalho. Vera optou por contar apenas à família mais próxima, mesmo sabendo que ia ser criticada. "Com a minha mãe tenho discussões horríveis. Ela aceita, mas não respeita de todo, diz que nada disto é normal", lamenta.

Há contextos onde as mulheres são muito criticadas e penalizadas socialmente por não se conformarem em ter um só parceiro. Mas para os homens também pode ser complicado. Lourenço, por exemplo, recorda que "ao início sentia uma certa insegurança, aquela coisa do que é que os outros vão dizer. Há muita pressão para o homem ter o controlo da sua casa e da sua mulher, eu nunca fui assim. A Vera tem liberdade para estar com quem quiser, e isso nem sempre é bem visto."

Apesar de tudo, há avanços. O tema da não monogamia parece estar cada vez mais presente no nosso dia-a-dia, muito com a ajuda das redes sociais. Formaram-se grupos de Facebook, há podcasts dedicados ao tema, páginas de Instagram com muita informação. Há mais pessoas a falar abertamente sobre o assunto. Este mês, Diogo Faro e Joana Brito Silva estreiam o espetáculo "Amor, quero beijar mais pessoas", no qual vão falar da sua própria relação não monogâmica. Aos poucos, a sociedade parece estar mais aberta a aceitar outros modelos relacionais que não apenas o monogâmico. 

Marcela Aroeira está otimista: "Penso que cada vez mais pessoas estão a perceber o quanto é importante estarmos em comunidade, criarmos redes de apoio, independentemente dos vínculos afetivos ou sexuais." Ao contrário do que muitos pensam, a psicóloga acredita que "a monogamia cria muita solidão", uma vez que as pessoas ficam muito centradas naquele núcleo, com o companheiro e os filhos, afastam-se dos amigos e acabam por ofuscar outras facetas da sua personalidade. "As pessoas apostam tudo naquela relação" e, depois, quando há um divórcio ou uma viuvez sentem essa solidão de uma forma muito mais intensa. 

"Os mais novos param para pensar sobre o assunto, questionam-se mais, não se querem conformar às regras da sociedade sem ter a certeza de que essas regras os irão fazer felizes", explica a psicóloga Catarina Graça. "É bom refletir. Durante muito tempo as pessoas não questionavam e havia certamente casais que eram bastante infelizes e que, se calhar, nunca pensaram que o problema não estava naquela relação, mas no modelo em que viviam. Neste momento, já há mais pessoas que tentam fugir ao padrão. Ainda são a minoria e por isso acabam por ser outsiders e são alvo de críticas, mas penso que as coisas estão a mudar. Estamos inseridos numa sociedade, mas cada pessoa é livre, é legítimo que queiram viver desconectadas das regras que as fazem infelizes e de toda a opressão."

O sexólogo e psicólogo Fernando Mesquita concorda que "nos últimos tempos, temos testemunhado uma maior visibilidade e aceitação da variedade nas relações amorosas incluindo relações entre pessoas do mesmo sexo, relações abertas e poliamorosas". Atualmente, diz, "as pessoas procuram uma maior autenticidade nas relações amorosas onde podem explorar as suas necessidades, desejos e valores pessoais". E conclui: "É importante que cada pessoa escolha o estilo de relação amorosa com que mais se identifica, não cedendo a qualquer tipo de pressões, incluindo do/a parceiro/a". No fundo, dizem todos eles, é isto: que pessoas adultas se relacionem como quiserem e que sejam felizes, com um ou mais parceiros.

Relacionados

Amor e Sexo

Mais Amor e Sexo

Patrocinados