Litígios como o que opôs Johnny Depp e Amber Heard não acontecem só aos outros, nem acontecem só lá fora. Por cá, também há divórcios difíceis que se arrastam nos tribunais e em que ambas as partes esgrimem argumentos até à exaustão. Contamos-lhe três histórias de processos em tribunal que ainda decorrem, apesar dos divórcios decretados
O processo de divórcio de Isabel não teve mediação possível e parece-lhe não ter fim à vista. Casou por amor, “com a cabeça nas nuvens”. E admite que foi feliz durante muito tempo. O casamento durou 16 anos, até descobrir que o nível de vida que levavam tinha um custo muito pesado.
“Nunca o meu objetivo foi obter proveitos com o casamento, claro. Mas também não queria arcar com dívidas que não eram minhas. Ele fez dívidas durante o casamento e já tinha dívidas antigas que eu agora corro o risco de ter de pagar, mesmo já estando divorciada”, conta.
O ex-marido nunca quis que trabalhasse e Isabel ficou sempre em casa, a cuidar das duas enteadas e do filho que, entretanto, nasceu. Paulo assumiu a responsabilidade de prover o sustento da casa. “Eu não sabia que, para vivermos, era preciso ele fazer dívidas. Que era preciso ele perder uma casa por causa disso”, lamenta.
Hoje, Isabel lastima não ter sido mais bem informada quando se casou. “Quando fiz o casamento no registo civil, foram-me apresentadas duas alternativas: casamento com comunhão de bens e casamento com comunhão de bens adquiridos. Nunca ninguém me falou da terceira alternativa, a de separação total e bens”, diz.
Provavelmente, admite, esse conhecimento nada teria mudado. Porém, o facto de ter casado com comunhão de bens adquiridos trouxe-lhe problemas que ainda hoje lhe ensombram os dias: “Só soube das dívidas que ele tinha contraído quando me começou a pedir para assinar procurações”.
“Ainda aguentei em Castelo Branco, onde vivíamos, depois das procurações e de ele ter perdido uma casa. No ano passado, em maio, fui passar uns dias fora do país para cuidar de um familiar doente e, enquanto lá estava, recebi uma mensagem a dizer que tinha de assinar urgentemente mais uma procuração. Recusei e contactei um advogado. Fui ameaçada e houve proibição de falar com o meu filho, porque tive a lata de recusar assinar mais uma procuração”, conta.
"Agrediu-me à frente do meu filho"
A partir daqui, começou o “pesadelo”. Ainda houve uma tentativa de reconciliação e saíram ambos de Castelo Branco e foram viver para Aveiro. Mas foi sol de pouca dura. Os problemas financeiros de Paulo e o seu comportamento agressivo levaram Isabel a tomar uma decisão drástica.
“Em janeiro deste ano, como insisti no divórcio, ele agrediu-me à frente do meu filho. Liguei à APAV (Associação de Apoio à Vítima) e disseram-me para sair de casa. Era grau 4 de risco, por causa do comportamento do meu ex-marido e das armas. Mas eu não saí, por causa do meu filho. No dia seguinte, o meu filho foi ter com as irmãs e eu fiquei sozinha com ele. Ele começou a beber e eu comecei a ficar com medo. Chamei a polícia e planeámos a saída de casa. Mas o pai do meu filho exerceu o direito de guarda de 50% e não deixou o filho sair de casa. E mesmo o advogado insistindo para eu sair, eu não saí porque não queria deixar o meu filho com o pai naquele estado. No início de fevereiro, tive mesmo de fugir de casa com o meu filho e fui para um alojamento local para ficar perto da escola do meu filho”, recorda.
“Foi horrível dar este passo. Eu perdi, em duas semanas, seis ou sete quilos. Até hoje, não recuperei nem um grama. Mas valeu a pena: o meu filho melhorou as notas, engordou e está mais calmo.”
O divórcio foi decretado no mês passado. Mas isso não abranda o medo de Isabel, nem põe fim ao litígio em tribunal: “Eu sei que ele é vingativo, que não gosta de perder”.
A isto, soma-se o facto de desconhecer a real dimensão das dívidas que o ex-marido contraiu durante o casamento: “Vou começar a trabalhar em breve e não sei se vou receber o meu salário todo. Tenho sempre medo que me apareça uma penhora qualquer.”
Os filhos no centro da discórdia
Já as histórias de António e João parecem tiradas a papel químico. Ambos enfrentam longos processos de regulação de poder paternal, com graves acusações pelo meio. São duas histórias de separações difíceis e conturbadas, com os filhos no centro da discórdia.
António esteve casado três anos, depois de outros tantos de namoro. Do casamento, que terminou em 2016, nasceu Francisca, agora com seis anos e prestes a entrar na escola primária. Os últimos dois anos da vida de Francisca foram vividos com os pais a litigar a sua guarda em tribunal.
“A mãe da minha filha mais velha resolveu meter três processos contra mim por abusos sexuais, violência e perseguição da criança. Contra mim e contra a minha atual companheira”, conta António, sem esconder a revolta, em declarações à CNN Portugal.
No âmbito do processo-crime que lhe foi instaurado, a investigação concluiu que as acusações eram falsas e o caso não seguiu para tribunal. Mas isso não foi suficiente para a situação se resolver no Tribunal de Família e Menores: “A juíza do processo de promoção e proteção de menores diz que não se provou que é falso [os abusos sexuais e a perseguição]. Só não se provou que aconteceu. Só uma confissão da minha ex-mulher a dizer que mentiu resolve a questão e, claro, ela não confessa”.
“Deprimido”, “louco” e “irresponsável”
João, empresário, 35 anos, também enfrenta em tribunal acusações feitas pela ex-mulher. “Difama-me. Coisas absurdas, como eu ter uma depressão, ou estar louco, ou ser irresponsável ao ponto de deixar o meu filho sozinho”, recorda, numa entrevista telefónica à CNN Portugal.
“Disse no colégio do meu filho que eu não cumpro as obrigações parentais e há lá pessoas com quem tenho relações profissionais, que falam umas com as outras e para as quais eu não cumpro com as minhas obrigações parentais. O que não é verdade”, acrescenta.
Quando João e Raquel se separaram, o filho Bernardo tinha apenas dois meses: “Foi opção minha e ela aceitou”. Três meses após a separação, o divórcio foi decretado. Um processo fácil, que não deixava adivinhar o longo litígio de regulação de poder paternal que se havia de seguir.
João queixa-se que ainda enfrenta um obstáculo acrescido, que levou já “vários juízes a pedirem escusas do processo”. Raquel é magistrada, o que lhe confere, segundo João, uma espécie de proteção, que faz com que os seus “vários incumprimentos” não tenham “qualquer punição”.
Alienação parental
Tanto João como António acusam as ex-mulheres de alienação parental. “Por causa das acusações de abuso sexual e perseguição, cheguei a estar meses sem qualquer contacto com a minha filha. Enquanto a investigação decorresse, o tribunal determinou que a menina ficaria ao cuidado da mãe, haveria visitas supervisionadas e videochamadas para não haver perda de contactos. As videochamadas nunca foram cumpridas. As visitas com as instituições também não arrancaram. Tive de contactar todas as instituições da região para saber se a minha filha tinha sido registada para a promoção das visitas ou não. Ao fim de oito meses, consegui uma instituição que supervisionasse as visitas. Conseguia estar com a minha filha 20 minutos por mês - por mês! - sem a presença da irmã e sem a presença da madrasta”, relata António, sem esconder a revolta.
No caso de João, Raquel e Bernardo, vive-se agora um período de espera. O tribunal atribuiu a guarda total de Bernardo à mãe, João recorreu e, até haver uma decisão, a criança tem residência alternada.
“A minha ex-mulher já escreveu ao tribunal a dizer que não quer que eu saia do país com o meu filho e que só posso ter férias com ele depois dos seis anos. Diz que há risco de eu fugir do país”, acrescenta João.
O empresário acusa ainda a ex-mulher de manipular a criança contra ele e a atual companheira: “O meu filho diz-me que a mãe diz que não pode comer os lanches que eu lhe faço porque lhe fazem mal à barriga. Já disse à minha atual mulher que a mãe disse que ela era uma bruxa.”
A isto, acresce a incerteza e a falta de referências em que vive Bernardo: “Por exemplo, no dia do pai, ele veio para mim e não sabia que era dia do pai. Veio no meu aniversário e não sabia que eu fazia anos.”
Filhos e morada de família, pouco é o que os une e muito o que os separa
Os casos de João e de António são um retrato dos divórcios difíceis que chegam aos tribunais. Desde logo, pelo principal motivo da contenda: os filhos. Dois advogados ouvidos pela CNN Portugal são unânimes em dizer que o maior foco de desunião entre casais desavindos são os filhos.
“Os filhos têm muta influencia nisto. Muitas vezes, é aqui que se desce efetivamente o nível. Em relação à dissolução do casamento, à partilha dos bens ou da casa de morada de família, as coisas acabam por se resolver de uma forma aceitável, ainda que o divórcio se tenha iniciado de forma litigiosa”, diz à CNN Portugal o advogado Luís Joaquim, da firma Almeida, Dias & Associados e especialista em direito de família.
Nuno Cardoso-Ribeiro, também especialista em direito de família, tem uma experiência ligeiramente diferente, no que toca à luta sobre a morada de família: “Um dos motivos de maior litigância é os filhos e o outro é a casa. Não sei qual é o mais relevante em termos estatísticos, mas talvez andem par a par”. “Somos um país pobre e a casa é, muitas vezes, o bem mais valioso de um casal. Por norma, nenhum dos cônjuges tem disponibilidade financeira para dar ao outro o que ele necessita e assumir os encargos com o empréstimo pendente”, explica o advogado, em declarações à CNN Portugal.
“No divórcio propriamente dito, não se separam os bens. Só se faz no pós-divórcio. Essa questão mantém-se pendente e pode demorar muito tempo. Por isso é que temos casais a viver juntos durante dois ou três anos e que já não têm uma relação conjugal”, acrescenta.
Mas os confrontos em tribunal já não se resumem apenas aos filhos ou à casa, como lembra o advogado Nuno Cardoso-Ribeiro: “Começam a aparecer alguns litígios sobre os animais de estimação. Há pouco tempo tive um divórcio em que o ponto de discórdia foi o cão e o tribunal acabou por decretar uma morada alternada, uma semana na casa de um e uma semana na casa de outro.”
Os dois advogados ouvidos para esta reportagem são unânimes em dizer que, em Portugal, são raros os divórcios ou os processos pós-divórcio que atingem um nível de litígio próximo do de Johnny Depp e Amber Heard. As histórias de João e António serão exepções. “O único processo de que me lembro foi o da Luciana Abreu e o do Yannick Djaló. Os juízes cá são muito centrados naquilo que interessa para resolver os processos. E não deixam ir muito mais além do que é necessário para resolver o caso”, elogia Luís Joaquim.
Uma experiência muito semelhante à do colega Nuno Cardoso-Ribeiro, que sublinha o papel dos advogados: “A esmagadora maioria dos meus processos judiciais terminam por acordo. O nosso objetivo é mediar e obter um acordo com a outra parte. Só em casos muito extremos é que esperamos por uma decisão do tribunal.”
Os números dos divórcios em Portugal
Com maior ou menor litígio, em Portugal há cada vez mais divórcios. A pandemia e os sucessivos confinamentos não serão alheios a esta realidade.
“Normalmente, havia duas alturas durante o ano em que aumentavam os contactos para pedir os nossos serviços: o Natal e o Verão. A pandemia tornou-se um terceiro fenómeno que veio aumentar o número de contactos de potenciais e clientes”, admite o advogado Luís Joaquim.
“A pandemia e os confinamentos vieram acelerar muitas separações que, sem isso, não tinham acontecido”, corrobora Nuno Cardoso-Ribeiro.
Na verdade, o número de divórcios tem vindo a aproximar-se do número de casamentos. Em 2020, de acordo com números da Pordata, divorciaram-se 92 casais por cada 100 que se casaram. São mais 30 divórcios por cada 100 casamentos do que no ano anterior.
O divórcio de Isabel e Paulo já vai fazer parte das estatísticas de 2022. Paulo tem contacto com o filho todas as sextas-feiras e aos sábados de 15 em 15 dias. “Foi proibido pelo tribunal de ligar ao filho seis ou sete vezes por dia como fazia e só lhe pode ligar uma vez”, conta Isabel.
Mas a história deste casal dificilmente terminará este ano. Isabel admite que terá medo por muito tempo: “Foi-me pedido várias vezes, umas vezes com voz suave, outras com ameaças, para desistir da queixa por violência doméstica. Mas eu não vou desistir. Eu não o quero ver preso, não quero que o meu filho veja o meu pai na prisão, mas não vou desistir. É preciso que ele pense duas vezes se volta a fazer isto com outra pessoa ou não.”
Nota: Alguns nomes e dados das histórias contadas neste artigo foram ficcionados a pedido e para proteção da identidade dos protagonistas. São, contudo, histórias verídicas de três processos que decorrem atualmente em três tribunais do país.