"Não é possível ter dois discursos completamente contrários perante situações em que se exige coerência": Adão e Silva, a CPI e o cartoon

CNN Portugal , BCE
10 jul 2023, 22:15
Pedro Adão e Silva (Lusa/José Sena Goulão)

Ministro da Cultura criticou a postura dos deputados na comissão parlamentar de inquérito à TAP e comparou a cobertura mediática do caso a uma "telenovela". O mesmo ministro que esta segunda-feira defendeu o “espaço do humor” a propósito de um cartoon que satiriza a atuação das forças de segurança

"Cinismo”, “falta de coerência e responsabilidade política” e até mesmo "inabilidade política". É assim que os analistas políticos contactados pela CNN Portugal descrevem as recentes declarações do ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, que nos últimos dias tem criticado repetidamente a forma como os deputados conduziram a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão da TAP, comparando-a mesmo a um reality show.

Pedro Adão e Silva, que até aqui, enquanto governante, era discreto nas suas posições políticas, emergiu nos últimos dias como um ministro assumidamente crítico da atitude dos deputados no parlamento, nomeadamente no decorrer das 46 audições no âmbito da CPI à TAP. Em particular, o ministro criticou “as inquirições prolongadíssimas pela noite dentro, sem pausa, o tom inquisitório das perguntas, o tipo de preocupação com um tom telenovelesco que alimenta um ciclo interminável de comentário” nos meios de comunicação social.

O ministro foi mais longe e classificou os deputados como “uma espécie de procuradores do cinema americano de série B da década de 80”, e as comissões de inquérito “prolongadas numa telenovela ou naquele género de comentário, como se comenta os ‘reality shows’ nos canais noticiosos à noite”.

No entanto, o facto de o mesmo ministro ter defendido esta segunda-feira a “autonomia” do “espaço do humor” a propósito do cartoon emitido pela RTP que satiriza a atuação das forças de segurança e que está a gerar controvérsia na opinião pública foi visto como uma manifestação de "incoerência" por parte dos analistas políticos

Quando questionado sobre a polémica, Pedro Adão e Silva, que tutela a RTP, defendeu que “o espaço do humor e do cartoon deve ser um espaço que deve gozar de particular autonomia e de não interferência editorial”. Uma posição contrária à do ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, que admitiu aos jornalistas ter contactado o presidente do conselho de administração da RTP “para manifestar desagrado” com a exibição do respetivo cartoon, cujos autores entretanto já vieram esclarecer tratar-se de uma sátira à atuação das forças policiais francesas.

Ora, esta diferença das posições manifestadas por Pedro Adão e Silva é interpretada pelos analistas como reveladora da "falta de coerência e de responsabilidade política" do próprio ministro.

"Não é de maneira nenhuma possível ter dois discursos completamente contrários perante situações em que se exige coerência e neste caso estamos perante falta de coerência, falta de responsabilidade política e - mais grave - o não assumir de um erro, o que prova a intencionalidade", observa José Filipe Pinto, professor catedrático e investigador-coordenador da Universidade Lusófona em Ciência Política.

O politógo diz mesmo que "mais do que hipocrisia", esta divergência de posições "revela prepotência e arrogância" por parte do ministro da Cultura - um sintoma que José Filipe Pinto associa ao "poder absoluto da maioria absoluta". 

"O poder está habituado a que lhe digam que sim e estranha quando lhe dizem que não, ou quando o questionam. O poder corrompe no sentido em que pode levar a fenómenos muito pouco democráticos, e o poder absoluto, as maiorias absolutas, corrompem absolutamente", argumenta.

Já a politóloga e professora universitária Paula do Espírito Santo considera que o ministro Pedro Adão e Silva "não está a ajudar a construir uma imagem política do Governo", manifestando nestes casos "uma dissonância política" e até mesmo "alguma inabilidade política" ao mostrar que "considera que a sua opinião pode ser interpretada de uma forma livre", sem quaisquer consequências políticas para o executivo.

"É mais uma pedra na engrenagem do Governo que era desnecessária", comenta a politóloga, que considera ainda que o executivo de António Costa acaba por sair prejudicado das "precipitações da expressão pública" dos seus ministros.

Também Miguel Relvas, comentador da CNN Portugal, assume perplexidade com "os dois princípios" manifestados pelo ministro da Cultura em ambas as situações. "É como o feijão-frade, tem duas caras", ironiza.

Mas o que mais surpreende o comentador da CNN Portugal são mesmo as declarações "descabidas e inaceitáveis" de Pedro Adão e Silva em relação aos deputados. "Com aquele tom e naqueles termos, o ministro pretendeu achincalhar o Parlamento", acusa.

Mas não foi só o ministro da Cultura que esteve mal, no entender do comentador - também o presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, ficou mal na fotografia ao optar pelo silêncio perante as declarações de Pedro Adão e Silva. "O silêncio do presidente da Assembleia da República só demonstra que não tem categoria para o lugar que está a desempenhar."

"Não imagino um Parlamento presidido por um Jaime Gama, por um Almeida Santos, por uma Assunção Esteves, por um Barbosa de Melo - presidentes que conheci enquanto deputado - a ficar em silêncio perante uma situação como esta. Nem acredito que homens políticos, que o Dr. Adão e Silva tanto valoriza, como um Dr. Mário Soares, pudessem concordar com este tipo de comportamentos. É a democracia virada ao contrário", lamenta o comentador.

No meio disto tudo, quem esteve bem, no entender dos analistas, foi o presidente da CPI à TAP, António Lacerda Sales, que considerou que as declarações de Pedro Adão e Silva constituem "uma falta de respeito pelo trabalho dos senhores deputados da CPI e pelo próprio Parlamento".

Na avaliação de José Filipe Pinto, "Lacerda Sales teve uma atitude coerente com a posição de um membro que preside a uma comissão parlamentar de inquérito, da defesa da separação de poderes", além de deixar claro que "o Parlamento não tem de ser, nem deve ser, um megafone do Governo".

Uma opinião partilhada por Miguel Relvas, que assinala que "o presidente da comissão parlamentar de inquérito esteve muito bem", tendo sido mesmo "a pessoa que esteve melhor" em toda esta polémica. "Gostaria de ter visto todos os partidos a serem claros na sua rejeição em relação a este comportamento. O ministro da Cultura esquece-se que foi escolhido pelo primeiro-ministro, enquanto os deputados são votados pelos portugueses. Há uma grande diferença", observa.

Mas mais do que a aparente "inabilidade política" do ministro da Cultura, esta polémica revela o que o politólogo José Filipe Pinto descreve como um outro sintoma das maiorias absolutas.

"Este Governo está a delapidar-se com uma sucessão de casos. Parece que sempre que surge um caso, alguém do Governo aposta na criação de um caso imediatamente a seguir para que não haja tempo de explorar verdadeiramente o caso anterior", aponta.

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