“Comem este mundo e o outro e nunca estão saciados”. Os doentes que precisam do medicamento que corta o apetite e que corre o risco de esgotar nas farmácias este verão

CNN Portugal , ARC
17 jun 2023, 15:00
Alimentação, distúrbio alimentar, comida. Foto: Adobe Stock

Inês é uma das portuguesas que sofre da síndrome de Prader-Willi, uma doença rara que lhe causa um “apetite descompensado”. A situação pode atingir extremos e levar as pessoas a comer "do caixote do lixo ou diretamente do congelador" . A solução é uma injeção semanal de ozempic - o medicamento que inibe o apetite e que está a ser cada vez mais usado como forma de emagrecer rápido, tendo aumentado a dificuldade de o encontrar nas farmácias. Doentes temem falhas no verão

O verão está a chegar e o “drama” que Sofia Paulo tanto teme pode vir de mãos dadas com o tempo quente. A filha Inês foi diagnosticada com Síndrome de Prader-Willi, uma doença que faz comer, comer, comer e nunca ficar saciado. A solução: ozempic, um medicamento que corta o apetite. O problema: o fármaco que se destina também a doentes com diabetes tem vindo a desaparecer das farmácias desde que se tornou popular por ajudar a emagrecer e ter um “corpo de verão”.

Foi esse o cenário com que Sofia Paulo se deparou no ano passado por esta altura. A procura era muita, a escassez ainda maior e conseguir o medicamento de toma semanal foi um “drama”. Mas quem fala nas farmácias portuguesas, diz em todo o mundo, já que o famoso inibidor do apetite anda nas bocas de várias celebridades, como os membros da família Kardashian, e fez disparar o número de interessados.

Inês, a filha de Sofia Paulo, tem 19 anos. Todas as semanas precisa de uma injeção de ozempic saída do frio diretamente para a sua barriga. É assim desde o diagnóstico de Síndrome de Prader-Willi, uma doença resultante de uma falha genética no cromossoma 15, que aconteceu quando tinha quatro anos. Mas os sinais da doença já lá estavam enquanto se desenvolvia no útero da mãe, que conta que a filha se mexia pouco e pesava menos do que o normal.

Nasceu com 35 semanas e, após testes que não a detetaram, a doença foi de imediato “despistada”, relembra Sofia Paulo, contanto que ainda assim as manifestações continuavam: não chorava, não mamava e adormecia ao biberão, o que indiciava paralisia cerebral. Aos dois anos e meio, entrou para a creche por recomendação médica. A mãe lembra que deixou a filha “de coração apertadinho” na instituição, mas diz ter voltado para casa ao fim do primeiro dia com “uma sensação de vitória”: “Ela comeu a sopa com a própria mão”.

Até que quando tinha quatro anos aconteceu o inesperado: Inês “aumentou de peso” sem se perceber bem porquê. Seguiu-se uma nova ronda de exames, que deram, por fim, luz verde à síndrome de Prader-Willi. “Foi um processo difícil, porque já estava descartado e tivemos de tirar tudo do baú”, conta Sofia Paulo, referindo-se ao primeiro resultado negativo à nascença. Após o diagnóstico, a mãe de Inês juntou-se a Catarina, mãe de outra rapariga com a doença, e fundaram a Associação Síndrome Prader-Willi Portugal.

Sofia Paulo e a filha Inês. Foto: DR

Em Portugal, segundo as estimativas há entre 400 a 500 pessoas com esta doença rara e complexa. 

O aumento de peso é uma das consequências da síndrome de Prader-Willi, devido ao “apetite descompensado”, um dos sintomas mais evidentes da doença, que, aliado ao “mau” funcionamento do metabolismo, faz engordar. “Comem este mundo e o outro e nunca estão saciados”, explica Sofia Paulo, acrescentando que, em muitos casos, “os pais trancam os armários ou não têm quase nada em casa”. A mãe de Inês vai mais longe e diz que em situações extremas, a hiperfagia - como é conhecida tecnicamente - pode levar a comer de caixotes do lixo ou diretamente do congelador.

O ozempic é “uma ajuda” para travar a apetite, mas o stock limitado nas farmácias tem tornado o percurso, já de si marcado por “altos e baixos”, num “drama”. Sofia Paulo não culpabiliza os consumidores pelo verão passado com “muitas dificuldades” e que pode voltar a enfrentar este ano, mas aponta o dedo aos laboratórios pelas pequenas doses do fármaco disponibilizadas . “É legítimo”, mas “perverso” haver pessoas que precisam do medicamento por uma “questão de saúde” e não o têm porque “não há para todos”, diz Sofia Paulo.

Para além do ozempic, Inês toma outras medicações, como uma dose diária de insulina, para fazer face à síndrome de Prader-Willi. Em causa está uma doença de origem genética - mas não hereditária - que, de acordo com a fundadora da Associação Síndrome Prader-Willi Portugal, advém de um “acidente” na concessão do cromossoma 15 paterno, que afeta o hipotálamo, responsável por dar informação do cérebro sobre o saciamento.

Apesar de tudo, a hiperfagia não é sintoma único. A ela juntam-se atrasos no crescimento e no desenvolvimento, bem como a baixa firmeza e elasticidade muscular e distúrbios do sono. Existem ainda “limitações a nível comportamental”, dá conta Sofia Paulo: dificuldade em cumprir horários, lentidão, sonolência e ansiedade. Tudo junto impacta a “autonomia” das pessoas afetadas e os “dias funcionais” e sem orientação contam-se pelos dedos de uma mão ao longo do ano. 

Incurável e rara, a síndrome de Prader-Willi atinge aproximadamente uma em cada 30 mil pessoas, de acordo com a Pfizer. Dentro da raridade, a condição de Inês é ainda mais fora do comum, já que pertence aos 25% dos casos compostos por dois cromossomas maternos e nenhum do pai. A farmacêutica multinacional afirma que o mais recorrente é a doença se manifestar através de uma incompletude do cromossoma paterno, o que corresponde a 70% das situações. Os restantes 5% são afetados por um erro de imprinting, que torna a genética do pai não funcional.

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