Há uma "obsessão em gastar o máximo dinheiro possível". Portugal tem "uma vulnerabilidade enorme" a casos como o de Manuel Serrão

19 mar, 22:00
Dinheiro

 

 

Empresário pode ser obrigado a devolver o dinheiro que recebeu dos fundos comunitários - 40 milhões de euros - ou até um valor superior

Portugal tem “uma vulnerabilidade enorme a fraudes” com fundos europeus, reconhece João Paulo Batalha, vice-presidente da associação Frente Cívica, que explica à CNN Portugal que a “obsessão com a execução” dos projetos financiados por Bruxelas acaba por “criar incentivos perversos para que o dinheiro seja gasto”, muitas vezes descurando “a utilidade dos investimentos”.

“Temos uma vulnerabilidade enorme a fraudes, desde logo porque os incentivos da parte dos vários governos portugueses é executar os fundos, ou seja, é gastar o dinheiro, e não devolver fundos à UE”, afirma João Paulo Batalha, apontando como exemplo a “discussão quase febril” que está em curso em relação à execução dos fundos do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).

No entender do responsável, as suspeitas de fraude com fundos europeus que desencadearam a Operação Maestro, que tem como elemento central o empresário Manuel Serrão, são um sintoma desta “lógica de execução orçamental de gastar o dinheiro sem avaliar para onde é que ele vai”. Esta lógica de gestão dos fundos acaba por criar “incentivos errados” e “perversos” que “facilitam a dissipação do dinheiro e não o investimento produtivo”, dando assim margem para que ocorram situações fraudulentas, como se suspeita que tenha acontecido no caso da Operação Maestro.

“Este tipo de fraude, que assenta na criação de empresas com o objetivo único de se candidatarem a projetos, receberem dinheiros e depois não executarem nada, ou fazerem um simulacro numas coisas para dizerem que executaram mas depois nada se materializa, é uma fraude tão antiga quanto a própria existência dos fundos”, argumenta o dirigente da Frente Cívica, lembrando um dos “casos inaugurais” deste tipo de fraudes com fundos europeus, e que envolveu a UGT na década de 80, logo após a adesão de Portugal à União Europeia (UE).

O processo arrastou-se durante anos nos tribunais portugueses e os dirigentes sindicais acabaram por ser absolvidos por falta de provas. Ainda assim, lembra João Paulo Batalha, a decisão dos tribunais nacionais não coibiu a Comissão Europeia de exigir a devolução do dinheiro, o que leva o responsável da Frente Cívica a antecipar um desfecho semelhante para a Operação Maestro. 

“É altamente provável. De certeza que a UE já está a acompanhar estas investigações - se não estava antes - para verificar pelo seu próprio critério se há fraude e exigir a devolução deste dinheiro, que podem ser os tais 40 milhões de euros, eventualmente até mais. E, se isso acontecer, as empresas beneficiárias, ou em última análise o contribuinte, vão ter de pagar isso à UE”, antevê o responsável, sublinhando que aquele caso da UGT prova como “a UE não fica à espera dos tribunais portugueses para tomar decisões” nesse sentido. 

Portanto, “este problema [de fraudes com fundos europeus] sempre existiu”, sublinha João Paulo Batalha, lembrando também o caso do Grupo Amorim, que foi acusado de desvio de verbas do Fundo Social Europeu na década de 90.

A solução? Acabar com a "obsessão em gastar o máximo de dinheiro possível só porque sim"

Para João Paulo Batalha, estes casos só vão acabar quando o país deixar de ter esta “obsessão em gastar o máximo de dinheiro possível só porque sim”. “Não podemos continuar obcecados com lógicas de execução orçamental que assentam em gastar o dinheiro sem avaliar para onde é que ele vai”, argumenta, apontando como solução a definição de “mecanismos de planeamento mais participados e escrutináveis”, determinando “onde é que queremos gastar o dinheiro, quais as áreas em que Portugal pode ser competitivo e onde é que estes financiamentos podem fazer a diferença em termos de desenvolvimento económico e social”.

Uma vez definidas as prioridades, importa também desburocratizar todo o processo, desde a decisão de alocação das verbas ao acompanhamento da gestão dos fundos, sugere o dirigente da Frente Cívica: “Não podemos ter uma atitude muitas vezes burocrática, que é a que temos, de colecionar papéis e relatórios e carimbos, mas de verificar objetivamente, no terreno, o que é que está a ser feito, qual a idoneidade dos candidatos, que capacidade é que eles têm de executar os projetos a que se propõem e de gerir bem o dinheiro.”

“Toda esta lógica tem de ser invertida, e isso não vai acontecer enquanto tivermos esta obsessão de gastar o máximo de dinheiro possível só porque sim”, sublinha.

Mais otimista, António Maia, presidente do Observatório de Economia e Gestão de Fraude (OBEGEF), considera que "tem havido melhorias nos últimos anos" na gestão dos fundos europeus em Portugal, até porque "as estruturas europeias têm condicionado os Estados-membros a cumprir medidas cada vez mais apertadas". No entender do sociólogo, "Portugal tem cumprido, (...) mas é preciso melhorar os mecanismos de despiste e a investigação". 

"A investigação da fraude em Portugal aparenta arrastar-se no tempo (...) e isso dá oportunidade para se dissipar o dinheiro. Às vezes até há provas e acusações, mas o valor da fraude já foi desviado e aplicado noutros projetos", diz António Maia, acrescentando que, "por vezes, aqui, o crime compensa".

Tal como João Paulo Batalha, o presidente do OBEGEF entende que devem ser criados "mecanismos de controlo em todas as fases do processo". "Quando são atribuídos os fundos, devem ser acompanhados até ao momento da sua execução efetiva", defende.

Também em Bruxelas os decisores políticos têm criado mecanismos para investigar este tipo de situações, lembra João Paulo Batalha, destacando o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF), para o qual é possível comunicar, de forma anónima, suspeitas de fraude dos fundos públicos da UE, bem como a procuradoria europeia, um organismo independente que atua essencialmente como “um Ministério Público europeu com mandato para investigar qualquer Estado-membro aderente”, descreve o responsável, sublinhando que este é um órgão de adesão voluntária (uma vez que a sua criação não foi consensual entre todos os Estados-membros) e do qual Portugal faz parte.

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