Uma casa construída com ossos, cadernos macabros, canibalismo. Como um idoso acarinhado pela vizinhança foi desmascarado

8 jul 2022, 22:46
Andrés Filomeno Mendoza, "El Chino" ou "O Canibal de Atizapán" numa imagem da série "Caníbal: Indignación Total"

Andrés Mendoza, de 73 anos, era unanimemente respeitado no bairro onde vivia. Na verdade, era o mais perigoso feminicida da história do México

Andrés Filomeno Mendoza, um idoso de aspeto frágil e bonacheirão, era um dos membros mais acarinhados de um bairro em Atizapán, México. A sua reputação imaculada concedeu-lhe o título de vigilante do bairro: foi nomeado presidente da comissão de vizinhos, controlava o acesso ao polidesportivo local, prestava ajuda à comunidade sempre que necessário. Até os traços mais excêntricos eram acolhidos como intrínsecos à sua natureza altruísta. "Partilhava quilos de carne", explica um vizinho, "com o pretexto de que lhe tinham oferecido muita carne de javali". 

Quando a polícia invadiu a casa do idoso, carinhosamente alcunhado de "El Chino", os vizinhos acorreram ao local e tentaram esclarecer a situação. Era apenas um idoso de 73 anos, franzino e inofensivo - o que poderia ter feito para ser agora levado, algemado, pelas autoridades? Perante o choque da vizinhança, a vida dupla que tinha conseguido conciliar por mais de 30 anos foi finalmente descortinada. Andrés Mendoza era, afinal, o maior feminicida em série da história do México. 

A sua figura pacata e socialmente interventiva era usada para cativar e ganhar a confiança das mulheres das redondezas. Uma vez a sós com as vítimas, assassinava-as de forma particularmente calculista e metódica: esquartejava-as, estudava as diferentes partes do corpo e até - provavelmente - ingeria a carne. O que resta dos corpos permite identificar somente 19 vítimas, mas as autoridades acreditam que poderá ter vitimizado mais de 50 mulheres. 

"El Chino" - agora conhecido como "O Canibal de Atizapán" - só viria a ser detido na sequência do assassinato de Reyna González, a mulher do chefe da polícia municipal. O agente enlutado comprometeu-se a solucionar o mistério do desaparecimento da esposa e seguiu todas as pistas disponíveis - que acabaram por conduzi-lo a um desfecho por todos inesperado. 

Uma casa de horrores

Quando a esposa desapareceu, Bruno González recorreu à sua influência enquanto chefe da polícia para agir de imediato e examinar minuciosamente os últimos momentos da vida da mulher. As pistas fornecidas pelas câmaras de vigilância da zona e o GPS do telemóvel de Reyna terminavam no mesmo local: os vestígios desapareciam na rua Margarita, perto da casa onde vivia o respeitado ancião.

"El Chino" era amigo da família e presença assídua nas festas organizadas pelo casal. Bruno estranhou, portanto, quando o idoso recusou abrir a porta e deixá-lo entrar. Perante a insistência do polícia, mostrou-se crescentemente incomodado e ameaçou que iria usar as suas "influências políticas" para o afastar. 

Mas, afinal, foi a posição de destaque de Bruno González na polícia municipal que ditou o rumo dos acontecimentos. Nessa mesma noite, um grupo de agentes deteve-se perante a casa - humilde e rudimentar, construída pelo próprio ancião, com o "número 22" escrevinhado no portão azul - e entrou, sem autorização. 

Dois quartos da moradia tinham sido arrendados. O quarto de "El Chino", ao fundo de um corredor, não indiciava vestígios de crime. Porém, numa das esquinas do corredor, os agentes detetaram algo curioso, quase despercebido: um alçapão. E, quando aberto, umas escadas de madeira que desapareciam na escuridão de um piso subterrâneo. 

Os polícias desceram até à cave, tão escura e decrépita quanto as escadas rangentes já faziam adivinhar. Iluminado, o cenário era ainda mais nauseante. As esquinas estavam atulhadas de lixo e, no centro, encontrava-se uma mesa com "um pedaço de carne mordido e uma tortilha", como relatado por Jonathan J. González, o comandante dos bombeiros. "Encontrámos utensílios de cozinha com sangue, presumivelmente das pessoas que assassinava. No teto, tinha um pedestal de madeira onde colocava a câmara e se filmava". 

Uma enorme diversidade de provas, que iam desde documentos de identificação e telemóveis a roupa e acessórios, revelaram de imediato a identidade de algumas das mulheres que acabaram ali, esquartejadas sobre a mesa, vítimas da confiança depositada no idoso. Para além dos pertences das vítimas, os agentes recolheram um enorme catálogo que documentava o horror guardado naquelas quatro paredes: 50 cassetes VHS e 70 fotografias. 

O interesse de Andrés Mendoza por anatomia poderá dever-se à profissão que exercia antes da reforma - talhante. O local de tortura parecia ser, também, um local de estudo para o idoso. Dispunha de vários livros de anatomia, duas balanças, uma faca de cozinha e cinco cadernos. Em cada página, tinha inscrito à mão detalhes aterradores do corpo das vítimas. 

"Carolina. O seu peso é 95 quilos. Partiu para o outro lado no domingo, dia 6 de abril, ao amanhecer. Cabeça, 5 quilos. Ambos os braços, 12 quilos". E as descrições das mulheres continuavam por centenas de páginas, numa análise tão crua e pormenorizada que relembra os vilões dos ecrãs de cinema, como o canibal Hannibal Lecter ou o temível Buffalo Bill que vestia, literalmente, a pele das vítimas. Os primeiros registos datam de 1991, o mesmo ano em que estreou o filme "O Silêncio dos Inocentes", e alguns especialistas acreditam que não será mera coincidência

Tal como as facetas antagónicas de "El Chino" e "O Canibal de Atizapán", também o resto da casa - simples e tranquila, coabitada por inquilinos - parecia contrastar com o palco de violência aparentemente centrado à cave. As autoridades só compreenderam a verdadeira dimensão do horror que a habitação encerrava quando começaram a desmoronar as paredes. Verificaram, então, que a casa tinha sido construída com os restos ósseos das vítimas, posteriormente cobertos por cimento. A simpática moradia, número 22 da rua das Margaritas, era na verdade um "autêntico cemitério" oculto em plena vista. 

"Quando tiraram as paredes de cimento do banho, encontraram ossos", atesta o cineasta Grau Serra, realizador do documentário sobre o caso que está a abalar o México. "Ele construiu a casa, e com certeza que foi incorporando os restos das vítimas". 

Como justificar a total impunidade de André Mendoza durante décadas? Como poderiam os vizinhos não compreender que aquele idoso era, na verdade, um implacável feminicida e canibal? Para Grau Serra, a explicação é evidente: fomentava uma reputação cuidada, mostrando-se interessado e prestável perante a comunidade ("era muito exigente com a segurança, queixava-se de que não havia patrulhas suficientes", comenta um agente da polícia). E, principalmente, beneficiava de poderosas ligações políticas. Era amigo do presidente da Câmara, tinha acesso privilegiado a recursos públicos, geria e solucionava as queixas apresentadas pela comunidade. As mulheres de Atizapán desapareciam sem retorno, os vizinhos afixavam cartazes pelas ruas, e ninguém ousava contestar a sua autoridade ou presumir algo mais do que a sua total inocência. 

A impunidade

O México acolhe recorrentemente protestos, marchas e manifestações pela dignidade e respeito pela vida das mulheres. A estatísticas, porém, são cada vez mais soturnas. Dez mulheres são assassinadas todos os dias no país e outros tipos de violência - como abuso sexual e agressão em contexto doméstico - têm vindo a registar uma tendência crescente. 

Ainda assim, apenas um terço destas mortes são oficialmente reconhecidas como feminicídios, o que motivou Grau Serra a realizar a série documental "Caníbal: Indignación Total".

"O objetivo desta série é provocar, mostrar que não é preciso parecer um monstro para ser um feminicida." 

No caso do feminicida de Atizapán, a justiça viu-se cumprida. No passado mês de março, Andrés Mendoza foi condenado a prisão perpétua pelo assassinato de Reyna González, a última vítima. Com base nos registos recolhidos pela casa, foram-lhe atribuídas pelo menos mais 18 vítimas - mas, segundo o realizador, muitas outras mulheres continuam por identificar. "Há no mínimo 50 mulheres naquela casa, e no entanto ainda não se escavou o chão da cave nem a casa da irmã", critica. 

No âmbito do documentário, Grau Serra teve a oportunidade de entrar na prisão onde o feminicida cumpre a pena e, qual Clarice Starling, colocar-lhe questões. Perguntou-lhe, sem rodeios, se alguma vez tinha comido carne. Não, respondeu peremptoriamente o recluso. Depois desviou o olhar para o chão, arranhou a mesa nervosamente, levou a mão à testa.

Por fim, perguntou se poderiam passar para a próxima pergunta.

 

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