"A ideia de que a minha filha está protegida no quarto e ninguém lhe faz mal não está correta." Há menores a serem violados na realidade virtual e em Portugal pode ser considerado crime

30 jan, 07:00
Meta (AP)

Muitos ficaram surpreendidos com a investigação da polícia britânica à violação de uma adolescente no metaverso. Foi o avatar da menor que foi alvo da agressão, mas as autoridades consideraram que os danos eram reais e visíveis. Em Portugal também poderia ser aberta uma investigação. Isso mesmo confirmou à CNN Portugal a Polícia Judiciária, numa entrevista exclusiva sobre este tema

“O mundo virtual tem impacto real”, afirma à CNN Portugal Carlos Farinha, Diretor Nacional Adjunto da Polícia Judiciária. Esta é uma afirmação que não deixa dúvidas. Em Portugal nunca houve um caso semelhante ao da menor britânica, que terá sido vítima de uma violação em grupo durante o jogo Horizon Worlds no metaverso, mas na sua opinião a lei nacional permitiria a abertura de uma investigação. A dúvida estaria apenas no tipo de crime.

“Nesta questão do avatar julgo que pode haver algum acolhimento. Não digo que não pudesse constituir um crime de violação, mas ia ser difícil de atender na forma, nas circunstâncias exatas”, explica. Mas “a legislação admite, é possível, pelo menos, conduzir” o caso para o considerar “um crime sexual. Um abuso sexual de menor, por exemplo”, defende.

Não só porque o ato “tem uma pessoa por trás, assim como o próprio avatar representa alguém”. E “essa representação pode, sobre essa pessoa, provocar danos ao colocar em causa o direito à autodeterminação sexual e à liberdade sexual. Não são só danos de natureza física, mas também danos de natureza psicológica”, acrescenta este responsável da Polícia Judiciária.

“O metaverso já está mais à frente daquilo que o nosso legislador pensou. Mas o nosso legislador já pensou em muitas coisas”, assume Carlos Farinha. E exemplifica, em termos abstratos, que se alguém constranger outra pessoa, “se o indivíduo ‘A’ fizer com que a pessoa ‘D’, contra a vontade dela, tenha atos sexuais com ela própria, está a cometer um crime” e a pessoa “está a ser vítima de um crime”. Não interessa se a ameaça é presencial, por telefone, por comunicação digital.

Para Carlos Farinha não deixa de ser curioso que “a criminalidade sexual” seja o “segmento onde mais modificações têm ocorrido nos últimos 30, 40 anos” ao nível da legislação.

“Há uns anos estávamos todos presos no conceito cópula, estávamos todos no conceito redutor de que tinha de haver um contacto físico e, em regra, entre homem agressor e mulher vítima. Mas isto foi há muito tempo”. 

E a realidade de hoje é muito diferente. “Os conceitos foram-se abrangendo, foi-se deixando de lado a ideia de cópula, o ponto de vista heterossexual. Começou a penalizar-se a introdução ou a utilização de objetos, foram-se penalizando outros tipos de coito que não apenas a cópula. Tudo isto fez com que a vítima pudesse passar a ser o homem, e não apenas a mulher. Hoje o legislador já admite isto e até já admite que nem haja qualquer tipo de contacto físico”.

"As perseguições, os constrangimentos as exposições”

O mundo evoluiu e os conceitos também. Tal como a sociedade. “Aquilo que antigamente se valorizava já não faz sentido, mas, em contrapartida, faz sentido valorizar-se outro tipo de coisas. O digital, o online não existia. Hoje, além de existir, tem impacto sobre pessoas e sobre o real. As perseguições, os constrangimentos, as exposições”.

Atualmente há conceitos que vão além do sentido literal da palavra: “Há, infelizmente sei de alguns casos, miúdas que têm sido violadas ‘entre aspas’, não no conceito mais literal da palavra, mas violadas pela exposição da sua intimidade. Imagens que expuseram num contexto de confiança a um namorado ou amigo e depois ele publicitou para a escola toda. O impacto sobre aquela pessoa foi de uma vergonha absoluta, de uma incapacidade para continuar naquele meio, uma depressão”. Ou seja, “o bullying e essas exposições são dramáticas para as miúdas e os miúdos”.

Para o Diretor Nacional Adjunto da PJ “quando temos muitas dúvidas sobre isto, temos de voltar ao básico. E o básico é quais são os bens jurídicos que estão na nossa criminalidade sexual? É o direito à liberdade sexual, é o direito ao crescimento livre para a autodeterminação sexual. E os menores têm uma liberdade reduzida”.

E no caso de algumas idades, a lei nunca tem dúvidas. “Se um menor de 13 anos quiser ter um ato sexual com alguém maior de idade, o maior comete um crime. Porque o consentimento do menor é diferente. Nada disso é relevante, porque se considera que ele ainda não se autodetermina e também se considera que aquilo vai prejudicar a sua autodeterminação”, acrescenta.

É por isso que na sua opinião, uma situação igual à da menor britânica, seria investigada. “Há pessoas por detrás daqueles avatares e há pessoas a serem impactadas por aqueles avatares. Eu diria que a nossa jurisprudência, com a lei que tem, podia chegar lá”.

No entanto, Carlos Farinha não tem dúvidas que “o melhor é que o legislador reflita sobre como é que deve atualizar a legislação para que depois não seja preciso um grande esforço jurisprudencial. Temos de refletir sobre o que é que não temos, sobre o que é que ainda falta legislar sobre a matéria”.

“O mundo virtual tem impacto real. Tem impacto real, é determinado por pessoas e dirige-se as outras pessoas”, defende o responsável da PJ. “Portanto, esta digitalização da nossa sociedade e a virtualização da nossa sociedade vem-nos colocar desafios para nova regulamentação, no sentido de obter os mesmos valores, os mesmos princípios” seja em que ‘mundo’ for.

E para os pais, Carlos Farinha deixa um alerta. “Aquela ideia de que a minha filha está protegida no quarto e que ninguém lhe faz mal não está correta. Se calhar está muito mais exposta estando fechada no quarto do que andando a passear”.

Outros casos, outros crimes

O caso da adolescente britânica alvo de uma violação virtual, divulgado pelo Daily Mail, não é único. Há registo de mais situações no Reino Unido e também nos Estados Unidos. A jovem, com menos de 16 anos, ou melhor, o seu avatar, foi atacado durante o jogo Horizon Worlds e abusado sexualmente por um grupo de desconhecidos. Foi uma violação virtual em grupo. Apesar de fisicamente não haver qualquer dano, as autoridades britânicas consideram que ela ficou psicologicamente e emocionalmente afetada como alguém que tivesse sido violada no mundo real. E, por isso, abriram um inquérito. Muitas vozes levantaram dúvidas sobre a decisão.

Em 2022 foi também notícia outra situação que envolvia uma mulher. Este caso foi revelado no relatório “Metaverse: outra fossa de conteúdo tóxico”, elaborado pela organização sem fins lucrativos SumOfUs, que se dedica a abordar questões como os direitos humanos e o poder corporativo. 

A mulher garantiu que foi "violada" no metaverso do Facebook durante uma festa privada enquanto outros utilizadores assistiam. O relatório descreve o caso com algum pormenor, revelando a natureza sórdida da situação. E a ida desta vítima ao metaverso começou por ser um estudo sobre o comportamento dos utilizadores no Horizon Worlds, mas depressa culminou numa violação e numa experiência emocional tão confusa quanto traumática. A investigadora entrou no espaço virtual da Meta, mas nem uma hora depois o seu avatar já estava a ser violado.

Mas os crimes sexuais não são os únicos. Nos últimos anos a Interpol tem estado atenta ao mundo virtual e já em 2022 admitia estar a preparar-se para o risco de ambientes imersivos online – como o metaverso – criarem novos tipos de cibercrimes ou permitir que os atuais ganhem uma maior escala.

Madan Oberoi, diretor executivo de tecnologia e inovação da agência, afirmou na altura que “alguns dos crimes podem ser novos para este meio, mas alguns dos crimes existentes serão habilitados pelo meio e levados a um novo nível”. Phishing, burlas, mas não só: “Se um grupo terrorista quiser atacar um espaço físico, eles podem usar esse espaço para planear, simular e lançar exercícios antes de atacar”, afirmou.

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