Países árabes esqueceram-se da Palestina? Todos têm “muita pena do povo, mas ninguém o quer receber”

28 nov 2023, 07:00
Uma rapariga olha para os escombros de um edifício atingido por bombardeamentos israelitas em Rafah, no sul da Faixa de Gaza, a 31 de outubro de 2023. Mohammed Abed/AFP/Getty Images

Exigem o levantamento do cerco israelita a Gaza, mas não abrem as fronteiras de Rafah. Exigem o fim da venda de armas a Israel, mas não hesitam em comprá-las a Telavive. Alguns dos principais aliados palestinianos podem estar dispostos a fechar os olhos ao fim do Hamas

As palavras são duras, mas as ações continuam inexistentes. Alguns dos principais países árabes condenam Israel pelo rasto de morte e destruição deixado em Gaza – cerca de 15 mil pessoas já terão perdido a vida em pouco mais de um mês de combates – mas nenhum arriscou dar a mão ao Hamas. Alguns podem até estar dispostos a fechar os olhos ao fim da organização terrorista para “virar a página” no Médio Oriente de uma vez por todas.

“Existe pouca vontade de ir para lá da retórica, por parte dos países árabes. A grande maioria não tem qualquer interesse que o Hamas prevaleça neste conflito e há uma grande vontade de virar de página. Por isso, surge a condenação por defeito”, explica o professor Francisco Pereira Coutinho, especialista em Relações Internacionais.

Foi isso que aconteceu quando um grupo de 57 países maioritariamente muçulmanos se reuniram de emergência em Riade para debater soluções para o conflito. Poucas coisas unem com tanta facilidade o muito fraturado mundo muçulmano como a questão palestiniana. Prova disso é a declaração conjunta que surge no final do encontro, onde estes países exigem o “fim imediato da agressão” israelita, pedem o “levantamento do cerco” à Faixa de Gaza, uma investigação aos crimes de guerra e o fim da venda de armas a Israel.

Mas o cerco a Gaza é mantido, em parte, com a ajuda de um dos principais signatários da declaração: o Egito. Mas esta não é a única contradição do documento. Nenhum dos países da Organização Islâmica da Cooperação vende armas a Israel. Pelo contrário, países como os Emirados Árabes Unidos, o Bahrain e Marrocos, que normalizaram relações com Israel apenas em 2020, são responsáveis por 24% das compras de armamento israelita. Estas relações rendem cerca de três mil milhões de euros por ano a Israel.  

Muitos países islâmicos não veem a existência do Hamas com bons olhos. A visão da nova geração de líderes na região passa por projetos económicos prósperos e inovadores, que não estejam exclusivamente dependentes do petróleo. Para concretizar esta visão, estes governantes procuram normalizar relações com Israel e trazer estabilidade a uma zona do globo marcada por décadas de conflito. Este modelo faz da organização considerada por muitos de terrorista um sério obstáculo à paz. Vários Estados árabes gostariam de ver o Médio Oriente mudar de rumo e ver um dos principais grupos apoiados pelo Irão sair enfraquecido do conflito, ainda que não o admitam publicamente.

"Havia um projeto de aproximação do mundo sunita com Israel. Muitos países já entenderam que não faz sentido ter um diferendo permanente com Israel", refere o major-general Isidro de Morais Pereira.

A agravar esta posição está o facto de um dos maiores patrocinadores das atividades do Hamas ser o Irão, que tem uma longa história de rivalidade com a Arábia Saudita. Esta realidade é bem visível na ausência de uma retaliação económica por parte da monarquia saudita, uma arma que não se poupou de utilizar no passado. Em 1973, durante a guerra do Yom Kippur, o rei saudita Faisal ordenou um embargo contra todos os países que apoiavam Israel, levando a uma das mais severas crises inflacionárias da história dos Estados Unidos da América. Esse cenário foi prontamente afastado pelo ministro do Investimento saudita.

“A Arábia Saudita tem tido uma postura muito cínica até agora. Têm protegido os seus interesses económicos. A Arábia Saudita preparava-se para criar relações diplomáticas com Israel e, apesar das palavras, não houve qualquer rutura”, recorda o major-general Isidro de Morais Pereira.

As poucas reações concretas das nações árabes vieram do campo diplomático. A Turquia de Recep Tayyip Erdogan, que também seguia no caminho de normalização de relações com Israel, cortou relações diplomáticas com o executivo de Benjamin Netanyahu, ao ordenar o regresso do seu embaixador em Telavive para “consultas” devido à “tragédia humanitária em Gaza”. Jordânia e Bahrain seguiram o mesmo caminho, mas o apoio árabe, até ao momento, não passou do campo diplomático.

Do ponto de vista militar, além do Hamas, as únicas ameaças sérias à segurança de Israel poderiam vir dos militantes do Hezbollah, no Líbano, e da Síria de Bashar al-Assad. Mas a Síria continua demasiado enfraquecida, depois de 11 anos de guerra civil. Já o Hezbollah, um movimento islamista apoiado pelo Irão e que possui uma das forças paramilitares mais poderosas do Médio Oriente, viu o seu líder condenar com veemência as ações israelitas e a deixar “todos os cenários em aberto”. No fundo, Sayyed Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, apenas admite intervir se Israel escalar. Os especialistas defendem que esta linguagem é propositadamente ambígua.

“O Irão não quis sacrificar o Hezbollah. Nasrallah o que diz é que se Israel não escalar, não vão intervir militarmente. Aparentemente, esse risco não é muito elevado. Só haverá ataque se for cruzada alguma linha vermelha, se ocorrer uma limpeza étnica”, explica Francisco Pereira Coutinho.

Ainda assim, qualquer decisão de cariz militar a acontecer contra Israel e os seus aliados teria de passar pelo Irão. Durante a cimeira que reuniu os países árabes, a liderança iraniana apelou ao envio de armamento para apoiar o Hamas. Este pedido foi largamente ignorado.  

Mas um dos países em melhor posição para prestar auxílio aos palestinianos presos no território de Gaza é o Egito. Este país tem o controlo parcial da única saída que não é totalmente controlada por Israel, a passagem de Rafah. Historicamente, o Egito tem sido um dos maiores aliados da causa palestiniana, no entanto, o presidente Abdel-Fattah al-Sisi teme que a entrada dos refugiados palestinianos no país signifique a conquista deste território por Israel.

Esta hipótese teria consequências internas difíceis de prever. A economia egípcia encontra-se numa situação fragilizada, com o crescimento a cair e a inflação a comer o poder de compra da população local. A piorar a situação, o governo de al-Sisi já se encontra a lidar com uma crise de refugiados a sul, devido à guerra civil no Sudão. Ao todo, o Egito já recebeu 250 mil pessoas, apenas uma fração dos dois milhões que fogem dos confrontos em Gaza. Além disso, existe o receio de que a chegada de centenas de milhares de refugiados palestinianos incendeie um dos principais rivais da fação militar que al-Sisi chefia, a Irmandade Muçulmana.

Uma mensagem semelhante veio de Abdullah II, rei da Jordânia, que, nos primeiros dias da guerra, garantiu que não aceitaria refugiados na Jordânia, pelos mesmos motivos que o Egito: o seu regresso a Gaza está longe de estar garantido. Abdullah e Al-Sisi acreditam que Israel se prepara para “eliminar a causa palestiniana”.

“Compreendo os motivos de Al-Sisi. Temos de ter em conta a memória coletiva do Nakba. As pessoas que estão em campos de refugiados permanecem lá 75 anos depois. Egito quer evitar um deslocamento forçado, uma saída de palestinianos iria criar problemas”, reforça o professor Francisco Pereira Coutinho.

Apesar de ter acontecido há 75 anos, o fantasma do Nakba, ou "A Catástrofe", continua a pairar sobre os países vizinhos, quando mais de 700 mil palestinianos foram forçados por Israel a deixar as suas casas e as suas terras, levando à guerra entre o recém-formado Estado de Israel e uma coligação de países árabes. Muitos destes palestinianos continuam a viver em campos de refugiados, numa situação que acabou por ser verdadeiramente normalizada, décadas depois. O Egito quer evitar a todo o custo uma situação semelhante.

Mas essa escolha tem um preço, pago com vidas palestinianas. Quase 50 dias depois de ter começado o conflito, 1,7 milhões foram deslocados, perto de 15 mil pessoas morreram, na sua maioria civis, e 33 mil foram feridas. É um povo "praticamente abandonado" pelos seus vizinhos e aliados. “O mundo árabe não é monolítico e é altamente dividido. Toda a gente tem muita pena do povo palestiniano, mas ninguém o quer receber”, frisa o major-general Isidro de Morais Pereira.

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