Já lhe chamam "Banglatown" e foi o cenário escolhido para uma marcha xenófoba. Um dia na Rua do Benformoso, onde os portugueses "são boa gente" e os imigrantes "ajudam velhinhas"

3 fev, 08:00
Rua do Benformoso, Mouraria (Foto: Rodrigo Cabrita)

Aqui há talhos Halal, lojas de conveniência, barbeiros, restaurantes do Bangladesh, Índia, Nepal ou Paquistão. O que já há pouco são negócios nacionais: “Portugueses aqui já são muito pouquinhos”, dizem os que restam. Ainda assim, as comunidades coabitam sem problemas maiores apesar do tráfico de droga e da prostituição. A "marcha contra a islamização da Europa" não está a passar despercebida, mas a comunidade imigrante está unida pelo mote: "Ninguém responde"

São precisos poucos mais do que 350 passos para percorrer a Rua do Benformoso, que liga o Martim Moniz ao Largo do Intendente, cenário escolhido por grupos de extrema-direita para uma "marcha contra a islamização da Europa", que a Câmara de Lisboa acabou por não autorizar, mas que vai realizar-se na mesma, ainda que com um local diferente - Mário Machado apontou para as 18:00 no Largo Camões. A calçada é antiga, cinzenta, contrastando com o alcatrão recém-colocado ou com a polémica ciclovia verde da Avenida Almirante Reis, mesmo ali ao lado.

O comércio impera, há mais de 100 lojas, a maioria de conveniência, mas sempre com produtos exóticos; restaurantes em que o kebab é rei e senhor; barbearias com cortes de cabelo a cinco euros; e lojas de telemóveis, famosas pelas baterias ou vidros que se trocam em minutos e com capas coloridas para todos os gostos e feitios.

Entrada da Rua da Benformoso a partir do Martim Moniz (Direitos Reservados)

O cheiro a especiarias sente-se no ar e pelos estreitos passeios veem-se essencialmente imigrantes do sexo masculino que, entre si, falam em árabe. Entre as portas das lojas, há vendedores de rua com dois cestos - um com folhas verdes de Areca do tamanho de uma mão e outro com uma espécie de raiz seca e doce de cor encarnada. A forma de consumo é semelhante à do tabaco de mascar: mete-se na boca, mastiga-se e, passados alguns minutos, cospe-se.

Aqui, o anúncio da marcha contra a islamização da Europa não passou despercebido, mas o silêncio reina. Tanto portugueses como estrangeiros preferem não dar a cara, não ser identificados e são vários os que recusam entrevistas. Mahomed Farrouk, um dos poucos que aceitou conversar com a CNN, emigrou para Portugal em 1999 e diz que, nestes 25 anos, nunca viu “uma coisa destas de haver um grupo contra muçulmanos”.

“Agora, ouvi que vai passar aqui uma marcha contra os muçulmanos. Não sei, vamos ver. Nós não fazemos mal a ninguém. Eu trabalho, toda a gente do Bangladesh está a trabalhar para viver às suas próprias custas e até ajudamos o Governo. Porquê nós?”, questiona Farrouk, em português.

Mohamed Farrouk em frente ao seu restaurante (Direitos Reservados)

Farrouk fala a língua nacional do país que o recebeu, mesmo que os arranjos gramaticais não sejam perfeitos. Lembra o início da jornada pela tão desejada “vida melhor”, lembra-se de que quando chegou não havia muitos imigrantes do Bangladesh naquela zona da capital nem em Portugal, recorda que trabalhou nas obras e que até chegou a ser feirante por menos de mil euros por mês.

Confessa que a motivação para emigrar se prendeu com as dificuldades no Bangladesh, onde “há muita gente e pouco trabalho”. Hoje, tem três lojas, um restaurante, um minimercado e uma loja de conveniência, onde trabalham 15 funcionários. A cada três meses Farrouk diz que paga quase sete mil euros às Finanças, e faz ainda os pagamentos à Segurança Social: “Portugal é bom para viver, para quem respeita a lei."

Das mais de 100 lojas, contam-se pelos dedos da mão as de outros tempos. Numa delas, de roupa e acessórios, no início da Rua do Benformoso, as três lojistas, que pediram para não ser identificadas, queixam-se da insegurança, do tráfico de droga, da prostituição e de como isso se reflete nas contas: “As pessoas têm medo de vir para aqui, os nossos clientes antigos já não vêm.”

“À porta da minha loja vende-se droga. Já mandei e-mails para todo o lado a pedir mais policiamento. Aqui vê-se de tudo. Estou aqui há 30 anos, mas isto está a tornar-se pesado. Estou cansada. Já nos convencemos que estamos a trabalhar em Chinatown, ou melhor, em Banglatown”, dizem, completando-se em concordância.

Acabam por confessar que nem discordam da manifestação, entretanto remarcada para o Largo do Camões, também em Lisboa, porque "estão contra os que andam aqui para baixo e para cima, não fazem nada e nem falam português”. Para estas funcionárias, os portugueses estão a optar “por ir dali embora” e anteveem que “isto vai acabar por deixar de ser dos portugueses”.

Há barbeiros, lojas de telemóvel, minimercados, restaurantes e até talhos Halal, onde o método de abate é definido pelas regras do Islão (Direitos Reservados)

Uma das lojistas apresenta-nos o dono de uma retrosaria, que prontamente assegura não ter qualquer problema em ser identificado. Chama-se António Barroso, tem 71 anos e garante que “não tem nada contra” os imigrantes do Bangladesh, apesar de os portugueses que por ali andam já serem "muito pouquinhos".

“Essas pessoas são os meus vizinhos, são os meus empregados, são os meus inquilinos e, em termos sociais, eu não tenho nada contra eles. São amáveis, ajudam-nos, e eu ajudo-os. O único problema que tenho são os hábitos deles. Pronto. Um é o barulho”, explica o "senhor Barroso", como é conhecido por todos, sejam compatriotas ou imigrantes.

O "senhor Barroso" vive na Rua do Benformoso e conta que “aqui não há leis nem há regras nenhumas”, que os estabelecimentos fecham às horas que querem, que há gritos na rua, que à noite para ouvir a televisão tem de fechar a janela, porque o “barulho é ensurdecedor”. Depois de as lojas fecharem, “começam os drogados que até às 02:00 andam a gritar uns com os outros, ou seja, não se consegue dormir em condições”, descreve.

Mas não é só o barulho na rua que o incomoda. Há também o lixo e “a rua está sempre porca”. “Eles têm os hábitos deles e continuam sempre a tê-los, o lixo é posto na rua de qualquer maneira e feitio”, lamenta. Já a segurança, ou melhor a falta dela, não lhe tira o sono. "É muito raro" haver algum tipo de confusão ou confrontos, garante. "Quer dizer, já houve umas zaragatazitas entre eles, umas facadas, mas isso foi só uma vez ou duas. Não é esse o problema, porque eles são pacíficos. Vou para casa à meia-noite, à uma da manhã, a rua está cheia e não tenho problemas em termos de segurança”, defende o "senhor Barroso".

Tem, por isso, dedos a apontar quando se trata de falar da polémica marcha anti-imigração, culpando “o grande burburinho provocado pelos partidos de esquerda”, mas lembrando também que esta não seria sequer uma marcha inovadora: “O Mário Machado já cá veio duas ou três vezes, já fez uma manifestação aqui na Rua da Palma.”

“Evidentemente que a polícia controlou a situação. Não houve zaragata. Já fizeram uma reunião, uma manifestação aqui no Martim Moniz. Também não houve nada. Já vieram aqui fazer a abertura da campanha do Chega. Veio cá o André Ventura, entrou aqui na rua e os imigrantes do Bangladesh foram todos para a beira dele bater palmas e coisas do género. Só quando houve alguém que disse que o Ventura era de direita, aí é que eles se aperceberam. Porque de resto eles pensavam que ele era o presidente da Câmara. Portanto, vamos lá ver uma coisa, as pessoas são boas”, garante o morador da Benformoso.

Antes de almoço, António Barroso passa pelo último café que pertence a uma portuguesa. O pequeno estabelecimento está quase vazio, atrás do imponente balcão de metal só está a dona e nas duas mesas encostadas à parede estão sentadas duas mulheres já de cabelos brancos. As três moram na Mouraria e no Martim Moniz e preferem não ser identificadas. 

A proprietária explica que "não se sente insegura" e que os que vieram do Bangladesh não são de arranjar confusões. Uma das clientes, a mais idosa, conta que, naquela mesma manhã, quando foi deitar o lixo fora um imigrante gentilmente o fez por ela sem que pedisse: "Viu uma velhinha manca com um saco e ajudou-me logo". Acrescenta que lhe tentou dar uma compensação monetária, apesar desta nunca ter sido pedida e que a mesma foi rejeitada. "Eu cá não gosto deles", interrompe a outra cliente, que pede desculpa pela honestidade rompante, relembrando outros tempos: "Qualquer dia não há portugueses."

Numa loja de conveniência mais à frente, atrás do balcão está um imigrante vindo da Índia. Aceita a entrevista com duas condições: não ser identificado e ser feita em inglês. De cabelo espetado e com a barba como tantos outros portugueses, conta que chegou a Portugal em 2019, é hindu e, passados cinco anos, mantém a opinião de que os "portugueses são boa gente".

Tem 26 anos, diz que nunca foi alvo de nenhum ato de xenofobia e quer ficar em Portugal. Diz que está legal no país e que a legalização foi um "processo fácil". O patrão é do Bangladesh e, apesar de o mesmo não estar presente, também o considera "boa gente".

Este sábado, com ou sem marcha anti-imigração, garante que a sua loja vai estar aberta. "O único problema de Portugal são os chineses, há demasiados chineses", diz o imigrante em tom de brincadeira, garantido que acredita que o país tem e deve oferecer oportunidades a "todas as pessoas".

Rua do Benformoso chegou a ter uma forte presença de lojas geridas por imigrantes de nacionalidade chinesa, mas, tal como as portuguesas, são cada vez menos (Direitos Reservados)

"Os chineses também estão a ir embora, o negócio está mau, e nós também vamos embora", anuncia a dona de uma das poucas lojas de portugueses. Também não quer ser identificada e não quer que o espaço seja fotografado, porque está tudo acertado com um cidadão do Bangladesh, só falta assinar o contrato, empacotar tudo e fechar a porta.

Lídia Rosário tem 51 anos e é a funcionária desta loja. Pensativa, como se recordasse os 40 anos passados na Rua do Benformoso, constata que "o Martim Moniz mudou". As queixas são as mesmas: o tráfico de droga "mesmo em frente à porta da loja" e os polícias que são poucos. Mas garante que nunca lhe "fizeram mal" e que "quando tem de levantar a voz respeitam". Para Lídia, a solução passa pela revisão das políticas de imigração e pelo reforço do policiamento: "Os clientes dizem que têm medo de vir para o Martim Moniz."

A Rua do Benformoso ganhou fama e conseguir um táxi já não é tarefa fácil para quem mora aqui, como conta António Barroso, que, mais do que uma vez, em vez de ser deixado à porta de casa teve de ficar na praça de táxis do Martim Moniz: "Há taxistas que têm medo de vir aqui. Não sei porquê, mas têm. Já ouvi frases como 'aquilo não é uma rua, aquilo parece mais o Paquistão'".

Numa das dezenas de loja de telemóveis, trabalha um paquistanês, que também pediu para que o nome não fosse divulgado. Trabalha na loja, mas não mora no Martim Moniz nem na Mouraria. Não fala português, mas domina o inglês. Tem 33 anos e um aspeto jovial. Chegou a Portugal em 2017, vive na Parede, em Cascais, e confessa que não compreende alguns contrastes no nosso país: "Quando acordo todos os dias vejo alguém a limpar a rua, porque é que isso não acontece aqui? Isto é um esgoto a céu aberto." A retórica prossegue entre capas coloridas e carregadores: distribui culpas pela autarquia e por quem ali vive e trabalha, porque "também têm responsabilidade, também podem sujar menos".

Diz que em Cascais não há tráfico de droga nem prostituição na mesma quantidade e lembra que este dois negócios são "Haraam" - termo utilizado para definir tudo o que é proibido pelo Islão.

"Não somos nós que consumimos drogas nem recorremos à prostituição, a nossa religião não o permite. Nós odiamos drogas e prostituição", sublinha em tom assertivo.

Tal como o vizinho indiano, também aponta o dedo à China, mas considerando que os "chineses têm de falar mais" em prol dos direitos dos imigrantes em Portugal, e que não o fazem. 

"Portugal é um local seguro. Uma espécie de ilusão que só se vê na internet", descreve o paquistanês, justificando que é, por isso mesmo, que há centenas de milhares de cidadãos do Paquistão, Bangladesh e da Índia a viver no país.

Também a sua loja estará aberta este sábado e, perante o que quer que possa acontecer, aproveita para garantir que a maioria dos imigrantes da Rua Benformoso estão legais. Conta que "trabalham 12 horas por dia por uma vida melhor" e que, "do que ganham, ainda enviam a maior parte para o país de origem": "Estamos aqui pelas nossas famílias", afirma, emocionado.

Com ou sem manifestação, esta porta vai permanecer aberta no dia 3 (Direitos reservados)

O "senhor Barroso" é um dos rostos mais conhecidos na Rua do Benformoso e não é por ali viver desde os anos 60. Está em disputa com a Câmara Municipal de Lisboa desde 2012, depois de ter sido expropriado de dois prédios de três andares na mesma rua, para que fosse construída a nova mesquita da Mouraria. Em troca, a autarquia ofereceu-lhe cerca de 400 mil euros. O "senhor Barroso" conta que rejeitou e que hoje os edifícios estão em nome da CML, apesar de continuar a pagar os empréstimos ao Montepio. Com tanta despesa, e o negócio que "vai mau", o dinheiro escasseia e o "senhor Barroso" assume que “vive de favores” dos seus inquilinos, como “um senhor do Bangladesh”, mais precisamente Mohamed Farrouk, de quem já falámos.

“Está sempre a dizer que quer que eu vá almoçar ao restaurante dele, mas só vou lá lanchar. Quase todos os dias. Vou lá lanchar e não pago. Os senhores estão-me a ajudar. O senhor tem um supermercado em frente e é de lá que trago as frutas e os legumes para comer em minha casa. Portanto, vamos lá ver uma coisa. Eu não tenho razão de queixa das pessoas. As pessoas são boas. Agora, evidentemente, têm certos hábitos que realmente não condizem connosco”, reitera.

António Barroso fixou no prédio vários cartazes com críticas à Câmara Municipal de Lisboa e ao então autarca Fernando Medina (Direitos Reservados)

Mohamed Farrouk lembra que conhece o "senhor Barroso" há 25 anos - "veja lá, quanto tempo". Em quase três décadas vividas em Portugal, o agora empresário da Rua do Benformoso assegura que "não encontrou racismo". Farrouk recorda os tempos solitários em Lisboa, conta que regressou ao Bangladesh para casar e trazer a mulher, entretanto os filhos nasceram em Portugal e, no Bangladesh, o pai morreu e a mãe envelheceu: "Lá a família está a acabar, aqui está a crescer", observa, garantindo que dificilmente voltará a viver no país de origem.

"O meu filho às vezes vai passear um mês ao Bangladesh, depois cansa-se e volta sempre para cá. Ele gosta mais de Portugal. Talvez porque a família agora está aqui", aponta.

Mahomed Farrouk conta que teme que o protesto deste sábado, a realizar-se, possa de algum modo alterar o modo como olha para Portugal. Até admite que tenham o direito de expressar-se, mas não de "bater ou partir montras". Entre a comunidade muçulmana em Portugal, circulam os avisos do líder, Rana Taslim Uddin, de cuidados acrescidos e para que, aconteça o que acontecer, ninguém responda a provocações.

"A comunidade de Bangladesh disse que se acontecer alguma coisa para ninguém se meter. É para ficar quietinho e aguentar, depois nem que fiquemos com o dinheiro do seguro. Tudo isto tem seguro. Quem quer fechar, pode fechar. Nós não vamos fechar, mas também não vamos lutar. Por isso, podem dizer o que quiserem, mas ninguém vai responder", explica.

"Nós ficaremos quietos" e a vida prosseguirá na Rua do Benformoso com ou sem manifestação contra a islamização, assegura Mahomed Furrouk.

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