Espaço de 2000m2 vai pagar 60.000€/ano de impostos extra: CNN Internacional relata medo de devastação e extorsão em Portugal com a lei de Costa para a habitação

CNN , Julia Buckley
27 ago 2023, 14:45
Turismo em Portugal (ver créditos e descrições na própria foto)

A CNN Internacional publicou um extenso artigo sobre este país “dos mais pobres da Europa Ocidental” e onde – como noutras partes da Europa – o impacto do turismo na habitação está a afastar habitantes das cidades. O artigo realça os "mundialmente famosos hostels portugueses", que podem agora estar em risco. A CNN Portugal aqui publica a tradução na íntegra do artigo publicado a 16 de agosto, dias antes do veto de Marcelo Rebelo de Sousa.

Os hostels em Portugal são de classe mundial. Mas, dizem eles, uma nova lei ameaça a sua existência

Numa altura em que a Europa se confronta com o peso de um turismo cada vez maior e os habitantes de cidade atrás de cidade são expulsos em prol de propriedades de aluguer de curta duração, um país decidiu impor restrições legais ao seu mercado imobiliário.

A lei portuguesa “Mais Habitação”, aprovada no parlamento a 19 de julho, pretende tornar o mercado da habitação mais equitativo para os residentes - mas as suas linhas gerais estão a ameaçar o futuro dos hostels e guesthouses, bem como de arrendamento de férias, dizem os profissionais do sector.

A lei estabelece que as propriedades classificadas como alojamento local - que inclui casas de hóspedes com menos de 10 quartos, bem como hostels e propriedades do tipo Airbnb - passarão a estar sujeitas a novas regras rigorosas.

Novas aberturas estarão efetivamente bloqueadas até 2030 e, depois disso, as licenças de funcionamento terão de ser renovadas de cinco em cinco anos. Além disso, estarão sujeitas a novos e pesados impostos que, segundo alguns, levarão muitas empresas familiares à falência, transformando o crescente sector turístico do país.

Aumento do número de visitantes é uma das causas da crise do alojamento em Portugal.

A lei - proposta e aprovada pelo PS, partido no poder em Portugal - procura resolver a crise da habitação em Portugal. “O Governo português definiu a habitação como uma das suas principais prioridades em 2016”, afirmou um porta-voz do Ministério da Habitação em comunicado à CNN, acrescentando que o objetivo é aumentar o peso do parque habitacional público dos atuais 2%.

“É necessário encontrar respostas que se adaptem às necessidades sentidas em cada momento pela população, com o objetivo último de garantir que todos tenham acesso a uma habitação condigna”, acrescentaram.

“Temos, à semelhança de outros países europeus, desafios com a enorme pressão urbanística, turística e de investimento imobiliário e a aprovação de um novo conjunto de medidas de resposta mais imediata pretende complementar as [medidas] existentes.”

O porta-voz do Governo insistiu que os hostels e as pensões (guesthouses) não serão afetados pela lei, que parece destinar-se ao arrendamento de curta duração. No entanto, em nenhuma parte da lei se confirma que estão excluídos - e a lei refere-se repetidamente às medidas que afetam os “estabelecimentos de hospedagem”, a terminologia legal para os hostels e guesthouses.

As resoluções da nova lei poderão ter efeitos de grande alcance para quem gere estabelecimentos de alojamento local (AL) - incluindo os mundialmente conhecidos hostels portugueses.

A lei prevê uma moratória sobre a emissão de novas licenças de AL até 2030, exceto nos municípios e freguesias de “baixa densidade” e excluindo as moradias unifamiliares em banda. As autarquias também poderão suspender a emissão de licenças se declararem que existe um défice de habitação.

Após 2030, as licenças serão renovadas de cinco em cinco anos, ao critério das autarquias locais. Os condomínios também poderão revogar as licenças AL dos imóveis que os integram por maioria de votos.

As propriedades AL fora das zonas de baixa densidade verão também os seus atuais impostos sobre a propriedade aumentarem e ficarão sujeitas a um novo imposto a partir de 15%, conhecido como CEAL.

E qualquer novo aluguer de curta duração terá de ser aprovado por unanimidade pelos vizinhos para obter uma licença. “O único [tipo de alojamento] que escapa é o hotel”, diz Eduardo Miranda, presidente da ALEP, uma associação de proprietários de AL.

A lei está agora nas mãos do Presidente da República, que pode aprová-la, vetá-la ou enviá-la para o Tribunal Constitucional.

[Nota do editor: cinco dias depois deste artigo ser originalmente publicado, Marcelo Rebelo de Sousa anunciou o veto do diploma por razões políticas, devolvendo-o à Assembleia da República. O PS prontamente disse que não proporá alterações à proposta de lei, que deverá assim ser novamente aprovada nos mesmos trâmites, obrigando o Presidente da República à sua promulgação.]

Uma “emergência social”

Os hostels de Lisboa ganharam vários prémios. Valerio Berdini/Shutterstock

A crise da habitação em Portugal levou os residentes a sair à rua em protesto este ano, com os ativistas a chamarem-lhe "emergência social". O país é um dos mais pobres da Europa Ocidental, com um salário mínimo de 760 euros por mês e mais de metade dos trabalhadores a ganhar menos de 1.000 euros por mês, segundo a Reuters. Entretanto, só as rendas em Lisboa aumentaram 65% desde 2015, incluindo uma subida de 37% em 2022.

O porta-voz do governo disse à CNN que, embora o turismo tenha ajudado na recuperação económica de Portugal nos últimos anos, resultou num aumento dos preços da habitação e das rendas, tanto em destinos populares como noutras áreas, forçando as famílias a mudar de casa ou a enfrentar pressões financeiras crescentes.

Mais de 6% dos imóveis de Lisboa e 7,4% dos imóveis do Porto estão registados como AL, afirmaram.

A nova legislação ameaça o futuro de todos os hostels em Portugal, afirma Miguel Santos, membro da direção da Associação Hostels de Portugal (AHdP) e proprietário de um hostel em Lisboa.

"Tenho 18 empregados - como é que posso gerir uma empresa sabendo que a licença vai expirar daqui a cinco anos?", diz. "Como é que posso renovar pensando que daqui a cinco anos posso perder tudo?"

Santos estima que, com a nova taxa CEAL, que é calculada em função do tamanho da propriedade, um hostel de 2.000 metros quadrados acabará por pagar cerca de 60 mil euros por ano em impostos extra - o que será impossível para muitas pequenas empresas.

Um relatório elaborado pela AHdP adverte que a legislação tem o "potencial de devastar todo o sector". Atualmente, existem 826 hostels registados como alojamento AL em Portugal, dos quais cerca de 80% são propriedade individual. Os dados da AHdP indicam ainda que cerca de metade dos hostels portugueses cessaram a sua atividade desde a pandemia.

A AHdP alertou, em comunicado, para o facto de poder causar "destruição do tecido empresarial, milhares de postos de trabalho e o encerramento de estabelecimentos na esperança de que seja criada oferta de alojamento - o que não vai acontecer".

Santos diz que os hostels são cruciais não só para os viajantes económicos de agora, mas também para os que vão gastar mais no futuro.

"Eles estão mais virados para os jovens e são estes que começam a viajar quando a sua carreira está no início", diz.

Ao permitir que os condomínios cancelem as licenças de AL sem motivo, os hostels ficariam "à mercê do condomínio" e da possibilidade de "extorsão", afirma um relatório da AhdP sobre a nova legislação.

O centro do mundo dos hostels

Foi em Lisboa que começou a nova "cena" dos hostels. Richard Cummins/Alamy Stock Photo

Portugal, e Lisboa em particular, tem hostels de classe mundial, de acordo com Kash Bhattacharya, proprietário da Budget Traveller e autor do livro "The Grand Hostels".

"Em 2009, eu estava a chegar aos 30 anos e pensava que já não queria mais hostels, mas um amigo disse-me que eu tinha de ir a Lisboa", conta.

"Lá, todos estes armazéns abandonados estavam a ser renovados. Os artistas tomaram conta deles e deram início à revolução dos hostels. A perceção que as pessoas têm de um hostel mudou em Lisboa, com a sua curadoria, design e instalações - eles tornaram-se destinos. Sempre que olhamos para as listas dos melhores hostels do mundo, oito ou nove estão sempre em Portugal".

Sempre que olhamos para as listas dos melhores hostels do mundo, oito ou nove estão sempre em Portugal". Kash Bhattacharya

Bhattacharya diz que o que torna os hostels portugueses especiais é o facto de muitos deles serem geridos por famílias locais.

"Há um sentimento de ligação com a cultura - há hostels onde as mães dos proprietários vêm e cozinham o jantar. Há uma sensação de acolhimento que não se tem em mais lado nenhum. Depois de Portugal, todos os sítios são uma desilusão".

Mas ele teme pelo sector: "Não estou a ver como muitos deles vão sobreviver se esta lei se tornar realidade".

"Muitos vão fechar"

2023 foi palco de protestos contra a crise da habitação. Protestos em Lisboa contra a política de habitação a 1 de abril de 2023 Foto Armando Franca _ AP

Uma proprietária de hostel que teme pelo futuro é Benedita Vasconcellos, dona do Goodmorning Solo Traveller Hostel, em Lisboa, eleito o melhor hostel de Portugal em 2020.

"Vão ser tempos difíceis, de certeza, e estou a ver muitos hostels a fechar", diz. "Alguns vão sobreviver, e eu espero que sim, mas vou ter de fazer mudanças, como reduzir o número de funcionários e talvez aumentar os preços dos quartos."

Vasconcellos, 67 anos, diz que estava a planear reformar-se nos próximos cinco anos, vendendo o negócio para financiar a sua reforma. Com a nova lei, não poderá passar a licença, o que significa que não haverá negócio para vender. Ela arrenda as instalações do albergue, pelo que também não tem propriedades para vender.

"[O impacto] é enorme, mesmo enorme", diz. "Só receberia uma pensão do Estado após 45 anos de trabalho. Todo o dinheiro que eu queria obter com a venda do meu negócio para ajudar à minha reforma nunca seria possível [com a nova lei]."

Futuros incertos

Lisboa é cada vez mais popular entre os turistas e cada vez mais cara para os habitantes locais. Radiokukka/iStock Editorial/Getty Images

As pensões e os B&B [Bed & Breakfast] também estão a sentir o impacto. Filipa Aguiar abriu a Bairro Alto Music Guesthouse, com oito quartos, em Lisboa, em 2022, e diz que ainda está a pagar quatro anos de renovações. Filipa Aguiar estima que, com as novas medidas, terá de pagar cinco dígitos de impostos adicionais por ano, sem qualquer garantia de que a sua licença será renovada em 2030.

"Se fecharmos antes, não conseguiremos pagar as contas... e com toda a incerteza e impostos, não sei se conseguiremos investir em novas comodidades ou remodelações.

"Os turistas precisam de alojamento diversificado. Nem todos querem ficar num grande hotel."

Uma crise crescente

Há cerca de 110 mil alojamentos de curta duração em Portugal. A maioria situa-se no litoral. Marco Bottigelli/Moment RF/Getty Images

É claro que a ascensão do Airbnb tem sido responsabilizada pela escassez de habitação e pela subida em flecha das rendas em todo o planeta. Nos centros das cidades europeias, o problema é especialmente grave. Os governos de Portugal e Espanha adoptaram medidas para resolver o problema.

Os baixos salários e as rendas elevadas fazem de Lisboa a terceira cidade menos viável do mundo para viver, segundo um estudo da corretora de seguros CIA Landlords.

Portugal já foi "pioneiro" na regulamentação do aluguer de curta duração, segundo Eduardo Miranda, da ALEP. Uma lei de 2008, actualizada uma década mais tarde, criou o primeiro sistema de registo online de ALD da Europa, legalizou o cancelamento de licenças mediante prova de perturbação contínua e deu às autoridades locais o poder de restringir os ALD quando há um excesso. Atualmente, apenas três locais implementaram restrições: Lisboa, Porto e Ericeira.

Com a nova lei, as autarquias perdem esse direito de autorregulação, diz Miranda, que considera as medidas "injustificadas, desproporcionadas e discriminatórias" e uma "manobra de marketing que não vai resolver os problemas da habitação, mas vai destruir uma grande parte de uma das indústrias mais importantes de Portugal: o turismo".

Lisboa, Porto (na foto) e Ericeira já regulam o arrendamento. DaLiu/iStockphoto/Getty Images

Os documentos do Governo anexos à lei referem que esta foi apresentada "sem estudos, documentos ou pareceres" sobre os dados em que se baseia, ou sobre o seu eventual impacto - o que não respeita o procedimento parlamentar normal.

Um porta-voz do Ministério da Habitação disse à CNN que a lei se baseia nos dados do recenseamento de 2021.

Existem cerca de 110 mil alojamentos locais registados em Portugal, sobretudo no litoral, que representam 42% das dormidas de hóspedes em Portugal, de acordo com dados da ALEP. Miranda diz que a maioria é propriedade privada e são segundas residências - o que significa que se a lei os obrigar a deixar de arrendar a turistas, não se tornarão parque habitacional, mas voltarão a estar "vazios 11 meses por ano".

"Não somos de todo contra os pacotes habitacionais, mas sim contra medidas pontuais que não se baseiam em qualquer tipo de dados", diz, acrescentando que a ALEP propôs dar mais poderes às câmaras municipais, para que cada administração possa orientar a habitação e o arrendamento consoante a situação.

"Um sector que contribui com mais de 40% do alojamento turístico nacional merece ser tratado de forma diferente", escreveu a associação em comunicado, em julho. "O sucesso do turismo nacional e da economia do país está a ser posto em causa".

O porta-voz do Governo disse à CNN que não há qualquer proposta para acabar com o alojamento local ou retirar as actuais licenças.

"O espírito das medidas nesta matéria não é acabar com o alojamento local, mas sim compatibilizá-lo e harmonizá-lo com as necessidades de habitação, de forma a, a curto prazo, aumentar a oferta disponível para habitação", referiram.

"Se é verdade que a indústria do turismo em Portugal é crucial para o nosso país, é ainda mais crucial garantir uma habitação condigna para todos os que vivem em Portugal", continuaram.

Embora o porta-voz tenha insistido que os albergues e as pensões não seriam afectados, o advogado Miguel Torres Marques, antigo assistente jurídico do Ministério do Turismo de Portugal e que agora representa a ALEP, disse à CNN que não há dúvida de que estão abrangidos pelas medidas.

"O Governo quer encerrar os alojamentos locais para tentar promover o arrendamento de longa duração e está convencido de que, ao encerrar os AL, conseguirá atingir esse objetivo. Isso não vai acontecer", afirmou.

Outros sectores da indústria criticaram a lei. A AHRESP, associação de hoteleiros, também emitiu um comunicado em que prevê a perda de "milhares de postos de trabalho" e alerta para o facto de o sector do turismo estar a correr um "enorme risco". Os presidentes das Câmaras Municipais de Lisboa e do Porto emitiram um comunicado conjunto em que acusam o Governo de tentar "exterminar" o sector e "confiscar responsabilidades aos municípios".

Em entrevista à agência Lusa, a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, afirmou que Portugal está "décadas atrasado" em relação a outros países no que respeita à construção de habitação social.

E acrescentou: "Quantos mais vierem deste número [de imóveis do AL que poderão encerrar com a nova lei], melhor resposta teremos no mercado habitacional".

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