"Quando um não quer, dois não brigam" passou a "violação da integridade territorial da Ucrânia". O que Lula dizia e o que diz agora

19 abr 2023, 14:30

"Correção de estilo", "recuo" ou apenas "mudança de tom" no discurso para ir ao encontro das declarações feitas pelos governantes da União Europeia e dos EUA? Lula da Silva mudou as palavras, mas há quem diga que a sua posição se mantém

"O Brasil não tem interesse em passar as munições para que elas sejam utilizadas na guerra. O Brasil é um país de paz". A declaração de Lula da Silva, a 30 de janeiro, durante a visita de Olaf Scholz, surgiu depois do chanceler alemão lhe ter pedido que fornecesse munições de tanques, para que Berlim as enviasse à Ucrânia. O pedido foi negado, com o presidente brasileiro a dizer que "quando um não quer, dois não brigam" e que, por isso, o Brasil "não quer ter qualquer participação mesmo que indireta" nesta guerra. 

As declarações, que seguiam a linha das que já tinha feito, no ano passado, à revista Time, quando disse que Zelensky era tão culpado como Putin, continuaram no mesmo tom já este mês, durante a visita à China. No final da visita de dois dias, Lula da Silva criticou o envio de armas para Kiev, dizendo que é preciso encontrar países que queiram falar de paz, e acusou diretamente a União Europeia de ter entrado "diretamente no conflito" da Ucrânia.

"A União Europeia sempre foi um ponto de equilíbrio. Nunca participava. Agora entrou diretamente no conflito. Quando o companheiro Olaf Scholz [chanceler alemão] foi ao Brasil pedir para que o Brasil vendesse mísseis para que ele pudesse entregar para a Ucrânia eu disse que não ia vender os mísseis porque o Brasil não quer entrar na guerra", afirmou Lula, acrescentando que "governantes não têm o direito de fazer guerra quando o mundo está a precisar de paz".

Em reação, o chefe da diplomacia da União Europeia afirmou que "qualquer neutralidade que não distinga o agressor do agredido é pôr-se do lado do agressor", mas nem as suas declarações desarmaram Lula da Silva, que voltou a apontar baterias, desta vez aos EUA, acusando-os de fomentarem a guerra. "Os Estados Unidos devem parar de encorajar a guerra e começar a falar de paz, a União Europeia deve começar a falar de paz", afirmou.

Lula da Silva ouviu uma chuva de críticas e assim se adensou o clima de oposição à vinda do presidente brasileiro a território luso, uma vez que Lula coloca Portugal entre os culpados pela guerra na Ucrânia e, numa altura em que "já não dá para desconvidar Lula da Silva", Portugal vai estar "sob a lupa" dos aliados da NATO. 

Mas, depois de toda a celeuma ao longo de três meses, Lula da Silva mudou o tom das declarações e condenou a "violação da integridade territorial da Ucrânia". Um dia depois de ter recebido o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov, e após uma reunião com o presidente da Roménia, Klaus Iohannis, no Palácio do Planalto, em Brasília, o presidente brasileiro condenou a invasão russa da Ucrânia, ao mesmo tempo que defendeu a paz e afirmou que existe uma "necessidade urgente" de um grupo de países ajudar a trazer a Rússia e a Ucrânia para a mesa das negociações de paz.

“Ao mesmo tempo que o meu governo condena a violação da integridade territorial da Ucrânia, defendemos uma solução política negociada. Falei da nossa preocupação com os efeitos da guerra, que extrapolam o continente europeu", disse Lula da Silva. 

Há diferença entre Lula e o seu governo?

Para Tiago André Lopes, especialista em relações internacionais, a mudança de tom tratou-se de uma "correção de estilo" e o "posicionamento de Lula da Silva sobre a guerra da Ucrânia não é claro". "Desta vez, ele não falou em nome dele, falou no 'meu governo'".

"Enquanto nas declarações originais era a posição dele, Lula da Silva, desta vez ele falou da posição do governo enquanto instituição política que representa o Brasil do ponto de vista governativo e, portanto, aquilo que ele fez foi dizer do ponto de vista do governo do Brasil há este entendimento, mas nós não ficamos com a ideia clara de qual é o posicionamento do presidente Lula na questão da guerra. O que surpreendeu foi o estilo, não tanto necessariamente o alinhamento, porque a proximidade do ponto de vista da diplomacia comercial, por exemplo, com a Rússia, não é uma novidade do Brasil", afirmou o também comentador da CNN Portugal.

Opinião corroborada por Agostinho Costa, especialista militar, que lembra que "o Brasil, naturalmente, tem de tomar uma posição de equidistância" nesta questão, garantindo que "Lula da Silva nunca apoiou a invasão, pelo contrário, tem sido um crítico da invasão".

"Agora, o ambiente tradicional está extremamente polarizado: ou estão connosco ou contra nós. O que Lula colocou em cima da mesa foi uma plataforma para a paz, mas caiu o Carmo e a Trindade porque referiu a questão da Crimeia. Nenhum analista defende que a Crimeia transitará para a Ucrânia sem uma confrontação global com recurso a armas nucleares", acrescenta.

"Tem tudo a ver com as palavras"

No entanto, este recuo "tem tudo a ver com as palavras", considera José Azeredo Lopes, que assinala que o presidente brasileiro muda o tom das declarações, mas "não utiliza a palavra agressão, ou ataque armado, ou agressor, ou atacante, que é a Rússia".

"Penso que isto também se deve ao facto de Lula da Silva e o Brasil quererem manter a capacidade de intervir na promoção de uma solução pacífica para este conflito. As reações são bastante violentas por parte dos EUA. A questão aqui é que estamos todos concentrados em Lula da Silva porque o Brasil é um país muito importante. Há um ponto fundamental em que a discordância não pode ser apagada. Quando Lula da Silva diz que os EUA e a União Europeia é que mantêm a guerra, do ponto de vista técnica ele tem razão". 

No entanto, para Liliana Reis, especialista em relações internacionais, "este recuo por parte de Lula da Silva é, sobretudo, para ir ao encontro das declarações por parte da União Europeia e por parte dos EUA".

"Ainda assim, o recuo só sinaliza a questão da integridade territorial. Não redime o presidente brasileiro face às declarações iniciais e nomeadamente do agressor e do agredido no mesmo prato da balança. Foi em grande parte esse posicionamento por parte de Lula da Silva que levou quer Ursula von der Leyen quer Josep Borrell às declarações que tiveram, mas também à Casa Branca manifestar-se. O Brasil também tem relações com os EUA e com a UE muito relevantes".

Até porque, para a comentadora da CNN Portugal, "a questão da narrativa da paz apenas favorece a Rússia" e o Brasil tem-se "afastado de uma questão fundamental: para se avançar para paz: as forças russas têm de sair de território ucraniano". 

Lula da Silva, que voltou ao poder em janeiro após dois mandatos entre 2003 e 2010, disse em Pequim que o Brasil estava de volta ao palco internacional e esperava mediar a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Mas, para a especialista em relações internacionais, "depois destas declarações, o papel de mediação de Lula da Silva está claramente comprometido".

Brasil

Mais Brasil

Patrocinados