"A minha necessidade de afeto é de tal ordem que muitas vezes me escancaro." Morreu Luís Aleluia, o menino da Casa do Gaiato que aprendeu a amar

TVI
24 jun 2023, 14:34

TRANSCRIÇÃO NA ÍNTEGRA da conversa entre Luís Aleluia e Manuel Luís Goucha, em julho de 2021, no programa Goucha, da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal). Desde a infância complicada por causa de um padrasto alcoólico, passando pela institucionalização na Casa do Gaiato e pelo regresso a casa da mãe, já no fim da adolescência, aos primeiros passos do ator que diz ter sido "traído pelo teatro", e ao reencontro com a mulher da vida dele. Luís Aleluia morreu esta sexta-feira, aos 63 anos.

Manuel Luís Goucha: A tua infância difícil foi meio caminho andado para quereres adotar ou não?

Sim, o facto de me deparar com casos difíceis, já tinha essa ideia de adotar. Aliás, uma das coisas que eu digo às pessoas que querem adotar, não façam por opção. Não façam por opção de substituir. Ai, se eu não tiver filhos biológicos. Não. Partam logo para a adoção, se quiserem isso. Porque os filhos não substituem.

Tu querias filhos?

Nós já queríamos adotar.

Mesmo que tivessem biológicos?

Mesmo que tivéssemos biológicos. Aliás, trabalhámos para isso também. Fizemos inseminações artificiais, foi difícil.

Houve três inseminações e dolorosas, porque é sempre doloroso para a mulher a parte negativa, quando vem o não. É horrível. É um processo muito doloroso mesmo a operação, tirar os ovócitos. É uma coisa muito complicada. E depois, a parte psicológica de levar com o não, com as negas. Inclusive, houve uma altura em que o feto terá pegado, mas por qualquer motivo depois acabou. Ainda se torna mais complicado.

Mas a adoção já estava no nosso horizonte.

Sim, já era um plano vosso, do casal. E quiseste certamente dar aos teus filhos aquilo que tu não tiveste na infância.

Sim, é verdade. Mas sobretudo a comodidade. Ter uma vida mais tranquila, cómoda, com conforto, coisas que eu não tive. Agora, também me retraio um pouco. Eles também não têm tudo aquilo que eu não tive.

Senão não dão valor às coisas, não é?

Não, não, absolutamente. Aliás, isso depois tem a ver também com a minha formação. Nós podíamos ter tudo e não tínhamos. Tínhamos tudo dentro do possível. E nós podemos dar aos filhos tudo o que eles queriam, mas nós muitas vezes refreamo-nos e dizemos que não, e explicamos as razões porquê. Ah, mas o meu colega tem. Mas tu não tens, terás. Por objetivos. As coisas têm de ser ganhas.

Conquistadas.

Conquistadas.

O padrasto alcoólico

Tu não tiveste coisas básicas até aos 9 anos?

Até aos nove.

Por exemplo, saneamento básico não havia.

Certo.

Um quarto para ti não havia.

Não.

Eras filho único?

Era filho único. E, mais, até aos nove estudei com candeeiros de petróleo.

Mas era eu, e, sei lá, em 20 ou 30 colegas da turma, se calhar um terço, provavelmente, eram assim, porque eram as condições.

E, pior ainda, havia violência naquela casa.

E havia sim, havia alguma violência, não era todos os dias, naturalmente, mas...

Era quando o padrasto bebia?

Do álcool, sim.

E muitas vezes pelas frustrações da vida, ou por não ter trabalho. Porque as pessoas muitas vezes refugiam-se no álcool, por exemplo, e depois perdem um pouco o controlo das coisas. São coisas que nos marcam depois para o resto da nossa vida.

Mas estás a desculpar o teu padrasto?

Não, não o desculpo...

Ou estás a olhar de uma outra maneira com a distância do tempo?

Com a distância do tempo, eu vejo de uma outra maneira. Mas já o desculpei há muito tempo porque ele no seu estado normal não era mau, não era violento.

Era afável?

Também não era, não é? Mas também temos que ver os homens da época, os afetos também eram um bocadinho...

É que nós realmente temos de situar tudo no seu tempo, não é?

Claro, é isso.

O homem não mostrava afeto.

Não, agora o vinho muitas vezes traz reações descontroladas das pessoas.

Mas ele batia-te a ti ou batia à tua mãe e tu levavas por tabela?

Não, ele batia mais na minha mãe. E muitas vezes batia-me a mim e a minha mãe punha-se no meio e levávamos os dois. Mas não o estou a desculpar de todo, porque qualquer tipo de violência, qualquer que seja, é indesculpável. Não há desculpas para a violência. É um descontrolo, é falta de diálogo. Há várias razões que podemos apontar. Não desculpo de todo.

Que relação é que tinhas com a tua mãe? Que importância tem esta mãe?

A minha mãe é a mulher principal da minha vida. Tenho duas grandes mulheres na minha vida. Tenho mais, mas há duas que de facto são muito importantes na minha vida. É a minha mãe, que é a principal, é a primeira e há de ser sempre. E depois a Zita.

A Zita que chega, não com uma relação maternal, mas de grande cumplicidade, de grande afeto. É o lado material, prático, da nossa relação.

A Casa do Gaiato

Aos nove anos tu perdes a tua mãe quando entras na Casa do Gaiato.

Exatamente.

Como é que encaraste essa perda?

Com uma revolta muito grande. Perder-se alguém que nós queremos muito. É como atravessar um rio, mesmo que a água esteja baixa, precisamos da mão de alguém. E, de repente, somos largados dentro de água sem saber para onde é que nós vamos. E foi isso, basicamente, que aconteceu. Eu sou largado numa instituição. Felizmente, para mim, é uma excelente instituição.

Onde tiveste o teu primeiro banho de chuveiro quente.

Banho de chuveiro quente. Não tinha irmãos, passei a ter 80. Ainda hoje nos damos e alguns singraram bastante na vida. São médicos, são enfermeiros. Outros não, foram presos, porque em qualquer família isso acontece.

Agora, a Casa do Gaiato, ou outra qualquer instituição não deixa de ser uma instituição. Nenhuma instituição é boa que não seja a família.

Família estruturada, claro.

Claro. Estruturada. Não há outra que a substitua, não é? E não há nada que possa substituir o amor de uma mãe e de um pai. E sobretudo quando a mãe larga o seu filho, o único filho, por amor. Porque mais tarde tu entendes que isto é um gesto de amor.

Mas na altura não entendeste.

Não, não, e fiquei muito revoltado.

Sofreste muito por isso, não?

Já em adulto, muito revoltado.

Mas foi ela que te explicou o gesto ou tu percebeste o gesto?

Não, não. Depois começas a perceber a vida. Provavelmente, tu farias isso também por um amor. Um amor que tivesses.

Quantas mães abandonam os filhos e é o maior ato de amor?

Eu tenho uma admiração muito grande pelas mulheres e homens que têm que deixar os filhos e dá-los para a adoção porque o Estado não lhes criou as condições propícias para os criarem. As crianças não deviam ser tiradas dos seus familiares. As famílias é que têm de ser apoiadas.

A tua mãe ia visitar-te?

A minha mãe, ao princípio, não podia. Para nós criarmos os laços com a instituição e largarmos um pouco emocionalmente, mas depois sim. Aliás, ela nunca perdeu o contacto.

Tiveram algum dia essa conversa? Porque tu sentiste-te abandonado por ela, não é?

Sim. Nunca tivemos essa conversa. Mas há gestos e há beijos e há abraços que superam qualquer palavra. Aliás, há emoções que tu não consegues transmitir. Mesmo quando morre uma pessoa. Há palavras que, no teu léxico todo, não há uma palavra que consiga só por si... tens que fazer um texto enorme para no fim dizer, "amava muito".

Às vezes, um abraço é muito mais sentido, é mais forte e consegue superar qualquer texto.

O que é que te deu a Casa do Gaiato e o que é que te deu esta infância? Tu podias ter ido por um caminho completamente nefasto. Podias ser um homem desequilibrado, revoltado, azedo e não és nada disso. O que é que te deu a Casa do Gaiato? O que é que te deu esta infância até aos 16?

O facto de termos uma infância violenta não quer dizer que depois sejamos todos grandes criminosos.

Mas muitas vezes copia-se o modelo da infância. Podias ser um homem revoltado, podias ser um homem azedo, amargo e não és. Tu és um homem que deste amor a duas crianças adotadas.

Sim. É verdade. A Casa do Gaiato também estrutura um pouco em termos de caráter. Ajuda-me. Eu entro aos 9 e saio aos 16 por minha vontade.

Regresso a casa da mãe

A mãe vai-te buscar.

A mãe desafia-me. Porque eu vou para a Casa do Gaiato e ela está com uma situação delicada, que ela precisa de desenvencilhar-se daquele fulano.

Era um homem tóxico na vida dela.

Era um homem tóxico na vida dela, na nossa relação, e ela via que também se prejudicava. Acontece que eu estava proibido de dizer ao meu pai, porque o meu pai já não vivia connosco, estava hospitalizado. Ele estava com um problema de tuberculose, que era muito comum na época. Ele era funcionário da Câmara de Setúbal e estava no Caramulo. E, de vez em quando, vinha a Setúbal para ver o filho, fim de semana sim, fim de semana não, e eu estava proibido de dizer o que se passava na nossa casa de violência. Porque o meu pai passava-se e ela tinha medo de que isso acontecesse.

E quando ela disse uma vez a intenção, "olha, tenho que pôr o menino numa instituição", mas nunca lhe explicou porquê. E o meu pai disse, "não, enquanto eu for vivo, o meu filho não vai para lado nenhum". A morte dele também foi libertadora para esta situação, foi uma oportunidade que ela criou. Ele faleceu, vamos tratar agora disto.

E, assim que ela encontrou o amor da vida dela, foi o homem mais feliz com quem ela viveu, que foi um homem extraordinário, e a primeira coisa que ele fez, ou das primeiras, foi dizer, "vamos buscar o teu filho e eu vou adotá-lo". Porque ele também não tinha filhos. E isto é bonito.

Sentiste-te amado pela primeira vez? Para além da mãe?

Não, eu já tinha sido amado pelo meu pai. Era muito, muito amado pelo meu pai mesmo. Eu era filho único, era o menino do pai e da mãe.

Como é que lidaste com as perdas da mãe e do pai?

Mal. O pai morreu logo e não entendi. Quando se tem nove anos não se entende o que é a morte. Há uma separação, mas o meu pai não estava comigo também. Explicar a morte não é fácil.

A mãe foi mais complicado porque fui eu quase a tomar conta dela.

És feliz com a mãe a partir dos 16 anos e com o novo padrasto?

Sim, sim, sim, sou feliz. Tudo o que ela quer é que eu estude. Todos os sacrifícios que ela faz é para que eu estude, que eu tenha um curso universitário e que seja bem-sucedido na vida. Não encarou bem o teatro como uma coisa boa, mas apoiou-me sempre e estava lá. E depois quando apareceu o Tonecas, ela própria ficava vaidosa. E isso a mim dava-me uma felicidade tão grande ter-lhe passado essa felicidade. Estás a ver o teu filho conseguiu e, através de mim, ela também.

Eu não sei quantas pessoas estiveram no funeral, mas sei que houve pessoas que nunca a conheceram e que foram àquele cemitério deixar flores que nunca mais acabavam. Não a conheciam, mas conheciam-me e foram, por ela, através de mim.

Eu acho que isto é um gesto de amor. O que eu lhe retribuí de amor foi isso.

Que homem é que se construiu? Estes seus primeiros anos são anos muito complicados. Com carências, com falta de afeto, em parte, com a perda do pai, com a institucionalização. Que homem é que se constrói? Como é que te construíste?

Constrói-se um homem com reservas.

De afeto?

Não é reservas de afeto. Muitas vezes, é ao contrário. A minha necessidade de afeto é de tal ordem que muitas vezes me escancaro. E depois tenho perdas muito grandes. Desiludo-me, grandes desilusões de amizades, de amor, de uma série de coisas. E, justamente por isso, porque há uma necessidade grande de afeto.

Aprendeste a amar?

Sim, aprendi a amar e aprendi também a autossuficiência, a ter de ser eu a olhar por mim próprio e a trabalhar para mim.

Isto talvez muito na instituição, não?

Sim, embora a casa, e qualquer instituição, deve promover isso. Mas, sobretudo, na filosofia do Padre Américo existe isso. A autonomia do rapaz para que tenha depois uma vida mais...

Era ele que dizia que não havia rapazes maus, pois não?

E não há rapazes maus. Num contexto, ninguém nasce mau. Depende é do contexto. Como estavas a dizer, de um seio familiar que te leva à violência.

Mas não é tão linear assim, porque em berço de ouro muitos nascem e depois dão o que dão...

Depois tem a ver com estrutura, com os amigos, com uma série de coisas. Mas, de qualquer maneira, aprende-se também a dar valor às coisas de uma outra forma. A dar valor aos afetos, à lealdade. Por exemplo, conviveres com 20 rapazes, 20 homens. Aprendes o que é a fraternidade, a lealdade e a cumplicidade. E isso são valores que guardas para a vida.

Ficaste com amigos dessa altura?

Fiquei. Ainda agora fui convidado para um lançamento de um livro de poesia. Repara, um fulano que está na Casa do Gaiato vai escrever poesia? É porque já limpou as suas mágoas.

Eu quero conhecer esse homem, é muito interessante.

Provavelmente, olha, aqui está uma bela sugestão.

De onde é que veio a poesia neste homem e nesta vida?

Uma coisa que é interessante é a partilha também. A filosofia do padre Américo é de tal ordem. Não é que os rapazes precisem de ir para o campo, porque há dinheiro suficiente para contratar agricultores. E eles estão lá, os capatazes. Agora, incutir em ti o valor do trabalho, a importância que o trabalho tem. As coisas que tu tens na mesa foste tu que as conquistaste. É uma das coisas que eu faço, por exemplo, quando vou a Troia com os miúdos. Vamos passar lá uns dias e sabes o que é que eu faço? Vou apanhar amêijoas, vou apanhar o que a maré dá. E depois fazemos uma refeição à volta daquilo porque foi o fruto do nosso trabalho.  E aquele sabor é outra coisa, completamente. E isso são valores muito interessantes.

O Morais e Castro, o professor [na série As Lições do Tonecas], gostava particularmente de uma lição que nós tínhamos lá que é: nós somos 80, há uma laranjeira com 8 laranjas. Qualquer um pode tirar uma laranja à hora que entender. Tenho fome, como agora. Mas é mais agradável se partilharmos todos a laranja à refeição. Comermos todos. E isso é, sobretudo, o respeito pelo que é do outro e pela liberdade do outro.

A "traição" do teatro

Como é que surge a arte de representar e, sobretudo, pergunto-te a ti, que chegaste a querer ser padre?

Sabe porque é que nós queremos ser padres? O padre Acílio, para mim, é o meu pai. No fundo, foi quem o substituiu, e felizmente é um grande homem. Um homem que entregou a sua vida toda à instituição e formou milhares de rapazes e com quem ele tem uma ligação muito forte. Mesmo aqueles que não singraram na vida, melhor ou pior, mas ele conhece-os a todos e ajuda. Porque a casa do Gaiato não termina aos 18. É para a vida toda. É uma família.

Fui sacristão, andei muitas vezes nos peditórios. Agora no verão, eu ia com ele para o Algarve. Fui secretário do padre Acílio. Como o meu pai tinha tido tuberculose, eu apanhei também um pouquinho de tuberculose. Numa semana, a última em que ele morreu, dormimos juntos. E o médico já tinha prevenido. Aconteceu esse problema, e então eu tinha que ser resguardado dos trabalhos do campo. Fazia os trabalhos na cozinha, no escritório dele, acompanhava-o muito.

Foi bom dormir com o pai?

Foi, porque nunca tinha dormido. Eu não me lembro de viver com o meu pai. Fui afastado muito bebé. Curiosamente, ele vinha-me visitar, e uma semana, naquele Natal, ele pediu à minha mãe para a passar comigo. Queria passar uma semana. Fizemos tudo. Dá-me a impressão que era uma premonição, que ele se estava a despedir, e ele foi-se embora no dia 1 e morreu no dia 3.

E o mais curioso é que foram os colegas dele da câmara, os trabalhadores da Câmara de Setúbal que prepararam tudo, todo o funeral. Veja o amor que ele tinha e o respeito que lhe tinham. Porque só se faz isso a um colega quando o respeitamos muito, quando o queremos muito. Portanto, o meu pai, eu tenho um prazer grande de saber que foram os colegas que trataram do funeral dele.

Achas que tens alguma coisa na tua personalidade dele?

Todos nós temos qualquer coisa. Provavelmente, devia ter sido um bom homem, de certeza.

Tu és um bom homem.

Faço por isso, mas também sou um homem.

A arte de representar como é que ela surge?

Sai justamente também da Casa do Gaiato. A Casa do Gaiato faz umas récitas anuais não para angariação de fundos, mas para retribuir às comunidades, às cidades onde eles estão. É um encontro. E eu já me começava a salientar e então era aproveitado para muito mais trabalho que os outros. E daí saiu um pouquinho o bichinho do teatro. 

Sentiste alguma coisa especial quando subiste ao palco pela primeira vez?

Não, era um miúdo com 9 anos ou 10.

Mas quando é que percebes que o teatro é que ia tomar conta de ti?

Mas isso eu nunca percebi. Fui traído, porque o teatro não era a minha vocação. Eu não queria ir para o teatro. Eu queria ser advogado, queria estudar Direito. Ainda fiz a iniciação ao Direito.

Porquê o Direito? Para ajudar os oprimidos?

Exatamente. Vi duas peças na televisão. Nós estávamos em 76 e havia "O Caso Rosenberg" e "12 homens em Conflito". E quando tens 17 anos e vês estes filmes e vês estas peças, pensas, "eu tenho que ser advogado".

Mas como é que depois não vais para Direito?

Eu estava no liceu e houve uma coisa que era A Operação Pirâmide. Foi em 78. Raul Solnado, Fialho Gouveia... Em Setúbal, foi o Carlos César que organizou. E aquilo era uma animação durante 24 horas, penso eu. Era o dia inteiro em angariação de fundos para os retornados. 

Acontece que eu tinha um grupo, formado também por mim no liceu, de teatro, e nós participámos como teatro amador. E o Carlos César viu que eu tinha jeito e perguntou-me se eu não queria ser ator profissional. Eu disse, "olhe, eu agradeço, mas não. Estou a estudar, não quero".

Estava a chegar o verão, e os meus colegas todos diziam, "aproveita". Ao mesmo tempo, também era bom porque criava a minha autonomia financeira. Eu dependia muito da mãe. E acabei por ir, mas com uma condição: ia para o teatro, mas só se o teatro fosse à noite ou só fazia de manhã porque os meus horários no décimo segundo eram à tarde. E ele disse, sim senhor, tudo bem não há problema. É mentira. É mentira porque quando se entra no teatro, tu não tens horário nem de manhã nem de noite e ainda para mais num teatro que é um teatro de formação.

Estes grupos de teatro independente fazem formação. Então, tu tens que estar alerta sempre.

E fazes tudo para além de representar.

Claro, isso é uma riqueza extraordinária. Aprendi muito. Eu tinha a comunicação das companhias. Fiz comunicação, andei a angariar publicidade para os programas do festival, participei na organização de festivais de teatro. 

Lembras-te do primeiro espetáculo em que participaste?

Lembro-me, foi uma substituição, o Julgamento do Lobo. 

Lembras-te o que sentiste pela primeira vez no palco, com a plateia à frente, já em termos profissionais?

A responsabilidade é diferente. É completamente diferente. 

Mas o teatro conquistou-te.

Sim, a partir daí, sim. Até porque depois não há retorno. Ao voltar, depois, já tens problemas com o latim. 

Eu sei que em Latim eu tive 18. Era um bom aluno no primeiro período. No segundo, tive 9, e chumbei com 3.

O amor da vida e o tempo para o perceber

Como é que a Zita entra na tua vida? Ela, que se casou com um suíço.

O nosso ex-marido. Nós somos amigos. Aliás, devo dizer-te, nós fomos convidados para o casamento dele.

O que é que se passou aqui nesta relação para que só 10 anos depois se tivessem unido?

Encontros e desencontros e provavelmente o que nos segura hoje é esse tempo. Que nós precisávamos de amadurecer, crescer, criar outros horizontes. Foi bom para ela, foi bom para mim, e depois reencontrámo-nos. Eu conheci a Zita, eu estava no Teatro de Animação de Setúbal e o Carlos César deu-me como tarefa no verão fazer um curso de teatro. Organizar, pelo menos. Eu fui aos liceus, às escolas, e pedi inscrições. E apareceu a Zita e mais outros colegas.

Porque é que a Zita é uma das mulheres da tua vida?

Porque a Zita é uma heroína. É uma mulher extraordinária. Tem raízes também que não foram assim tão felizes quanto isso e consegue superar. Ela consegue transmitir aos outros uma alegria de vida extraordinária.

Já lá vão quantos anos?

Vão 25 anos. Foi o teu produtor que me lembrou. Tenho que ir comprar o anel. Bodas de prata.

O teu trabalho de ator, que é tão diverso, ficou muito colado ao Menino Tonecas, que, aliás, é uma criação dos anos 30 do José Oliveira Cosme. Isso foi bom ou foi mau?

Isso foi muito bom. Para mim, foi uma sorte. É um privilégio. Foram quatro anos, uma vez por semana. Com um sucesso estrondoso e que me traz hoje benefícios em termos de alguma estabilidade financeira. Foi o Menino Tonecas que criou duas coisas. Para já, a mediatização. E através dele e dos espetáculos, eu e o Morais e Castro, nós percorremos a Europa inteira, fomos aos Estados Unidos, fomos ao Canadá. Trabalhámos imenso.

Mas não é uma personagem muito colada à tua pele?

Essa é outra parte que não é tão boa. Demorou muito tempo a descolar. É injusto terem colado Luís Aleluia ao Tonecas. Por outro lado, tem uma coisa boa, que é que o Tonecas caiu no colo das pessoas por uma questão de uma relação afetiva.

Eu hoje tenho seguidores que vão ver o Youtube, e vão ver o Menino Tonecas, e divertem-se. Por causa desta história dos Youtubers, e do humor que eles têm, há miúdos de 12, 13 anos, que vão ver e procuram e já fazem o Tonecas.

O curioso é que também tenho gente com 30 e 40 anos que vêm relatar-me histórias e que têm saudades dos entes queridos com quem eles viam e assistiam ao menino Tonecas.

Ainda estiveste uns anos sem fazer nada depois do Tonecas ou não?

Eu quando percebi que esta intermitência me levava a ficar dependente da opinião dos outros gostarem ou não de mim, eu criei a minha própria produtora. Eu faço o meu trabalho e dou trabalho a outros colegas. Sou dependente, naturalmente, a imagem é muito importante. Mas estou sempre a trabalhar. Regressei a Beirais, e mesmo assim, foi porque eu perguntei ao diretor de programa, "quando é que acaba o castigo"? E lá fui.

Um dos teus mais responsáveis papéis é este de ser pai do José e do João.

Sem dúvida nenhuma. Foi crescendo esse amor. Ao princípio, foi o entranhar. É engraçado e começas a duvidar, mas será que tenho capacidade? Mas, depois, chegas a uma altura em que... hoje já não passo sem eles. Hoje daria a vida por eles.

Não tenho nenhum filho biológico, mas não sei qual é a diferença. O Laborinho Lúcio costuma dizer uma frase, que é extraordinária, que as crianças mais felizes são as que são adotadas. Felizmente que a maior parte são adotadas pelos pais biológicos porque é preciso nós nos adotarmos uns aos outros. Todas as crianças precisam ser adotadas. Nós precisamos de ser adotados pelo público. Nós, artistas. Deem-nos colo, deem-nos abraços.

O que é que a vida te ensinou?

A vida ensinou-me a acreditar mais nos outros apesar dos muitos desaires que a gente muitas vezes tem, aquelas frustrações.

O que é que te frustra? Tu sentes isto, que todos dizem, que não és suficientemente aproveitado? 

O Manuel Cavaco ainda há pouco tempo disse-me isso. Eu, por acaso, também acho. E o mais engraçado é que tenho trabalhado com pessoas, agora novas, tenho tido agora muita televisão, felizmente. Ainda agora trabalhei num projeto. Quando me recebem num projeto, é sempre um pouquinho a medo, desconfiados. "Lá vem o menino Tonecas."

Eu, que tenho uma frase para dizer no primeiro episódio, acabo sempre por ser já o protagonista nos últimos episódios.

Uma palavra importante para ti?

Força. Força para acreditar, força para saber que temos nós força para dar aos outros também. É preciso força.

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