"Uma esquerda sem amarras" que tem um "antes e depois". O Livre quer pôr a papoila na Europa - e "unir forças" no país

10 mai, 08:00
(Imagem: Livre)

No dia em que arranca o 14.º Congresso do Livre em Setúbal, a CNN Portugal fica a conhecer as principais mudanças e desafios de um partido que se despediu da primeira representante parlamentar há quatro anos e aproxima-se das eleições europeias

Universalismo, Liberdade, Igualdade, Solidariedade, Socialismo, Ecologia, Europeísmo – há 11 anos o partido Livre via a sua declaração de princípios ser aprovada em reunião, dando início a um percurso repartido em três objetivos basilares: “Libertar Portugal da dependência financeira e do subdesenvolvimento económico e social”, “traçar um modelo de desenvolvimento para o país assente na valorização das pessoas, do conhecimento e do território”, “cumprir com estes objetivos através de um profundo processo de democratização e de maior inclusão dos cidadãos na ação e representação política”. O novo partido político português foi legalizado em 2014 pelo Tribunal Constitucional e a inédita papoila vermelha passou a competir ao lado dos partidos à esquerda.

Mas a ideia surgiu um ano antes, na sequência do Manifesto para uma Esquerda Livre que captou a atenção de milhares de subscritores. Num período em que o país atravessava uma grave crise económica sob a liderança de Pedro Passos Coelho e Aníbal Cavaco Silva, a iniciativa procurava essencialmente promover a mobilização dos cidadãos portugueses através de uma série de encontros abertos e transparentes para a elaboração de propostas. O documento redigido por figuras como André Barata, Safaa Dib, Marta Loja Neves, Renato Miguel do Carmo e Rui Tavares foi apresentado em maio de 2012, no Cinema São Jorge, em Lisboa. O nascimento do Livre ocorreu no seguimento de vários encontros mensais pelo país, que permitiram a recolha das assinaturas necessárias para o efeito, e culminou em 2014 com o Congresso Fundador, no Porto.

Dias antes do 14.º Congresso agendado para esta sexta-feira no Pavilhão Municipal da Costa da Caparica, em Setúbal, a líder do grupo parlamentar Isabel Mendes Lopes, que acompanhou os primórdios do partido, destaca em primeiro lugar o facto de este ter sido criado “de uma forma muito aberta e participada”. “Foi também assim que conseguiu agregar pessoas que não se conheciam e que não tinham experiência partidária, como era o meu caso, eu não conhecia ninguém”, admite à CNN Portugal. Desde então o Livre tem tido “um crescimento sustentado nas suas pessoas, membros e apoiantes”. Aliás, atualmente já conta com cerca de 1.900 militantes a nível nacional.

Segundo a deputada, o desenvolvimento de um novo grupo partidário surgiu da necessidade de “um partido da esquerda verde europeia” ocupar o espaço que havia em Portugal há mais de 10 anos. Enaltece os “ecologistas e libertários” que o motivaram à data e o grupo parlamentar pelas “provas dadas” de como “a política do Livre influencia também a política nacional”. Serve-se do exemplo do alargamento do subsídio de desemprego para vítimas de violência doméstica, a criação de um passe ferroviário nacional e o projeto piloto da semana de quatro dias: “É visível o papel que o Livre tem no presente e pode ter no futuro do país”.

O antes e depois de Joacine

Recuemos até às eleições legislativas de 2019, que resultaram na chegada de três novos nomes ao hemiciclo – Chega, Iniciativa Liberal e Livre. Joacine Katar Moreira foi eleita pelo distrito de Lisboa e passou a representar este último partido na Assembleia da República até 2020, quando lhe foi retirada a confiança política e passou a deputada não-inscrita. Após um hiato de dois anos Rui Tavares resgatou o lugar do Livre no Parlamento no mesmo processo eleitoral que culminou na maioria absoluta do Partido Socialista. Finalmente, na noite eleitoral de 10 de março, foram eleitos mais três deputados do Livre, fazendo deste o partido de esquerda que mais cresceu nas eleições legislativas de 2024.

Paula do Espírito Santo, especialista em Ciência Política e comportamento eleitoral, observa que há um “antes e depois” do Livre, ainda que tenha preservado um legado “muito baseado na inclusão e no combate ao preconceito” deixado por Joacine. “Ela tinha um perfil bastante ligado aos direitos humanos, à defesa da integração do ponto de vista cultural. Eu creio que esse talvez fosse o traço mais marcante e natural no Livre na altura em que ela representava o partido”, explica. “Aliás, foi pela diferença que o Livre conseguiu vingar num plano muito competitivo eleitoral, não tanto pela própria equipa, mas sobretudo pela principal representante que se demarcava por ser simplesmente diferente”.  

Mas agora com Rui Tavares aos comandos, verifica “uma esquerda que mobiliza pelo debate, num sentido comunitário de viver a política com base no intercâmbio de ideias”. “O próprio líder tem características muito próprias de comunicação, de sensibilização, mais uma vertente cultural, antropológica, quase histórica, e acaba por ter sobretudo a vantagem em relação às outras esquerdas de não ter um passado político, comprometido num plano parlamentar”, continua.  Mas apesar de entender que o Livre tenha adquirido “um perfil de proximidade de um partido que quer crescer”, Paula Espírito Santo não acredita que este ambicione “ser um grande partido” e sem contar com o seu limpo cadastro tem pela frente “uma competição muito forte e muito estreita à esquerda” em relação às grandes bandeiras.

"É uma esquerda sem as amarras tradicionais"

“Não há um Livre antes e depois de 2019”, afirma Isabel Mendes Lopes, assegurando que o partido “é muito parecido com aquilo que era quando nasceu”. “Os princípios são os mesmos, a forma de trabalhar é a mesma, temos vindo a afinar como todos os partidos fazem, mas as preocupações que temos, as bandeiras que temos, não se têm alterado ao longo deste tempo”, defende a deputada.

Não obstante, em comparação aos restantes partidos de esquerda – alguns até nove vezes mais velhos – considera o Livre “claramente um partido do século XXI”: “Quando falamos da redução do horário de trabalho e da semana de quatro dias, e de usar a tecnologia a nosso favor para conseguirmos reduzir o nosso tempo de trabalho e para melhorar a nossa qualidade de vida, isso é uma visão diferente”. Em suma, “é uma esquerda sem as amarras tradicionais com uma virtude mais libertária”, descreve.  

A líder do grupo parlamentar declara que atualmente o grande objetivo do partido passa por se unir a “outras forças de esquerda progressistas e ecologistas” visando construir “uma alternativa de governação estável” e com “visão de futuro” para o país. Ambiciona ainda que “nessa alternativa de esquerda progressista e ecologista o Livre tenha um papel preponderante e com força para influenciar essa governação”. Por outro lado, Isabel Mendes Lopes manifesta preocupação com a situação política atual que, por sua vez, dificulta a concretização desses objetivos de forma sustentável. “O Livre nunca deixará de apresentar as propostas, mas sabemos que com esta configuração política dificilmente as irá implementar”, diz.

Rumo à Europa

Com uma lista de candidatos encabeçada por Francisco Paupério, dia 9 de junho o Livre estará entre os 17 partidos e coligações que vão disputar as eleições europeias, sendo inclusivamente o primeiro a surgir nos boletins de voto. Paula Espírito Santo considera o “projeto Europa” um dos “traços identitários fortes” do grupo partidário, e prevê que agora seja mais afirmado devido ao período eleitoral. “Ainda não temos bem uma visão clara de qual é que vai ser a opção futura e quais os pontos programáticos, uma vez que a campanha ainda se vai iniciar, mas creio que tem a ver com as circunstâncias de ser um partido competitivo que também se quer apresentar a votos do Parlamento Europeu (PE)”, observa a politóloga.

Já Isabel Mendes Lopes receia que o PE durante os próximos cinco anos seja manchado “pelo surgimento de esforços extremistas” provenientes de partidos e movimentos que “querem condicionar a liberdade dos outros, que têm proveito próprio, que são antiecologistas, antidemocráticos e, se calhar, nacionalistas”. A deputada apela aos democratas que diz terem “um papel essencial” para que a Europa seja “dos direitos humanos” e tenha uma “visão de futuro”. “Este, para nós, é um grande desafio”, remata.

Esta sexta-feira à noite tem início em formato online a 14.º reunião do órgão máximo do Livre, com a aprovação do regimento do congresso e um fim de semana marcado por debates políticos. Os membros e apoiantes do partido reunir-se-ão para eleger os novos órgãos para o mandato de 2024-2026 e aprovar o programa eleitoral para as eleições europeias.

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