"Quando vi que era feliz, percebi que eu é que tinha de mudar". Eulália aceitou o filho homossexual há mais de dez anos. Agora, dá a voz pela Marcha do Orgulho portuense

1 jul 2023, 18:00
Bandeira LGBT (Foto: Ben Curtis/AP)

O Porto vai receber mais uma edição da Marcha do Orgulho LGBTI+, a 8 de julho. Só que a mudança de localização do arraial para uma zona mais periférica, por parte da autarquia, está a gerar polémica

“Esta mãe que estão a ver aqui perdeu o seu filho porque ele abandonou a cidade. Mas esta mãe foi à procura dele e encontrou-o na Alemanha”, começa por dizer Eulália Almeida, de 71 anos, na Assembleia Municipal do Porto. Refere-se a Sidney Almeida, agora com 29 anos, sobrinho que perfilhou quando este era ainda recém-nascido. Deixou Portugal após o ensino secundário, mas foi descoberto anos depois pela sua mãe adotiva, através da internet. Eulália, católica e assumidamente conservadora à data, não foi capaz de conter as lágrimas face a uma nova realidade que era, para si, impraticável: Sidney era homossexual e trabalhava como ator pornográfico.

À CNN Portugal conta que, desde muito jovem, desejava ter uma família numerosa. Deve-se às boas memórias do tempo em que observava os seus sete irmãos a trabalhar na oficina do pai. À mesa também “era sempre uma alegria”.

Como era esperado das meninas naquela época, Eulália conheceu um homem, casou-se e engravidou. Era o início da concretização de um sonho, mas durou pouco tempo. Para sua grande infelicidade, tratava-se de uma gravidez ectópica, e o primeiro filho não chegou a nascer. “À partida cortou-me logo as pernas, mas, passados dois anos, tentei novamente e tive a minha única filha biológica, a Sara”, relata. A possibilidade de ter uma grande família, no entanto, caiu por terra, quando foi forçada a realizar uma histerectomia.

Eis que, “quis o destino encarregar-se”, diz ela, levando o próprio irmão a pedir que tomasse conta do seu oitavo filho, que tinha acabado de nascer. “A minha cunhada tinha falecido e o bebé estava no hospital, com 27 semanas, a lutar pela vida”, conta. “A Segurança Social apresentou duas soluções: ou entregava o menino para adoção, ou este seria institucionalizado.” Eulália hesitou. Já não se julgava capaz de lidar novamente com as dificuldades da maternidade. O apoio da mãe e da filha, já com 13 anos, acabaram por a convencer.

O meu marido ficou aborrecido e disse que, se eu quisesse tomar conta do meu sobrinho que o mandasse vir, mas que tinha de fazer o papel de mãe e pai, porque ele não ia fazer nada. Eu assumi”, afirma.

Descreve Sidney como uma criança “muito turbulenta e hiperativa”, mas no que respeita à escola possuía competências acima da média a informática, concluindo o 12.º com uma média de 20 valores.

Em relação à sua sexualidade, a mãe adotiva sabe que este terá sofrido de bullying por ser “mais afeminado”, mas garante que “nunca lhe passou pela cabeça que fosse homossexual”. “Não sei se era de eu andar muito ocupada com o meu trabalho, estar muito ligada à igreja, mas nunca me apercebi de nada”, justifica-se. “Digo, muito sinceramente, que eu nem sequer sabia o que era sexualidade. Para mim, era amor entre homem e uma mulher, mas agora sei que vai muito mais além disso.”

Sidney já se encontrava na Alemanha, Eulália dava aulas de catequese e trabalhava nos escuteiros, mas nunca o visitou. Sabia que o filho se encontrava bem, de acordo com o que a sua outra filha lhe ia contando, mas tudo mudou quando foi abordada por uma colega de trabalho. “Levou-me para casa dela para ler uma entrevista dele, cujo título era ‘Hoje é que a casa vem abaixo’”, relata. “Fiquei a saber que o meu filho era homossexual e fazia filmes na VCI. Eu era tão ingénua que perguntava ‘o que é que o meu filho vai fazer para a VCI? Tirar fotografias aos carros?’”. “Nojo terrível”, diz ter sentido, à medida que ia descobrindo mais detalhes sobre a vida do seu filho de coração.

O documentário “Até que o porno nos separe”, lançado em 2018 por Jorge Pelicano, conta a história dos dois. Numa das cenas, vemos Eulália, visivelmente desesperada, de olhos postos no ecrã. Os seus óculos refletem imagens de Sidney nas redes sociais, completamente nu com outros homens e nos mais variados cenários. Ao mesmo tempo, fala-lhe através da caixa de mensagens, manifestando a sua dor. Exige uma explicação, mas essa tardou a chegar. “Dizia-lhe que era um porco, que eu não merecia isto, que mais ninguém o quis a não ser eu”, assume à CNN. “Não respondeu e, no dia seguinte, a mensagem foi ainda mais pesada: ‘não prestas, vais ser um inútil’”. O silêncio persistiu. À terceira vez, foi bloqueada.

Cada foto era pior do que a outra. Comecei a ficar mal, a enfraquecer, não conseguia lidar com isto”, junta.

Foi a pedido de Sara, prima e irmã adotiva de Sidney, que o jovem acabou por contactar a mãe, convidando-a a encontrar-se consigo na Alemanha. Lá, apresentou-lhe o seu mundo: os amigos, os locais que frequentava, o trabalho, os patrões. O ódio que Eulália sentia foi desaparecendo a cada dia.

“Eu ia com tantas pedras para lhe atirar, mas quando vi que era feliz, rodeado de pessoas que gostavam dele, que a entidade patronal o adorava, eu percebi que eu é que tinha de mudar”, conta.

Hoje apresenta-se como “uma mãe AMPLOS” – Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género – há mais de 10 anos, e lembra a promessa que outrora fez ao seu filho: “Vais ter o meu apoio. A partir de agora, vou ser ativista pelos direitos LGBTQIA+.”

Eulália garante que já não tem vergonha. "Sou uma mãe feliz e tenho orgulho no meu filho.". Mudou por amor, e por amor subiria ao púlpito da Assembleia Municipal do Porto, no dia 26 de junho, para contar a sua história. A voz trémula e expressão carregada são agora repetidamente partilhadas nas redes sociais. As suas palavras são, para muitos, uma inspiração, ou um símbolo de coragem. 

Falta de espaço ou "má vontade"?

Naquela noite reuniram-se os membros da Comissão Organizadora da Marcha do Orgulho LGBTI+ do Porto (COMOP), da qual Eulália também faz parte. Consigo levaram mais de cinco mil assinaturas, exigindo que a festa aconteça no centro da cidade. Festa essa que já consta da programação há vários anos, tradicionalmente no Largo Amor de Perdição. É que, desta vez, a pedido da autarquia, o Arraial Mais Orgulhoso do Porto, que assinala o término da marcha, no dia 8 de julho, terá de acontecer na Quinta do Covelo, a cerca de quatro quilómetros do local habitual. A justificação? Várias iniciativas a decorrer, diz a Câmara.

“Quando tivemos a primeira reunião com a Ágora e pedimos o Largo Amor de Perdição, efetivamente, foi rejeitado por questões de barulho e por causa do hospital”, esclarece Filipe Gaspar, um dos organizadores da COMOP. “Propuseram o Covelo e nós dissemos logo que era inaceitável. Acabámos por negociar o Largo das Fontainhas, que estava disponível.”

O novo espaço terá sido decidido numa reunião presencial e, mais tarde, confirmado telefonicamente. “Até já estávamos a ver imagens do local para percebermos onde ficaria o palco”, conta.

Entretanto, a 15 dias do evento, a proposta foi chumbada numa reunião do conselho de administração da empresa municipal, que por sua vez é presidido pela vereadora Catarina Araújo. A decisão foi comunicada posteriormente à COMOP, e a possibilidade de realizar o arraial na Quinta do Covelo voltou a ser levantada. “Ficámos muito surpreendidos, nunca nos disseram que havia imensas iniciativas. Fizemos um levantamento e são todas periféricas, seja na Pasteleira ou no Parque da Cidade. Não há nenhum evento marcado nas Fontainhas ou no Largo Amor de Perdição”, assegura Filipe.

O organizador destaca ainda a abstenção da mesma vereadora durante a votação da entrada do Porto para a Rede de Cidades Arco-Íris (Rainbow Cities Network), há cerca de um mês. “Nem o executivo de Rui Moreira se absteve”, critica. “Há aqui uma ligação clara entre uma má vontade de votar pelas questões LGBT, e depois confirma-se na prática do seu trabalho”.

“Estamos preocupados”, desabafa. “Estamos a ver uma espécie de cerco a apertar. Basta reparar no que se passa em Espanha, na Hungria, nos EUA, isto tem uma influência global.”

Filipe defende que a presença da comunidade LGBTQIA+ deve ser “central”, e que a Câmara Municipal “tem de tomar uma posição bem clara e bem definida sobre o assunto”. De outra forma, estará a “dar combustível a quem se organiza contra as liberdades individuais destas populações”. Para além disso, “a periferia pode apresentar-nos perigos, sobretudo na Quinta do Covelo, que é muito sombria, arborizada e altamente isolada”. Ou seja, a Quinta do Covelo não é, nem será, uma hipótese para a COMOP. 

“É um local agradável para passear e para as crianças, mas para um evento desta magnitude não tem condições”, critica Fátima Ferreira, da AMPLOS. De acordo com a representante desta associação, são esperadas cerca de 15 mil pessoas na Marcha do Orgulho portuense, e a Quinta do Covelo não tem capacidade para tal, sendo esta uma localização fechada.

Outro fator negativo que levanta é a mobilidade. “Se a marcha ocorre na Baixa do Porto, não faz sentido irmos todos em comitiva não sei para onde”, argumenta, mostrando preocupação com os participantes de mobilidade reduzida. “É querer levar-nos para a invisibilidade.”

Fátima Ferreira afirma ainda que a Câmara Municipal já tinha conhecimento do evento desde o início do ano, inclusivamente do arraial. “Agora dizem que não pode ser, porque há outras atividades, mas eles já sabiam disso”, diz.

Para além das motivações políticas, acredita que a decisão da autarquia tem, sobretudo, motivações comerciais. "Quando se fala tanto no facto de o Porto ser um destino LGBTI friendly, é amigável para quem? Para aqueles que beneficiam financeiramente disso", acusa, servindo-se do exemplo do merchandising que surge em larga escala nesta altura do ano. 

"Custa-nos que, realmente, a Câmara esteja ao lado de outros movimentos e outras celebrações, mas quando falamos nas pessoas LGBTI não aceitam o simples hastear da bandeira", remata. 

Câmara do Porto: "Pretendíamos evitar o centro da cidade"

Contactada pela CNN Portugal, a Câmara Municipal do Porto defende, em comunicado, que, "através da Ágora, apoia uma grande diversidade de eventos, quando isso lhe é solicitado, como foi neste caso, e relativamente a este em particular já manifestou e transmitiu à organização que iria apoiar". 

Afirma também que "sempre foi referido à organização da marcha LGBTI+ que pretendiam evitar o centro da cidade para a realização do arraial, à semelhança do que aconteceu com a outra iniciativa, com o mesmo cariz e no mesmo fim de semana (Porto Pride)". "O impacto deste evento no centro da cidade, num fim de semana onde se realizam vários eventos, tais como o Festival da Comida Continente (Parque da Cidade); Piquenique Dançante (Parque de S. Roque); Estádio de Praia (Edifício Transparente); Porto Pride (Parque da Pasteleira); Corrida PortuCale (Gustavo Eiffel e Paiva Couceiro), não facilitaria a mobilidade dos portuenses."

"A escolha do Parque do Covelo, local municipal com todas as condições para a realização do evento e no qual frequentemente acontecem diversas iniciativas municipais e promovidas/apoiadas pela Ágora, teve como principal fundamento lógico o facto de ser um parque urbano e estar próximo de acessos viários (VCI), e transportes públicos tais como o Metro e a STCP", lê-se. 

Por fim, a autarquia sugere a possibilidade de o Arraial Mais Orgulhoso ser acolhido pela Porto Pride, no Parque da Pasteleira, em conjunto com o seu evento. "Caso haja o entendimento comum da concretização dos dois eventos no Parque da Pasteleira, o município está ao dispor, como sempre esteve, para dar o devido seguimento ao que for decidido", termina.

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