"Sim, revira esses olhos". Como um quadro do séc. XIX se tornou viral nas redes sociais

CNN , Scottie Andrew
1 dez 2023, 10:00
"La Fiancée Hésitante", "A Noiva Hesitante" na tradução literal, é uma obra de 1866 do pintor francês Auguste Toulmouche que retrata uma mulher perturbada por estar prestes a casar contra a sua vontade. Auguste Toulmouche/Wikipédia

Do quase esquecimento para o TikTok, "La Fiancée Hésitante", também traduzida como "A Noiva Relutante", foi originalmente exposta sob o título "Un mariage de raison", ou "Um Casamento de Conveniência"

Aqui está uma mulher furiosa.

Embora esteja vestida com um luxuoso vestido com peles, numa casa palaciana francesa em meados do século XIX, a sua raiva silenciosa é reconhecível por mulheres de todo o mundo que já contiveram a sua ira num simples revirar de olhos.

É "La Fiancée Hésitante", a protagonista da pintura de 1866 do artista francês Auguste Toulmouche. Esta obra realista, que foi ofuscada na história da arte com a chegada dos pintores impressionistas pouco tempo depois, está a ser reavaliada mais de 150 anos depois por entusiastas de arte na rede social TikTok.

Inspirou inúmeras interpretações de utilizadores que imaginam os indubitavelmente irritados pensamentos que lhe passaram pela cabeça quando foi pintada - "ficarias muito mais bonita com um sorriso na cara" - tornando-se uma espécie de meme. Ela é apreciada por mulheres que partilham a sua desilusão com os papéis de género restritivos. E está a convidar a uma reavaliação feminista da própria pintura.

Quando "La Fiancée Hésitante" foi exposta pela primeira vez, as obras que retratavam a indignação silenciosa das mulheres eram por vezes consideradas pouco sérias, e grande parte da arte popular da época satirizava as mulheres solteiras, explica Kathryn Brown, professora associada de história da arte e cultura visual na Universidade de Loughborough, no Reino Unido.

Mas analisada por olhos contemporâneos, "La Fiancée Hésitante" mostra mulheres solidárias, que se apoiam mutuamente na "negociação de sistemas opressivos", observa Brown, que escreveu sobre a obra de Toulmouche na monografia Women Readers in French Painting 1870-1890.

"Mais de um século e meio depois, talvez ainda estejamos a descobrir todo o significado político deste tipo de união", diz.

Toulmouche não era um pintor feminista, mas a sua obra ecoa nas mulheres de hoje

Ele pintava cenas de mulheres francesas elegantes e ricas em ambientes domésticos, muitas vezes a narrar as suas aventuras românticas. As mulheres nas suas pinturas eram, à primeira vista, pouco mais do que debutantes sumptuosamente vestidas - o romancista francês Émile Zola em 1874 chamou às personagens de Toulmouche "bonecas deliciosas", lembra Brown.

As pinturas de Toulmouche tiveram sucesso na sua época em parte devido à "fantasia da vida feminina" que retratavam: as mulheres nas suas obras são esposas, mães, irmãs e filhas que não se afastam dos seus papéis na esfera doméstica, observa Brown.

"La Fiancée Hésitante", também traduzida como "A Noiva Relutante", foi originalmente exposta sob o título "Un mariage de raison", ou "Um Casamento de Conveniência", no Salão de Paris da Académie des Beaux-Arts, em 1866, conta Brown. O trabalho de Toulmouche foi popular durante algum tempo, com as suas pinturas frequentemente recriadas como gravuras em jornais. No entanto, acabou por ser ofuscado por pintores impressionistas como Claude Monet e Edgar Degas.

A mulher sentada em "La Fiancée Hésitante" inspirou utilizadores do TikTok a criarem memes baseados nos momentos em que tiveram de conter a raiva com um simples revirar de olhos. Auguste Toulmouche/Wikipédia

Embora Toulmouche não fosse "de modo algum um pintor de arte feminista", sublinha Brown, as mulheres dos seus quadros são hoje interpretadas como subtilmente subversivas.

No quadro de 1865 intitulado "Le Fruit Défendu", ou "O Fruto Proibido", três jovens mulheres debruçam-se entusiasticamente sobre livros numa biblioteca, enquanto uma quarta parece vigiar a porta. Entraram secretamente nesta sala à procura de informações - "sem dúvida sobre sexo", acrescenta Brown, com base nos seus sorrisos irónicos - que lhes foram ocultadas.

Brown sugere que as quatro mulheres de "O Fruto Proibido" reaparecem em "A Noiva Relutante", apoiando agora uma delas na sua infeliz caminhada em direção ao altar.

"Uma das quatro jovens de 'O Fruto Proibido' está agora prestes a casar-se, talvez com a pessoa 'errada' ou porque simplesmente não quer casar", interpreta Brown. "Lida como uma narrativa que se desenrola através das duas obras, parece que a jovem sabe o que lhe vai acontecer."

"A Noiva Relutante" está a conquistar fãs no TikTok

A redescoberta da obra levou séculos para acontecer. Contas de arte populares no TikTok começaram a publicar sobre esta obra nas últimas semanas, descobrindo-a com satisfação, embora pelo menos um utilizador, a entusiasta de arte Kira (@TheArtRevival), tenha partilhado um vídeo sobre Toulmouche em fevereiro. Diz que sempre adorou o seu trabalho. 

"Um dos meus temas preferidos na arte são senhoras requintadas a relaxar e a viver a vida com apatia", conta à CNN. "Poucos se identificam com as suas vidas, mas quase todos se identificam com o seu desdém."

A popular utilizadora Tatyana About Art disse que a pintura é realmente uma tragédia. A protagonista é provavelmente retratada a momentos de - ou momentos depois de – se casar com o marido por quem não está apaixonada. Está rodeada por duas mulheres que tentam gentilmente confortá-la, enquanto outra brinca com uma coroa de flores ao espelho, talvez a sonhar com o dia do seu próprio casamento. 

"A noiva está completamente sozinha nos seus sentimentos de desgraça e relutância", descreve Tatyana num vídeo.

No entanto, alguns utilizadores do TikTok veem a noiva como uma rebelde, que não entra tranquilamente num casamento com o qual não está satisfeita. Alguns utilizadores teorizaram que ela talvez não se sentisse atraída por homens e, uma vez que a homossexualidade ainda era vista como imoral na França do século XIX, viver abertamente teria sido quase impossível na época.

Embora possamos nunca vir a saber a história da mulher que se esconde na poltrona, o seu ar de irritado é familiar a qualquer pessoa que já teve de conter a sua raiva. Ela está encurralada, garante Kira, e "todos nós já passámos por isso". O facto de ela o expressar dentro dos limites do seu rígido papel na sociedade continua a ser cativante mais de um século depois. 

"Eu vejo-a e penso: 'sim, miúda, revira esses olhos'", afirma Kira.

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