"Estas crianças vão ficar órfãs por decreto". Em Itália, os filhos de casais do mesmo sexo vão passar a ter apenas um pai ou mãe "legal"

CNN Portugal , BCE
21 ago 2023, 15:31
Direitos LGBT Itália (Antonio Masiello/Getty Images)

Medida deixou centenas de famílias numa situação descrita como "limbo legal", desencadeando protestos em Itália e um pouco por todo o mundo

O governo de Giorgia Meloni ordenou a retirada do nome dos pais e mães não biológicos das certidões de nascimento dos filhos ou filhas - uma medida que constitui um volte-face nas políticas de algumas autarquias, como é o caso de Milão, que desde 2018 permite o registo de pais do mesmo sexo nas certidões de nascimento dos respetivos filhos.

Outras autarquias seguiram o exemplo de Milão, transformando a vida de várias famílias com casais do mesmo sexo, que até então nunca se tinham sentido "protegidos por nenhuma lei", confessa ao The Guardian Maria Silvia Fiengo, que tem quatro filhos com a mulher, Francesca Pardi.

Mas uma ordem do governo italiano, liderado por Giorgia Meloni - uma conservadora radical que sempre se manifestou contra a parentalidade partilhada por casais do mesmo sexo - passou a exigir que os governos locais apenas permitissem o registo do pai ou mãe biológicos na certidão de nascimento das crianças. O autarca de Milão, Giuseppe Sala, diz que não tinha outra hipótese senão obedecer. Na cidade de Pádua, no norte de Itália, o procurador local foi mais longe e exigiu que as 33 certidões de nascimento emitidas até então para filhos de casais do mesmo sexo fossem alteradas para retirar o nome da mãe não biológica.

A medida deixou centenas de famílias numa situação que o jornal The Guardian descreve como "limbo legal", desencadeando protestos em Itália e um pouco por todo o mundo. Os partidos da oposição não perdoam Meloni. "Estas crianças vão ficar órfãs por decreto. Esta é uma decisão cruel e desumana", critica Alessandro Zan, deputado do Partido Democrático italiano.

O Parlamento Europeu instou o governo italiano a reconsiderar a decisão, assinalando que a mesma constitui "uma violação direta dos direitos das crianças", tal como estabelecido pelas Nações Unidas, além de representar "um ataque mais amplo contra a comunidade LGBTQI+ na Itália".

Angelo Schillaci, professor de direito da Universidade Sapienza de Roma, explica porque a decisão se afigura não só como "um pesadelo para os pais, mas também para os filhos": "O segundo dos dois pais ou mães não pode fazer praticamente nada, desde levar a criança ao médico ou ir buscá-la à escola, sem autorização do pai legal.”

Nalguns casos, até a autorização do pai ou mãe "legal" se revela insuficiente, adverte o especialista. "Mesmo com autorização, eles não podem tomar decisões de saúde relacionadas com a vida da criança", exemplifica.

O impacto no quotidiano das famílias não se fica por aqui: se o pai ou mãe "legal" morrer ou ficar gravemente doente, o parceiro ou parceira não tem quaisquer direitos sobre os filhos, o que significa que, em último caso, as crianças podem ficar sob a guarda do Estado.

É certo que há sempre a possibilidade de adoção, mas esta solução alternativa pode demorar anos até ser resolvida nos tribunais italianos, estima Schillaci. "O que precisamos é de uma lei que reconheça a paternalidade homossexual", defende o professor, sublinhando que essa lacuna na lei "permite uma série de discriminações e violações dos direitos das crianças".

Apesar de permitir uniões civis entre pessoas do mesmo sexo desde 2016, Itália não permite que os casais homossexuais possam adotar crianças, muito devido à pressão dos partidos conservadores de direita e da Igreja Católica. Além disso, os casais homossexuais não podem recorrer à fertilização in vitro, podendo incorrer numa multa de até um milhão de euros e sentenças de até dois anos de prisão caso viajem para o estrangeiro com o objetivo de ter filhos através de barriga de aluguer, escreve o jornal The Guardian.

Maria Silvia Fiengo não tem dúvidas de que esta medida do governo de Meloni mais não é do que uma decisão sustentada pela ideologia do partido. "Caso contrário, qual é o problema? São dois homens e duas mulheres que se amam. Desde que Meloni assumiu o poder, tudo começou a ficar difícil. Mais difícil do que antes", lamenta.

Relacionados

Europa

Mais Europa

Patrocinados