Salvador Sobral sentiu que estava a transformar-se numa mulher. Mas ser intersexual é muito mais que isso

6 mar, 22:42

O cantor português, que venceu o festival Eurovisão de 2017, revelou que é intersexual porque o seu corpo não produz testosterona, pelo que recebe uma injeção da hormona “a cada quatro meses”. Mas esta condição é muito mais do que isso

Salvador Sobral revelou recentemente que é intersexual porque o seu corpo não produz testosterona. O cantor português diz mesmo que chegou a sentir que se estava “a transformar numa mulher”, uma vez que sentia “dores nas mamas” e “não tinha pelos em lado nenhum” nem sémen. O endocrinologista Francisco Sousa Santos explica à CNN Portugal que a intersexualidade é muito mais do que isso, sendo uma condição que abrange “apresentações muito variadas” e que pode ter “várias causas”.

Na verdade, a comunidade médica não reconhece o termo intersexual ou intersexo, mas sim “diferenças de desenvolvimento sexual”, adianta o médico especialista em endocrinologia, do Hospital Egas Moniz. Isto deve-se à evolução do estudo da sexologia, que tem vindo a “despatologizar várias condições que antigamente eram consideradas doenças”. Ou seja, ao contrário do que se acreditava até há bem pouco tempo, as diferenças de desenvolvimento sexual (ou intersexualidade) “não são sequer consideradas uma doença ou uma patologia, mas sim uma variação ou uma condição”, indica Francisco Sousa Santos, que integra a equipa multidisciplinar de sexologia do Hospital Egas Moniz.

De forma resumida, a intersexualidade é o que os médicos designam como um termo “umbrella”, ou seja, um conceito geral que abrange diversas “variações de anatomia dos órgãos sexuais, dos órgãos reprodutores e até mesmo dos cromossomas, que não encaixam nas típicas definições de masculino e feminino”.

Esta variação contraria a tradicional “conceção binária” das características sexuais, explica Francisco Sousa Santos, que enumera alguns exemplos concretos do que é ser intersexo. “Uma pessoa pode ter uma composição cromossómica típica de um homem, ou seja, 46 cromossomas XY, mas, em termos de anatomia dos seus genitais externos, tem uma vagina. Ou então uma pessoa que nasce com órgãos reprodutores masculinos e femininos, como um testículo e um ovário”, aponta, acrescentando que também há casos de pessoas com “um órgão reprodutor que tem características de testículo e ovário ao mesmo tempo”, o chamado ovotestis.

Todas estas variações são “muito raras”. Estima-se que “1 a 2% da população mundial” apresente diferenças de desenvolvimento sexual, acrescenta o endocrinologista, que acompanha casos destes em consulta e admite que o ‘diagnóstico’ “pode ser mais ou menos difícil”, dependendo dos casos. “A maior parte das situações intersexo é aparente nos primeiros anos de vida, às vezes até pode ser detetado antes do nascimento, através das ecografias obstétricas”, diz.  Mas há quem só descubra já na vida adulta - e há mesmo quem viva uma vida inteira sem saber que tem esta condição.

Um dos muitos casos que Francisco Sousa Santos acompanhou em consulta ilustra isso mesmo. Uma pessoa que, na aparência física, apresentava todos os órgãos sexuais exteriores femininos, mas que não conseguia conceber. Só depois de se investigar a causa das dificuldades na fertilidade é que se percebeu que, “em termos cromossómicos, havia um X e um Y em vez de um X e um X”, e que, por essa razão, os ovários não produziam óvulos para fecundar.

Segundo o endocrinologista, “na maior parte das vezes” estas diferenças de desenvolvimento sexual ou intersexualidade estão associadas a dificuldades de fertilidade, precisamente porque, não tendo uma “formação típica”, os órgãos sexuais e reprodutivos acabam por não produzir os gâmetas, isto é, os óvulos ou espermatozóides. “É relativamente comum as pessoas com estas condições intersexo terem problemas a nível da fertilidade, e muitas vezes são mesmo inférteis”, resume.

A aparência das diferenças de desenvolvimento sexual não só podem ser variadas como também as suas causas são diversas, podendo ser hereditárias, na medida em que “várias situações são determinadas por uma genética diferente”. 

Intersexual = hermafrodita?

Quando se fala em pessoas com dois órgãos sexuais ou reprodutivos, é comum associar essa condição às pessoas hermafroditas. Mas também esse termo está desatualizado, explica Francisco Sousa Santos, apontando que essa definição “é uma referência mitológica” que muitas vezes é entendida com “uma interpretação pejorativa”, razão pela qual a comunidade médica não a utiliza. “Se aceitássemos esse termo como correto, uma pessoa hermafrodita seria considerada uma pessoa intersexo”, confirma o endocrinologista.

Mas a evolução não se deu apenas nas palavras. Também o modo como olhamos para as diferenças de desenvolvimento sexual evoluiu ao longo do tempo, desde logo no que diz respeito ao tratamento. “Antigamente, quando tínhamos uma visão mais patológica desta condição, fazia-se uma cirurgia no sentido de pertencer ao masculino ou ao feminino e ter tudo conforme um dos sexos. Hoje em dia já temos uma visão de que isto se trata de uma variação do que é considerado normal, portanto explicamos à pessoa o que tem e o passo seguinte é de acordo com o que a pessoa desejar, ou seja, tanto pode avançar com cirurgias de afirmação de género, como pode não o fazer”, explica, ressalvando que, por vezes, são necessárias cirurgias para tratar algumas malformações que constituem riscos para a saúde, como uma malformação na uretra que provoca problemas urinários. 

“Mas numa situação em que a pessoa não corre nenhum risco, e que está em paz com o seu corpo, hoje em dia considera-se que não é necessário realizar nenhum tipo de cirurgia”, resume o médico especialista em endocrinologia.

O caso de Salvador Sobral

O cantor português, que venceu o festival Eurovisão de 2017, revelou recentemente, no podcast watch.tm, que é intersexual porque o seu corpo não produz testosterona, pelo que recebe uma injeção da hormona “a cada quatro meses”.  

“Senti um dia que estava a transformar-me numa mulher, estava com dores nas mamas e a minha cara começou a ficar mais redonda, e não tinha pelos em lado nenhum, não tinha sémen”, acrescentou.

Salvador Sobral, que em 2017 foi submetido a um transplante do coração devido a uma insuficiência cardíaca, disse que começou a ter estes sintomas depois de tomar “alguma medicação para o coração”. “Mas sinto que já existia uma condição anterior a isso”, acrescentou, sem revelar mais pormenores sobre que condição era essa.

O endocrinologista Francisco Sousa Santos não conhece o caso de Salvador Sobral, mas recorre à experiência académica e clínica para salientar que a não produção de testosterona “não é um sinónimo” de ser intersexual. “A maioria das pessoas que têm problemas na produção de testosterona não são intersexo (...) mas têm um problema que foi adquirido ao longo da vida, por alguma razão - ou porque foram submetidos a tratamentos como radioterapia ou quimioterapia, ou porque tiveram um tumor numa zona do cérebro que controla a produção hormonal, etc., - e , como consequência, o seu organismo não consegue produzir testosterona. Portanto, são causas adquiridas”, começa por explicar.

Em contrapartida, prossegue o especialista, “as alterações de desenvolvimento sexual são situações que até se podem manifestar já em idade adulta mas a pessoa já as tem desde o início” da sua vida. Ou seja, a pessoa “pode ter detetado [as alterações] mais tarde, mas estão ali desde início”, concretiza.

A descrição do caso de Salvador Sobral tanto pode “corresponder a uma situção intersexo, como pode corresponder simplesmente a uma situação de baixa produção de testosterona por qualquer outro motivo”, explica Francisco Sousa Santo, apontando como outras possíveis causas um “atraso pubertário” ou o hipogonadismo, associado à falta de produção de testosterona e espermatozóides. Em suma, acrescenta, “as pessoas com alterações no desenvolvimento sexual geralmente têm défice de produção de testosterona, mas não são sinónimos”.

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