As moscas não o largam? Tem uma praga de formigas e baratas em casa? Os insetos fazem "um ótimo serviço ao planeta", mas "vivem à nossa custa"

2 set 2023, 08:00
Moscas (Pexels)

Tendo em conta os efeitos das alterações climáticas, os entomologistas admitem que possam surgir cada vez mais pragas de insetos nos próximos anos

"Todos os animais cumprem uma função ecológica no planeta, por isso é que cá estão". As palavras são do entomologista Albano Soares, do Tagis – Centro de Conservação das Borboletas de Portugal, que explica à CNN Portugal que as baratas, as formigas, as moscas e outros insetos que teimam em entrar pelas nossas casas nesta altura do ano não são exceção à regra.

O verão é, por defeito, a altura em que estes insetos aparecem com mais frequência, seja nas ruas ou nas nossas casas. Isto porque, segundo o especialista, "os insetos vivem consoante a temperatura ambiente" e produzem uma "resposta biológica a estímulos", nomeadamente à luz, ao calor e humidade. Além disso, algumas espécies de insetos atingem a idade adulta por esta altura e, por isso, tornam-se "mais visíveis" agora, explica à CNN Portugal José Manuel Grosso-Silva, biólogo especializado em entomologia.

Por outro lado, se mora numa zona urbana e nota a presença de mais baratas ou roedores na via pública ou até mesmo no interior das casas, o motivo pode ser mesmo a existência de um maior número de resíduos urbanos e detritos biológicos, que são precisamente o alimento daqueles mamíferos e insetos, aponta José Manuel Grosso-Silva.

Mas quando é que podemos dizer que estamos a enfrentar uma praga? "As pessoas tendem logo a considerar que, quando há mais do que uma dúzia de insetos, já é uma praga, o que não é necessariamente a questão", argumenta o também curador das coleções entomológicas do Museu Nacional de História Natural e da Ciência. Muito resumidamente, "é praga quando causa incómodo", sintetiza o especialista.

Apesar de causarem repulsa por questões sanitárias, a verdade é que estes insetos são essenciais para os ecossistemas, precisamente porque se alimentam dos detritos biológicos, consumando uma espécie de "reciclagem" da natureza, como explica José Manuel Mato-Grosso, que utiliza o exemplo das moscas.

"São animais que se reproduzem em detritos orgânicos, vegetais ou animais - podem ser cadáveres ou excrementos de animais, podem ser plantas mortas - e, ao consumirem esses detritos, limpam a natureza. Depois, essas mesmas moscas vão servir de alimento a outros animais. No fundo, é um ciclo. Os insetos participam na transferência de matéria e de energia nas teias alimentares, é tão simples quanto isso", afirma.

O mesmo acontece com as baratas, completa o entomologista Albano Soares, referindo-se ao facto de as baratas se alimentarem também de detritos biológicos, cumprindo assim "um ótimo serviço ao planeta, que é a reciclagem".

Mas as baratas que entram pela nossa casa dentro já perderam essa função, tal como o ser humano já deixou de cumprir a sua há séculos, à medida que foi evoluindo para uma civilização, argumenta o entomologista. "Tal como nós perdemos a nossa função ecológica de abrir clareiras, fazer caminhos, dispersar sementes e caçar alguns animais, as baratas também perderam a sua função no ecossistema", observa Albano Soares, referindo-se ao facto de as baratas, uma vez no interior das nossas casas, contaminarem os produtos alimentares que consumimos com as bactérias dos detritos de que se alimentam.

"Hoje [as bactérias] vivem à nossa custa, vivem do lixo que produzimos, e isso pode trazer-nos problemas porque os detritos que consomem estão cheios de bactérias e de germes, o que pode provocar-nos doenças. Mas esse desequilíbrio foi causado por nós. A espécie não é um demónio, nós é que transformamos essa espécie no que ela é", argumenta.

Apesar dos causarem "repulsa", as baratas que vivem nas zonas urbanas "foram trazidas por nós", reforça o entomologista. "A nossa civilização é que as trouxe, de tal forma que há muitas espécies das quais nós nem sabemos qual a origem, como a periplaneta americana - uma espécie de barata que só vive cá porque nós geramos involuntariamente condições para tal, isto é, temos saneamentos, canalizações, temos edifícios com temperaturas mais ou menos constantes o ano inteiro, onde algumas conseguem sobreviver ao inverno e, quando aumenta o calor, começam a reproduzir-se", completa.

Há moscas "essenciais para os ecossistemas", outras contaminam os nossos alimentos

Mas não foram só as baratas: as moscas, que tanto nos incomodam, também vivem à nossa custa. Pelo menos, as que vivem no interior das nossas casas, como explica Albano Soares. "Hoje temos muito mais espécies de moscas do que tínhamos há um século, porque tínhamos menos pessoas no planeta, produzíamos muito menos matéria orgânica, e as moscas vivem disso", aponta. Só que "há moscas e moscas", assinala o entomologista, separando as moscas que andam pela nossa casa e as que realmente são "essenciais para os ecossistemas". 

"As que andam em nossa casa também já o foram porque fazem exatamente a mesma coisa: reciclar produtos orgânicos. Só que, como andam em todo o lado, acabam por contaminar os nossos alimentos, algumas inclusive sugam-nos o sangue e podem transmitir doenças [como é o caso da doença do sono, transmitida pela mosca tsé-tsé], mas aqui, na nossa latitude, o principal problema é a contaminação de alimentos", confirma o especialista.

Teresa Novo, entomologista do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), partilha a mesma opinião, afirmando que "o problema das moscas é o mesmo do das baratas: elas pousam em detritos em decomposição, sejam eles vegetais ou animais, como carnes, e pode sempre haver essa transferência de bactérias que estão nos produtos em decomposição para outros alimentos".

Além disso, acrescenta a especialista, algumas espécies de moscas produzem larvas que "vivem em feridas, em fossas nasais ou até no tubo digestivo de mamíferos", as chamadas miíases - uma doença que ocorre quando as moscas colocam ovos na pele ou nas mucosas e as larvas começam a crescer ali. Apesar de não ser "muito comum" cá em Portugal, esta doença existe. Ainda assim, "é muito mais frequente em países tropicais", indica.

Tal como as baratas e as moscas, as formigas também "são essenciais para o planeta", sublinha Albano Soares. "Muitas delas reciclam matéria vegetal, apanham sementes (são as chamadas formigas ceifeiras), arejam os solos, outras também controlam os predadores de outros insetos, e existem até simbioses entre árvores e formigas. Aqui em Portugal, inclusive em Lisboa, há uma formiga que toma conta das árvores, são as crematogaster, que gostam de viver em árvores e impedem que essas árvores sejam atacadas por pragas de borboletas e de traças, por exemplo."

Ora, tendo em conta os efeitos das alterações climáticas, a par com a globalização, o entomologista admite que possam surgir cada vez mais pragas de insetos nos próximos anos. "Há 50 anos, quantos de nós é que fazíamos viagens intercontinentais? Não fazíamos. Quando se fazia, era de navio, demorava-se cerca de mês e meio de África até aqui e tinha de se passar por vários climas, portanto qualquer inseto que viesse naquele navio não ia sobreviver. Mesmo que sobrevivesse, chegava cá e ia encontrar um clima adverso. Agora não, uma pessoa chega em poucas horas de Buenos Aires com um inseto escondido na roupa e encontra um clima muito quente, portanto, os insetos têm agora muito mais hipóteses de se conseguirem estabelecer cá."

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