Estes pais ganham dinheiro e viajam de graça com imagens dos filhos nas redes sociais. O que acontece nos bastidores?

CNN , Lilit Marcus
19 ago 2023, 12:00
Crianças em viagens férias CNN

Há famílias inteiras a viver de vídeos e fotografias dos filhos. Mas há problemas com isso. Incluindo usos de imagem, consentimento e partilha de receitas.

Estes miúdos têm férias de borla graças à fama no YouTube. Mas o que é que acontece nos bastidores?

Numa fotografia do Instagram, uma família de quatro pessoas - pai, mãe, irmão e irmã - posa em Nova Orleães, nos EUA, com colares de Carnaval de contas verdes e roxas.

Noutra imagem, o quarteto aperta-se no sofá de um hotel, enquanto a mãe e o pai bebem champanhe, todos a sorrir para a câmara.

Os Morrison podem parecer agentes secretos com vidas duplas - uma família suburbana do Arizona durante o dia, exploradores do mundo ao fim de semana.

Na Internet, são conhecidos como American Travel Family e os seus 11 mil subscritores do YouTube acompanham-nos nas suas visitas a destinos turísticos populares como Londres, a República Dominicana e a Disneylândia.

A imagem de entrada da página da "Família Americana das Viagens" no Youtube.  

No entanto, além dos comentários do tipo "estou com tanta inveja!" e "boa viagem!", pode haver um lado mais sombrio em colocar a vida de adolescentes e crianças à disposição do público.

Um ajuste de contas digital

Chris McCarty, estudante universitário da Universidade de Washington, lançou uma campanha para mudar de forma permanente a forma como as crianças são compensadas pelas suas aparições nas contas das redes sociais e nos vlogs dos pais.

McCarty, que usa os pronomes eles/elas, foi estimulado a agir pela controvérsia que surgiu quando Myka Stauffer, uma blogger de parentalidade, anunciou que tinha colocado o seu filho adotado com necessidades especiais numa família diferente depois de o rapaz ter aparecido nas suas redes sociais.

Em 2022, McCarty iniciou uma campanha intitulada Quit Clicking Kids, destinada a impedir que as pessoas utilizem crianças nas redes sociais para obterem ganhos monetários.

Até à data, o trabalho de McCarty tem-se centrado em pais bloguers como Stauffer, cujas presenças online se baseiam na educação dos seus filhos. McCarty acredita que as crianças merecem privacidade e uma palavra a dizer sobre a forma como são retratadas online, especialmente aquelas que são demasiado jovens para dar consentimento.

No entanto, não são apenas os canais dedicados à parentalidade e à família que apresentam crianças em frente à câmara.

Os relatos de viagens em família abundam na Internet. Há famílias "worldschooling" que educam os seus filhos em viagem, famílias que viajam pelos EUA numa caravana e partilham as suas dicas sobre como fazer o mesmo, e famílias que avaliam hotéis e estâncias.

Os criadores de conteúdos mais populares podem facilmente ganhar somas com seis ou sete dígitos por ano com receitas de publicidade e parcerias com marcas.

Mas como é que esse dinheiro deve ser atribuído?  Se as crianças ajudam - passiva ou ativamente - a criar conteúdos que dão dinheiro, será que merecem uma parte das receitas?

A indústria cinematográfica e televisiva já fez um balanço sobre estas questões.

A Lei Coogan tem o nome da famosa estrela infantil dos anos 1920 Jackie Coogan, cujos pais esbanjaram a sua fortuna. Agora, os atores infantis no estado da Califórnia devem ter 15% de seus ganhos depositados numa conta fiduciária à qual seus pais ou responsáveis não podem ter acesso.

McCarty acredita que deveria haver uma nova lei ao estilo da Lei Coogan para as crianças que aparecem em vídeos online e contas nas redes sociais.

"Em primeiro lugar, as crianças atores não estão a representar a sua vida real. Por isso, apesar de, em muitos casos, ser ator infantil ser muito intensivo, especialmente dependendo da dimensão do papel, não é a sua informação pessoal que está a ser partilhada", diz McCarty. "Enquanto nestes casos de vloggers familiares, normalmente são detalhes muito íntimos e pessoais que são partilhados com um vasto público e monetizados".

E acrescentam: "Há todo o tipo de formas de contornar os regulamentos e, claro, para as crianças em canais de vlogging familiares, nem sequer há regulamentos para contornar".

Mesmo que os Estados Unidos aprovassem leis, estas poderiam não se aplicar às famílias viajantes, que não têm morada fixa ou criam os seus conteúdos noutros países.

Em maio de 2023, o gabinete do Cirurgião-Geral dos EUA [o "médico" da nação, comparável em Portugal ao Diretor-Geral da Saúde] emitiu um aviso sobre as redes sociais e a saúde mental das crianças.

"Há cada vez mais provas de que a utilização das redes sociais está associada a danos na saúde mental dos jovens", afirmou Vivek Murthy, cirurgião-geral dos EUA, na declaração.

"As crianças estão expostas a conteúdos nocivos nas redes sociais, que vão desde conteúdos violentos e sexuais a intimidação e assédio. E para demasiadas crianças, a utilização das redes sociais está a comprometer o seu sono e o valioso tempo que passam pessoalmente com a família e os amigos. Estamos a meio de uma crise nacional de saúde mental dos jovens e preocupa-me que as redes sociais sejam um importante motor dessa crise - uma crise que temos de resolver urgentemente."

Stacey Steinberg, directora do Centro para Crianças e Famílias da Faculdade de Direito Levin da Universidade da Flórida, nos EUA, define as razões pelas quais as pessoas partilham fotografias de crianças online.

"A maioria dos pais partilha para obter capital social, para construir uma comunidade ou para se manter em contacto com a família e os amigos que vivem longe, ao passo que as famílias que são influenciadoras estão a ganhar não só capital social, mas também capital financeiro", afirma.

A autora salienta que existem limitações em legislações como a Lei Coogan - por um lado, só se aplicam em alguns estados dos EUA e não abrangem todas as razões pelas quais as crianças podem trabalhar.

"Muitas das leis do nosso país que regem o trabalho infantil prevêem excepções para as crianças que trabalham para os pais. Assim, por exemplo, se os meus filhos trabalhassem na minha quinta, as leis seriam muito diferentes do que se trabalhassem na quinta ao fundo da rua. E isso deve-se ao facto de os Estados Unidos terem uma forte base de autonomia parental. Temos uma forte história de pais capazes de decidir o que é melhor para os seus filhos".

Assim, as crianças que brincam no canal da família no YouTube podem ser o equivalente contemporâneo às crianças que faziam tarefas na quinta há um século ou dois.

A diferença, porém, é que estranhos de todo o mundo não podiam ver um miúdo a ordenhar uma vaca - ou a transformá-la num meme.

"Há um grande salto entre a Lei Coogan e a regulamentação dos pais influenciadores, não só porque se está a avançar para o espaço da Internet, mas porque se está a tentar regulamentar o dinheiro que uma criança ganha como parte de um negócio familiar. E a Lei Coogan não se aplica nessas situações", acrescenta Steinberg.

Empoderamento ou abuso?

A mãe Brooke Morrison é a principal vlogger da família e responsável pelas redes sociais da American Travel Family, que iniciou em 2020, quando o seu filho Parker tinha 13 anos e a filha McKenzie 10.

Morrison diz que ela e o marido colocam 15% dos seus ganhos online em contas fiduciárias para os seus filhos. Agora, porém, a sua filha tem manifestado interesse em atuar e aparecer mais nas câmaras. Diz que, se McKenzie fizer um vídeo para o Instagram ou o TikTok que não seja uma peça programada e editada, envia à filha alguns dólares através do Apple Pay.

Segundo ela, devem existir limites rígidos em relação às coisas que os pais partilham online sobre os seus filhos. "Sinto que nem todas as famílias têm as intenções que nós temos", afirma. "Alguns pais vêem estrelas nos seus olhos e utilizam os filhos para subir na vida como fonte de rendimento."

Caz Makepeace, que gere o Y Travel Blog com o marido Craig, diz que utilizou o canal da família no YouTube para ensinar as duas filhas a gerir um negócio.

Entrada da página Y Travel, da família Makepeace.

"Pagamos às nossas filhas e utilizo-o como uma lição para elas", afirma. "Faço com que elas negoceiem comigo. Elas detestam que eu faça isso, mas eu digo-lhes: 'Bem, se não defenderes o teu valor, mais ninguém o fará, por isso começa a aprender agora'."

Makepeace admite que, à medida que as suas filhas ficam mais velhas, ficam menos interessadas em aparecer nas câmaras, a menos que haja um incentivo financeiro. "Quer dizer, é a vida real, não é? Ninguém quer trabalhar e não ser recompensado por isso."

Ela e o marido começaram a fazer mais viagens sozinhos - para dar aos filhos uma pausa na criação de conteúdos, mas também para diversificar os seus vídeos e chegar a públicos diferentes.

Ainda assim, ninguém consegue compreender verdadeiramente outra pessoa simplesmente por ver a sua presença online.

O caso de Machelle Hobson serve de exemplo. A mãe de sete filhos tinha um canal de sucesso no YouTube chamado Fantastic Adventures, onde os seus filhos se vestiam de super-heróis e jogavam jogos.

No entanto, a versão fora do ecrã da vida dos filhos de Hobson não era nada parecida com a que era retratada nos vídeos.

Em 2019, Hobson foi presa e acusada de duas acusações de molestamento de uma criança, sete acusações de abuso infantil, cinco acusações de negligência infantil e cinco acusações de prisão ilegal.

Segundo a polícia, as crianças eram espancadas e castigadas se não quisessem aparecer nas câmaras ou se não se lembrassem das suas "falas".

Antes de as suas contas nas redes sociais serem encerradas, Hobson ganhava entre 106 800 e 1,7 milhões de dólares por ano (entre quase cem mil e 1,6 milhões de euros).

Novos regulamentos para um novo modo de vida

McCarty acredita que alterar as coisas a nível estatal é a forma mais rápida de fazer mudanças em tempo real na indústria de criação de conteúdos.

A 11 de agosto, o Illinois tornou-se o primeiro estado dos EUA a aprovar um projeto de lei deste tipo. A lei estabelece que se um menor aparecer em pelo menos 30% do vídeo gerador de receitas de um influenciador durante um período de 30 dias, o menor tem direito a uma parte das receitas. Essa receita deve ser depositada numa conta fiduciária a que o menor possa aceder depois dos 18 anos.

Para alguns ativistas, no entanto, os regulamentos actuais não vão suficientemente longe.

Por exemplo, o Facebook e o Instagram exigem que os utilizadores tenham pelo menos 13 anos de idade. No entanto, isso não impede os pais e outros adultos de mostrarem crianças e bebés nas suas próprias contas.

E mesmo que uma criança diga que não se importa que algo seja partilhado online, não pode controlar a forma como as outras pessoas reutilizam e respondem a esse conteúdo.

Anos mais tarde, quando se candidatam à universidade ou a um emprego, a primeira coisa que aparece com o seu nome no Google pode ser um artigo crítico ou uma fotografia embaraçosa. Uma vez tocada a campainha, parece impossível de desatar o problema.

Para pais como Makepeace e Morrison, os prós dos vlogs de viagens em família - férias gratuitas, dinheiro de marcas e patrocinadores, visitas guiadas especiais e acesso a atracções famosas - superam os negativos.

No caso dos Makepeace, que são da Austrália, os vlogs de viagens até proporcionaram um caminho para a cidadania americana. No final do dia, insiste Caz, eles são uma família que viaja muito e que, por acaso, teve a sorte de ganhar a vida com isso.

"Conseguimos ter este incrível estilo de vida de viagem juntos", diz ela, "e criar estas memórias fantásticas".

 

ADENDA

Direitos do trabalho infantil nos Estados Unidos, da fábrica à Internet: Uma linha do tempo:

1904
É fundado o National Child Labor Committee, com o objetivo de acabar com o trabalho infantil. É uma resposta ao censo de 1900, que revelou que cerca de dois milhões de crianças trabalham em moinhos, minas, campos, fábricas, lojas e nas ruas das cidades dos Estados Unidos.

1916
É aprovada a primeira lei sobre trabalho infantil - a Lei Keating-Owen - que proíbe a venda interestadual de qualquer artigo produzido com trabalho infantil e regulamenta o número de horas que uma criança pode trabalhar.

1918
A Lei Keating-Owen é revogada pelo Supremo Tribunal dos EUA, que considera que a lei ultrapassa o objetivo dos poderes do governo para regular o comércio interestatal.

1938
É aprovada, e assinada pelo Presidente Franklin Delano Roosevelt, a Fair Labor Standards Act, lei de standards de trabalho justo .

1939
Criação da California Child Ator's Bill (também conhecida por Lei Coogan), que impede os pais de terem acesso total aos rendimentos dos filhos. Não é lei em todos os estados dos EUA.

1989
Adoão pela ONU da Convenção sobre os Direitos da Criança, segundo a qual "as crianças devem poder crescer, aprender, brincar, desenvolver-se e florescer com dignidade".

1998
Aprovação do Children's Online Privacy Protection Act (COPPA), o que significa que há limites para a recolha de dados online das crianças.

2003
O estado de Nova Iorque aprova a Lei de Educação e Fideicomisso dos Artistas Infantis, que regula o número de horas por semana que uma criança pode trabalhar e exige que parte do seu rendimento seja depositado numa conta fiduciária, entre outras coisas.

2004
É criado o Facebook.

2005
Lançamento do YouTube.

2010
Lançamento do Instagram.

2023
O Illinois aprova uma lei que estabelece que se um menor aparecer em pelo menos 30% do vídeo gerador de receitas de um vlogger durante um período de 30 dias, o menor tem direito a uma parte das receitas, que será colocada numa conta fiduciária.

Fontes: Arquivos Nacionais, Departamento do Trabalho dos EUA, Screen Actors Guild, Comissão Federal do Comércio, Departamento do Trabalho de Nova Iorque, ACNUDH, Assembleia Legislativa do Estado de Washington e Assembleia Geral de Illinois.

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