Há mais freguesias a ir além da lei e a dificultar a vida aos imigrantes: Arroios não é caso único

7 mar, 12:00
Rua do Benformoso, Mouraria (Foto: Rodrigo Cabrita)

Está a "ser barrado aos imigrantes o acesso a serviços essenciais". "É chocante, surreal"

Um papel afixado na vitrina da junta de Arroios fez soar o alerta, mas este não é caso único. Nas juntas de freguesia de Campanhã, no Porto, e do Beato, em Lisboa, os cidadãos estrangeiros que precisem de um atestado de residência (que só a junta pode emitir) também têm de apresentar um título de residência, que é emitido pela recém-criada Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA), que veio substituir o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).

No caso de Campanhã, a apresentação do título de residência é requisito para qualquer tipo de atestado (seja residência, prova de vida, confirmação de agregado familiar, etc.); no caso do Beato, o cidadão estrangeiro precisa de apresentar não só o título de Residência ou Cartão de Residência, como também cartão de contribuinte, mais um contrato de arrendamento ou título de propriedade do imóvel habitado em nome próprio (em caso de não haver nenhum destes dois, são necessárias duas testemunhas eleitoras na freguesia).

“O que deve acontecer é o contrário: o imigrante encontra alojamento, tem testemunhas e procura na junta demonstrar que reside naquela área e, assim, obtém o Atestado de Residência para procurar regularizar a sua situação [junto da AIMA com o pedido de título de residência]. Isso seria o normal da lei e esta situação acaba por ser uma contradição”, começa por dizer Catarina Reis Oliveira, coordenadora do Observatório das Migrações.

Há ainda casos não tão claros desta exigência, como acontece com a União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória, no Porto, que, apesar de nunca mencionar ‘cidadãos estrangeiros’ na página online referente ao Atestado de Residência, escreve o seguinte: “Para requerer o atestado de residência na Junta de Freguesia deverá obrigatoriamente encontrar-se recenseado na União de Freguesias de Cedofeita, Santo Ildefonso, Sé, Miragaia, S. Nicolau e Vitória”, estando listados como “documentos necessários: Cartão de Cidadão, Bilhete de Identidade, Título de Residência; NIF; Comprovativo de morada (por exemplo: contrato de arrendamento) + recibo renda de casa ou certidão de domicílio fiscal ou, que comprove a sua morada”.

Já a União das Freguesias de Caparica e Trafaria, em Almada, por exemplo, diz que o cidadão estrangeiro “deve apresentar o seu documento de identificação com morada atualizada”, mas para haver uma mudança de morada é necessário que tenha a sua situação regularizada, sendo, por isso, necessário o título de residente ou o próprio atestado de residência, por exemplo.

O advogado Marco Spínola Barreto diz que “isto é um marcha-atrás, é um retrocesso enorme, cria uma série de dificuldades aos imigrantes, promove a clandestinidade, impede que tenham determinados direitos básicos”, adiantando que, “a norte”, tem clientes “que foram confrontados com essa situação”, dando o exemplo de Campanhã. “Sei que estão a ser criadas dificuldades em que os clientes apenas por via judicial conseguem resolver e o próprio juiz diz que [a junta] tem de emitir o atestado de residência em ‘x’ prazo”.

O advogado - que muitas vezes trabalha em pro bono nestes casos - reconhece, porém, que esta via judicial não está ao alcance de todos os cidadãos estrangeiros em dificuldade, o que causa assimetrias entre eles. Mas, adverte, “muitas vezes, só resolvo através dos tribunais”.

“É evidente que uma pessoa indocumentada é uma presa fácil, não tem o direito de escolha. Está a condicionar-se a vida de uma pessoa por uma questão de forma. É chocante, surreal”, frisa o advogado.

"Preferem ter imigrantes ilegais e mais casos como Odemira?"

Marco Spínola Barreto trabalha há vários anos com imigrantes. É conhecido por ‘encostar à parede’ as instituições do Estado que dificultam a regularização de cidadãos estrangeiros que querem viver e trabalhar em Portugal. Depois de ter levado avante mais de mil processos contra o já extinto SEF, como noticiou o Público, o jurista diz que são já “400” as ações contra a AIMA por atrasos na emissão do título de residência. E basta, por exemplo, abrir o Portal da Queixa para ver que são mais de 400 as queixas apresentadas nesta plataforma contra aquela agência, muitas delas referentes às dificuldades em obter em tempo útil o título de residente.

Os atrasados por parte Agência para a Integração, Migrações e Asilo são por si só um problema, mas, ainda assim, conseguem agravar ainda mais a decisão de Arroios e companhia: se a junta pede o título de residência para emitir o Atestado de Residência, um atraso por parte da AIMA apenas prolonga a irregularidade do cidadão e o bloqueio a serviços essenciais, como aceder ao Serviço Nacional de Saúde, matricular os filhos, entre outros. De momento, 300 mil imigrantes em Portugal têm pendentes os seus processos de regularização, que deixarão de ser verificados pela AIMA e passarão a ser verificados por advogados e solicitadores.

“As pessoas estão a tentar resolver a sua situação, a junta não pode limitar um documento necessário”, vinca o advogado, apressando-se a dizer que “isto é criar obstáculos de todo o nível, quando se sabe que sem imigrantes há setores em Portugal que entram em colapso”, fazendo ponte para os dados recentemente noticiados e que dão conta que os imigrantes deram mais de 1.600 milhões de lucro à Segurança Social em 2022.

O advogado reconhece que “o fenómeno migratório é um tema delicadíssimo”, mas adverte que “é preciso que as pessoas tenham condições para se regularizarem”, sob a pena de viverem em condições deploráveis. Marco Spínola Barreto explica que se as pessoas não se regularizarem “tornam-se presas fáceis para empresas. A pessoa está clandestina e é um alvo fácil de exploração, fica sem o direito a opção” e, por isso, à mercê de empregos precários e ilegais. Além disso, adianta-se, “a pessoa fica sem direitos básicos, como aceder a um hospital”.

Mas não só: o advogado não tem dúvidas de que situações como estas, sobretudo se se multiplicarem por outras regiões, podem “potenciar situações de conflito, é um retrocesso mau para a sociedade, mau para o país”.

“Condicionar cada vez mais [a regularização destas pessoas] é dar margem à clandestinidade. Preferem ter imigrantes ilegais e mais casos como Odemira?”, questiona o advogado, que assegura que “só temos uma alternativa, que é integrar legalmente essas pessoas”.

Os trabalhadores imigrantes em Odemira continuam a enfrentar condições desumanas de trabalho e habitabilidade, no entanto, o concelho de Odemira só consegue manter atividade económica com a mão de obra imigrante.

"Estamos a recuar 20 anos"

“A realidade hoje não é a de há 20, 30 anos, a Europa mudou, o país mudou, apenas há uma solução: integrar legalmente os cidadãos imigrantes”, volta a dizer Marco Spínola Barreto, que desafia as autoridades estatais a serem mais céleres e pragmáticas: se conseguir um contrato de arrendamento “é raro e o [contrato de] subarrendamento nem existe, se o Estado só exige um atestado da junta e este não é emitido, o que é destas pessoas?”.

O caso de Arroios - freguesia com o maior número de nacionalidades de todo o país, 92 no total - foi noticiado esta semana pelo Diário de Notícias -, e  já levou onze associações e coletividades de apoio a migrantes e o CDU e o Bloco de Esquerda a tecer críticas, tendo o partido liderado por Mariana Mortágua apresentado uma queixa junto da Provedoria da Justiça, que a CNN Portugal contactou, mas sem sucesso.

O próprio Governo veio repudiar a decisão da junta liderada por Madalena Natividade, advertindo que às autarquias compete “fiscalizar o número de pessoas que vivem nas habitações e as condições em que vivem, mas não devem extrapolar essas competências, nomeadamente exigindo títulos de residência para a obtenção do atestado de residência”.

Da mesma opinião é Catarina Reis Oliveira, que defende que, ao invés de travar ou dificultar, “o sistema deve alertar e fiscalizar e questionar, fazer um acompanhamento mais próximo” dos casos, referindo-se, por exemplo, aos já conhecidos casos em que há dezenas de imigrantes a viver numa mesma habitação ou até a arrendar colchões. A socióloga coordenadora do Observatório das Migrações adianta ainda que a sobrelotação é um problema que deve ser resolvido, mas não da forma como Arroios e outras juntas querem, acusando-as de “transferir o ónus da responsabilidade para os imigrantes” e não para si mesmas. No seu entender, deve-se “investigar os senhorios e não os imigrantes”, instando as autarquias a agir nesse sentido e a duvidarem quando chega a mesma morada vezes sem conta associada a novos pedidos de atestado.

“Com estas decisões estamos a recuar 20 anos, era o problema que tínhamos antes da lei de 2007”, continua a socióloga, lamentando o possível efeito “pingue-pongue” que medidas como estas podem trazer, em que uma instituição empurra a responsabilidade para outra: “há vários mecanismos na lei que permitem regularizar [a situação dos imigrantes], mas se entrarmos nesta ‘pescadinha de rabo na boca’ em que uma instituição não aceita porque não há um documento, entramos num pingue-pongue em que o prejudicado é o imigrante”.

Catarina Reis Oliveira diz mesmo que as autarquias deveriam olhar para os imigrantes com outros olhos e ao invés de criarem barreiras à sua regularização, deveriam acelerá-la. “Em Portugal temos um défice de recenseamento eleitoral por parte dos estrangeiros, não só porque há nacionalidades sem reciprocidade eleitoral, mas porque muitos desconhecem os direitos, mas quando o municípios passarem a ver os estrangeiros como eleitores pode ser que passem a ver o atestado [de residência] com outros olhos”

A CNN Portugal tentou entrar em contacto, por telefone e por escrito, com as juntas de freguesia neste artigo mencionadas, de modo a perceber se a informação que consta nos respectivos sites se mantém válida, mas não obteve qualquer resposta em tempo útil. Aliás, é possível que haja mais com estes requisitos, pois saber quantas mais freguesias exigem o título de residência para a emissão do Atestado de Residência é um exercício quase impossível, com muitas juntas a apresentar sites obsoletos, escassez de informação ou formas de contacto úteis.

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