Se podem ser vários os entraves que os migrantes enfrentam quando chegam a Portugal, de forma regular ou não, são ainda maiores as barreiras no acesso a cuidados de saúde, que também pesam nos prestadores desses cuidados, do centro de saúde à farmácia. "É trabalhoso, mas é gratificante, sentimos que ajudamos mesmo." Este é o quinto de uma série de trabalhos sobre o impacto da imigração em diferentes setores da sociedade portuguesa
Quando Nuno Tavares Costa foi trabalhar para a farmácia do Martim Moniz, “fez no ano passado 20 anos”, a grande maioria dos imigrantes ali instalados era da China. Hoje atende também muitas pessoas da Índia, do Bangladesh, do Nepal, “de várias nacionalidades”. O grande entrave para o farmacêutico no dia a dia é a língua. E dadas as condições em que muitos destes migrantes vivem, são caricatas algumas das situações com que a sua equipa já se deparou. “Muitas vezes vivem em casas com poucas condições e às vezes têm aqueles percevejos, esse tipo de insetos, e vêm aqui mostrar as picadas no corpo, tentamos fazer perguntas, perceber se estão a ter uma reação alérgica… E eles abrem a mão, desembrulham o papel e sai de lá o inseto.”
A fórmula acaba por resultar e ajuda a derrubar barreiras à comunicação, diz o diretor técnico daquela que é a farmácia mais próxima de um dos principais hospitais da capital. “Também temos aqui serviço com o Hospital de S. José, que é um hospital a que grande parte [dos imigrantes da zona] recorre, pelo menos os que têm situação legal, até porque estão no Serviço Nacional de Saúde (SNS) e descontam como todos nós, portanto têm todos os direitos. Mas quando não estão [regulares], recorrem muito à farmácia em primeira instância.”
Nos últimos tempos, o farmacêutico sente que um dos grandes problemas na zona é o consumo de drogas. “Noto isso nestes últimos dois anos, que muitas das medicações têm a ver com toxicodependência.” Muitos dos que chegam à farmácia vêm diretamente da unidade do Grupo de Ativistas em Tratamento (GAT) que foi instalada na praça do Martim Moniz, num projeto em parceria com a Câmara Municipal de Lisboa para apoiar a população vulnerável com problemas de adição e doenças associadas. “Como, às vezes, são pessoas tão carenciadas, eles também ajudam noutro tipo de medicação. É um dos gestos que foi muito importante aqui na zona”, destaca. “Da nossa parte, tentamos ajudar como podemos, escolhemos sempre os genéricos, os medicamentos mais baratos… São pessoas que precisam e que não sabem das coisas. E nós acabamos por ser um pouco médicos, psicólogos, fazemos um pouco de voluntariado e acho que isso é o mais gratificante.”
"Há entraves difíceis de gerir"
Dados mostram que o número de utentes estrangeiros do SNS tem vindo a subir de forma sustentada ao longo dos últimos anos, reflexo do aumento da imigração para Portugal que, em 2022, atingiu o valor mais elevado de sempre – 782 mil residentes de outras nacionalidades, correspondente a 7,5% da população residente. No mesmo ano, quase 892 mil estrangeiros estavam inscritos no SNS, numa proporção de 114 por cada 100 residentes estrangeiros, sendo “evidente que esse universo excede o número de estrangeiros com título de residência válido em Portugal”, como sublinha o mais recente relatório do Observatório das Migrações (OM) com indicadores sobre a integração de imigrantes em Portugal.
Na Unidade Local de Saúde (ULS) de S. José, que integra o hospital servido pela farmácia do Martim Moniz, até ao início de dezembro passado tinham sido registados mais de 45 mil atendimentos a estrangeiros, residentes e não residentes, de acordo com números avançados pelo JN esta semana. Do total, cerca de 27% foram brasileiros, 7% do Bangladesh e 6% do Nepal. Dados do extinto Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) apontavam que, em 2022, 66,5% dos 3.450 nacionais do Bangladesh residentes em Portugal vivem em Lisboa, em particular nas zonas servidas por essa ULS.
Mónica Fonseca é médica na Unidade de Saúde Familiar (USF) do Areeiro, que integra a ULS de S. José. Mas antes disso, trabalhou muitos anos na USF Sofia Abecassis, na zona de São Bento e do Príncipe Real, onde atendia doentes de mais de 45 países, “a maioria de países fora do espaço comunitário” da UE. “Eu tinha utentes da Ilha de Santa Helena, da República Dominicana, Brasil – o grosso era do Brasil – do Japão, da China, do Iraque…” Para a especialista em medicina geral e familiar, nem os serviços estão apetrechados para responder a esta diversidade, nem os especialistas conseguem dar resposta às necessidades dos doentes, o que põe em causa a prestação dos cuidados de saúde.
Dá como exemplos o risco de doenças cardiovasculares, “que é diferente na sociedade europeia e na sociedade americana”, ou de diabetes, que difere muito entre portugueses e nepaleses. “O risco de diabetes é completamente distinto, o rastreio que eu tenho de fazer é numa altura diferente, porque a prevalência de diabetes no Nepal, a incidência, a idade em que a doença surge, é tudo completamente diferente. Eu aprendi isso com os doentes à frente e a ler algumas coisas do Nepal, que como deve imaginar não estão em português nem em inglês.”
Essas barreiras linguísticas estendem-se da pesquisa de documentação a que decidiu dedicar o seu tempo para melhor servir a população que seguia na USF Sofia Abecassis às interações com os doentes. “São entraves que se tornam muito difíceis de gerir para um médico de família, que é a única especialidade de medicina em que o objetivo não é dar alta ao doente”, mas segui-lo pelo maior período de tempo possível, “idealmente da pré-conceção à morte”, destaca. “É muito difícil estar a tentar falar com pessoas que não conseguem perceber nem inglês nem português, que são as duas línguas que eu falo, seguir crianças, explicar a diversificação alimentar de um bebé…”
A situação torna-se dramática, diz, porque em última instância estas barreiras “geram risco clínico”. “Isto tem, de facto, um impacto grande. E acima de tudo, o problema é a barreira linguística e a diferente prevalência de doenças em diferentes continentes, regiões e países. Isto não tem nada a ver com discriminação, tem a ver com a preocupação de prestar a esta população os mesmos cuidados, com a mesma qualidade.” Para a dra. Mónica, Portugal é um “bom exemplo de excelente abertura”, mas em termos de saúde falta limar muitas arestas também nesta área – até porque “estas situações e particularidades, muitas vezes, têm impacto na saúde pública”.
Dados incompletos e entraves linguísticos
Com a pandemia Covid, as autoridades portuguesas promoveram medidas extraordinárias de apoio sanitário, e os números da vacinação também mostram que foram abrangidos mais estrangeiros do que aqueles que vivem legalmente no país. Em 2021, mais de 990 mil pessoas de nacionalidade estrangeira foram vacinadas contra a Covid, 142% do total de estrangeiros com título de residência nesse ano (698.887) e 123% do universo de estrangeiros inscritos no mesmo ano no SNS (804.279). Como destacado no mesmo relatório do OM, o universo de vacinados inclui não apenas imigrantes com residência permanente em Portugal, mas também turistas estrangeiros, imigrantes temporários e imigrantes em situação irregular.
Os dados mostram ainda que a população estrangeira tende a procurar menos os serviços de saúde em comparação com os portugueses, o que, em parte, reflete o facto de o país ser o segundo mais envelhecido da União Europeia e de uma grande maioria dos imigrantes ser relativamente jovem. Apenas em parte, já que são números que não traduzem as reais necessidades destas comunidades – como indica o relatório do OM, “tanto podem refletir melhor estado de saúde dos imigrantes, que dispensa os cuidados de saúde, como podem refletir dificuldades ou barreiras no acesso aos cuidados de saúde que os tornam sub representados no universo de utilizadores dos serviços”.
As circunstâncias de muitos destes imigrantes, com rendimentos mais baixos, piores condições laborais e de habitação e com maior exposição ou risco de exclusão social, fazem parte da equação e impactam diretamente o recurso aos serviços de saúde. E foi para dar resposta a isto que, nos últimos anos, foram surgindo projetos de integração na área da Saúde, como o Bengalisboa Health Project, lançado em 2016 por dois médicos da Unidade de Saúde Familiar (USF) da Baixa, a escassos passos da farmácia do dr. Nuno.
Criado em parceria com o Centro Islâmico do Bangladesh, a Junta de Freguesia de Arroios e o Centro Nacional de Apoio à Integração de Migrantes, o projeto de Cristiano Figueiredo e José Lima está no terreno há oito anos para “reduzir as desigualdades no acesso à saúde”, fazendo a ponte entre migrantes e profissionais de saúde e reduzindo o fosso que afasta muitas destas pessoas de USF e hospitais, como demonstram casos como o de Gaurab Marhatan, nepalês de 37 anos que vive e trabalha em Arroios há um ano e meio.
Ainda sem os contratos de trabalho que acabariam por vir a celebrar, e que lhes permitiram regularizar a sua situação em Portugal, a mulher de Gaurab sofreu dois abortos espontâneos que a levaram às urgências, onde as barreiras de comunicação foram de tal forma frustrantes que, mal conseguiram juntar algum dinheiro, foram ao Nepal tentar perceber o que poderia estar errado. “Eu estava preocupado e aqui só me diziam que estava tudo bem. Lá fizeram-lhe uma colposcopia, está a fazer um tratamento e dizem que podemos voltar a tentar daqui a uns meses.”
Os estrangeiros que não são (só) doentes, a farmácia onde "nunca houve problema"
“Normalmente temos muito esta tendência de ver os imigrantes apenas como utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) e não como profissionais, e é preocupante porque, nos últimos anos, aumentou o treino mas o número de profissionais estrangeiros diminuiu face à viragem do século, em que tivemos um aumento importante”, ressalta Catarina Reis de Oliveira, diretora do OM e autora dos relatórios sobre integração, que combinam dados estatísticos do INE, Eurostat e outros com dados administrativos do Estado português. “Acho que é importante dar-se esse lado também, porque o SNS precisa destes profissionais, mais programas houvesse para os integrar…”
Desde o início dos anos 2000, o número de imigrantes prestadores de cuidados de saúde, que têm ajudado a suprir a carência de profissionais no SNS, evoluiu positivamente até 2004, quando atingiu o maior número (4.490), correspondente a 3,5% do total de recursos humanos do Ministério da Saúde. Mas o número tem vindo a descer desde então, com 2020 a registar o valor mais baixo, ano em que o SNS integrava 3.228 profissionais de saúde não-portugueses.
Apesar de uma subida ligeira entre 2021 e 2022, os níveis de há 20 anos ainda não foram repostos. No último ano em que há registos disponíveis, havia 4.055 estrangeiros a trabalhar no SNS, 2,7% do total – sobretudo espanhóis, brasileiros, e angolanos, na sua maioria médicos (43% do total). Ao todo, em 2022, havia em Portugal 1.729 médicos estrangeiros a exercer no SNS, 677 enfermeiros estrangeiros, 1.312 operacionais e 337 noutras profissões do Ministério da Saúde.
Também alguns deles, ou os seus doentes, já terão aviado receitas na Farmácia do Martim Moniz, por onde todos os dias passam pessoas “de tantas nacionalidades e comunidades”, até pela centralidade do estabelecimento, bem perto da baixa, a ligar à Almirante Reis e à Mouraria. Ao terminar a conversa com a CNN Portugal, Nuno Tavares Costa, o diretor técnico, faz questão de sublinhar que "o receio de algumas pessoas em irem ou passarem pelo Martim Moniz" não tem razão de ser, até porque "a imigração é o menor dos problemas" ali.
“O que eu tenho a dizer é que é uma população super pacata, esta é a parte que eu tenho de frisar. No início da carreira comecei noutras farmácias, noutras zonas diferentes, mas trabalho aqui há 20 anos e esta foi a farmácia onde nunca houve o mínimo problema. São pessoas super simpáticas, afáveis, até hoje não tenho nada a apontar a esta população. É trabalhoso, mas é gratificante. Chegamos ao final do dia e saímos mais gratificados, a sentir que ajudamos mesmo."