opinião
Correspondente Médica CNN Portugal

Carta da Ucrânia (III) ou os médicos feitos reféns

20 mar 2022, 19:29

Sofia Baptista, correspondente médica da CNN Portugal, está em contacto permanente com médicos na Ucrânia. E transformou numa carta o relato de Andrii Naboichenko, médico que está em Kiev

Cara Sofia,

Como te tenho vindo a descrever, vivemos uma verdadeira crise humanitária e, apesar dos esforços de todos – população, governo, toda a ajuda externa que nos tem chegado – a situação é muito frágil. 

Recentemente, tive três colegas médicos salvos por milagre após o hospital onde trabalhavam ter sido tomado por tropas russas. Foram feitos reféns, impedidos de prestar a assistência básica aos doentes, aos feridos que lá estavam. No dia anterior, um dos médicos desse hospital saiu, juntamente com uma enfermeira, para comprar alguma comida e regressou com uma lata de café trespassada por uma bala. Essa lata estava na mochila que trazia às costas. Podia ter sido bem pior, é certo, mas isto mostra o que pode acontecer a duas pessoas desarmadas numa rua dos arredores de Kiev. Como pode esta violação da moral, da Lei Internacional, ocorrer na Europa civilizada do século XXI, Sofia? Ninguém está a salvo, já não existem lugares seguros.

Sabes, costumávamos colocar umas cruzes vermelhas nos carros, para nos identificar como profissionais de saúde em serviço. Agora, receamos fazê-lo, porque apercebemo-nos que isso pode, pelo contrário, tornar-nos alvo de ataques.  Percebe-se que há uma vontade clara de causar o maior dano possível e isso está a passar pela destruição da infraestrutura civil e de hospitais, como temos visto. Isto não são danos colaterais, é acção deliberada. Os profissionais de saúde são uma parte importante da resistência – o inimigo está a tentar minar esta parte da luta, mas não o conseguirá.

Perguntaste-me também sobre como têm sido os meus dias de trabalho desde o início da guerra. Bem, ser um neurocirurgião no meio de uma guerra não é tão útil quanto eu gostaria, mas nem todos podemos estar na linha da frente. A maioria dos feridos que precisam de cirurgia não são do meu foro. A situação nos hospitais é algo assimétrica, tanto pode ser relativamente calma em alguns, como noutros a pressão já ter ultrapassado a capacidade instalada, particularmente nos hospitais mais próximos da linha da frente do combate. Estamos a tentar realocar recursos para equilibrar a situação. Pode ser difícil acreditar, mas também estamos a tentar, sempre que possível, manter as cirurgias electivas, isto é, cirurgias não urgentes. Não sabemos quanto tempo isto vai durar e não queremos atrasar o tratamento de muitas pessoas que estão a sofrer, nomeadamente doentes com cancro. Tenho continuado a realizar cirurgias na minha área de especialização que é a base do crânio, são cirurgias muito exigentes e demoradas. Estamos também a fazer muita teleconsulta, enfim, numa tentativa de manter a normalidade possível. Tenho tido muitos pedidos de teleconsulta relacionados com a ocorrência de acidentes vasculares cerebrais em pessoas que estão em cidades em que o acesso a um serviço de urgência é muito difícil ou mesmo impossível. De facto, já começamos a constatar as consequências da descompensação de doenças crónicas, como a hipertensão arterial, a Diabetes, a asma, a epilepsia, entre outras.

Tantas vidas destruídas, Sofia! Ser uma mulher, ser uma criança, ser um doente, ser um médico – nada é garante de segurança nos dias de hoje. Eu não sou muito ligado à política, não sei qual a melhor solução, só sei que isto tem que ser parado!

Nunca percebi muito bem o patriotismo – sempre achei que nascer em determinado lugar não passava de uma coincidência. Mas agora sinto-me muito feliz por ser ucraniano e acredito que isto é o começo de uma Ucrânia e de um mundo novos!

 

Andrii Naboichenko, médico Neurocirurgião

16 de Março de 2022, Kiev, Ucrânia

 

Este texto não está escrito ao abrigo do novo artigo ortográfico.

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