Obrigada a sair de Lisboa, Maria teve de se endividar para conseguir arrendar casa no Vale da Amoreira, mesmo depois de ser aumentada

Henrique Magalhães Claudino , Artigo e título corrigidos às 10:00. Uma primeira versão indicava que o Vale da Amoreira pertencia ao concelho do Barreiro quando, na verdade, pertence ao concelho da Moita
12 ago 2023, 08:00
Maria

HISTÓRIAS CNN || Durante o mês de agosto, todos os sábados, recuperamos e revisitamos a história de pessoas que já foram notícia na CNN Portugal

Março 2023. Três da manhã. Bairro do Zambujal, Alfragide. Maria está deitada e lá fora o ruído do vento a arrastar latas e embalagens através de um pequeno campo de futebol gradeado não a incomoda. Não prega olho. Sabe que tem de sair da casa onde vive com os netos esta semana, mas até agora não encontrou qualquer abrigo. “Não tenho vergonha, eu preciso de ajuda, não quero ir para a rua”, desabafou à CNN Portugal na altura. Tem 45 anos, e nos dois quartos adjacentes ao seu dormem os dois filhos, de 11 e 14 anos, e os dois netos que tem à sua guarda, de 2 e 4 anos. Ganha 900 euros líquidos a cozinhar num um lar, aguarda há anos por uma casa da Câmara Municipal, embora tenha uma pontuação de acesso à habitação social de 91 sobre 100. 

Nessa noite, Maria esgotou a última esperança. Na procura incessante por uma casa, surgiu-lhe uma oportunidade inesperada. “Apareceu uma”, lembra-se de celebrar antes de viajar até ao Cacém, com planos de se mudar já nesse fim de semana. Mas ao chegar ao local, hesitou perante um dilema. “A localização era fantástica para os meninos, o contrato era de dois anos, mas a casa estava inabitável”. Inquilinos anteriores tinham-na deixado sem canalização e eletricidade e com algumas paredes “a cair de podre”. “Era também demasiado pequena, a cozinha, por exemplo, não tinha espaço sequer para todos os meninos entrarem”. 

Fez as contas. Pediam-lhe uma renda de 750 euros por mês e, em cima disso, teria de gastar vinte mil euros para tornar a casa de novo habitável. “Era impossível, não tinha dinheiro para isso”. Voltou à estaca zero. Pediu um tempo ao seu atual senhorio para conseguir manter um teto enquanto encontrava uma casa para arrendar. “Ele disse-me que não”.

Às 3:20, um sobressalto invadiu toda a casa. Pelas portas, emergiam dois homens, dos quais Maria só conseguiu reconhecer um. O senhorio. “Ficou sem paciência", segundo lhe disse porque tinha "obrigações a cumprir com o banco". "Ele entrou dentro da casa, aos gritos e colocou as minhas coisas pela porta fora. Eu fiquei lá com medo, ele começou a falar muitas coisas comigo, eu não respondi” 

No dia seguinte, Maria mudou-se para casa do irmão, no Barreiro, e arranjou uma garagem em Lisboa, “na casa de um conhecido”, para guardar muito daquilo que tinha dentro da casa onde já morava há cinco anos. “Ficámos lá na casa do meu irmão, ele ajudou-me bastante, mas a casa deles não é grande e eles têm uma família, não havia espaço para nós”.

Sem teto, a angústia tomou conta dela mais uma vez e foi ampliada pelo risco de perder a guarda dos “meninos”. A neta mais nova chegou a ir morar com a família paterna, que já admitiu pedir a guarda da criança, e o filho mais novo foi temporariamente para a casa do pai. 

A viver numa situação temporária, Maria não dava descanso ao telemóvel. “Tentava tudo, estava desesperada e, como não tinha fiador, era tudo muito mais complicado”. Das vezes em que conseguia responder a anúncios, conta, era frequentemente interrompida quando explicava que tinha crianças à sua guarda ou quando denotavam o sotaque cabo-verdiano na sua voz. “Diziam-me muitas vezes que não damos lugar de casas a famílias com crianças, porque as crianças estragam a casa e, em algumas ocasiões, quando percebiam que sou cabo-verdiana diziam-me que ‘há muitos portugueses que estão na mesma situação e que precisam de casa e por isso nós temos que dar prioridade aos portugueses’”.

A maior ironia, conta, é que tudo isto se estava a passar um mês depois de ter sido aumentada em cerca de 300 euros. A empresa tomou essa decisão quando Maria foi confrontada com a realidade de que tinha de sair do apartamento onde vivia em Alfragide. O aumento fez com que o seu salário bruto se colocasse acima dos mil euros, descendo como consequência a sua pontuação para obter habitação social. “infelizmente”, reparou, “não é suficiente para conseguir arrendar uma casa onde todos possamos estar”.

Ora, arrendar uma casa em Lisboa estava a mostrar-se muito difícil com o salário que recebia e para ter direito a uma casa da Câmara Municipal tinha de continuar à espera. E Maria já esperava há mais de cinco anos. Acabou por ter de começar o processo todo de novo noutra Câmara Municipal, porque, ao fim de um mês de busca, conseguiu arrendar um T4 no Vale da Amoreira, Moita, levando ao arquivamento do processo para a obtenção de uma casa em Alfragide.

“A minha cunhada conseguiu contactar uma senhora que estava à procura de alguém para arrendar um apartamento no Vale da Amoreira e disse-lhe que eu estava aflita e perguntou-lhe se me podia ajudar”, refere, explicando que, nos dias seguintes, foi contactada para arrendar a casa, mesmo não tendo fiador, o que a levou a pedir ao seu filho mais velho, de 23 anos, para vir viver com ela. “Como não tinha fiador, foi o meu filho que ficou o segundo titular comigo, porque o meu filho faz um part-time de 4 horas de trabalho”. 

Precisava de pagar uma renda mensal de mil euros, mas, antes disso, tinha de dar de entrada, imediatamente, dois mil euros. Valor que Maria só conseguiu pagar depois de contrair um empréstimo com o banco. 

Ciclo de "dívida sobre dívida"

“Conseguimos entrar”, suspirou numa alegria contida, “mas é assim: o salário que recebo na conta é 900 euros, todos os meses o banco desconta-me duzentos e 700 euros, na verdade para o que é que dá?”, questiona. “Não fica nada, nada e não chega, tem de ser o meu filho a ajudar”. “Infelizmente, o meu filho não está a conseguir fazer a vida dele para me ajudar, porque não tenho mais ninguém que me ajude”. Mas, continua, “temos de desenrascar, porque é a única casa que eu consegui entrar sem fiador. E que me pediu só esses valores, porque as outras casas já pediam um valor muito grande para entrar”. 

É, explica, uma vida de “dívida sobre dívida”. Um ciclo “que pode ser quebrado com o acesso a uma casa da Câmara”. Mas esse objetivo que, diz, não desistir, parece-lhe cada vez mais quimérico. “Já entreguei os documentos na Junta de Freguesia do Vale da Amoreira, mas o andamento está parado de momento”.

Desde que saiu de Lisboa, Maria acorda todos os dias às cinco da manhã. “Tenho de tomar banho, preparar-me, preparar as crianças para trazer para Lisboa, para a creche”, onde mantêm a rotina no bairro onde viviam. Apanham o autocarro até à estação do Barreiro e depois apanham o barco para a outra margem. Do Cais do Sodré, partem para o metro até ao Colégio Militar e, nessa estação, esperam pelo autocarro - o 99, o 54 ou o 64 - para deixar as crianças na creche. Daí, “apanho o autocarro até ao trabalho”. 

O turno de Maria acaba às 21:00, já depois de o seu filho mais velho ter ido apanhar as crianças à creche. Apanha o autocarro em Alcântara, depois apanha o barco e apanha novamente o autocarro até ao Vale da Amoreira. Se tudo correr bem, chega a casa às 23:00, se falhar algum destes transportes só depois da meia-noite. “E levantar às cinco da manhã é muito sacrifício, o Vale da Amoreira é mesmo longe para nós, por isso eu não paro de lutar para conseguir uma casa em Lisboa”.

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