Maria está há anos à espera de habitação social. Foi aumentada para não perder a casa, mas perdeu. E a seguir teve de se separar do filho mais novo e da neta

7 abr 2023, 08:00

Numa semana, a mãe e avó perdeu o teto e teve de se separar do filho mais novo e de uma das netas depois de, durante anos, esperar por uma casa que nunca chegou

Por pequenos momentos, Maria descansa a nuca no armário da cozinha, abstraindo-se do ruído metálico de pratos e talheres a baterem uns nos outros, e vinca o olhar na janela que vai deixando um sol tímido perfurar o chão de azulejo. Os miúdos estão contentes, bebem leite, comem iogurtes e bolacha maria, mas ela não. Do outro lado da janela, há um campo de futebol, um pátio e um grande complexo de casas da Câmara Municipal da Amadora, às quais Maria se candidatou novamente no início deste ano, pela sexta vez, mas não obteve resposta. “É mesmo ali ao lado”, conta, “gostava muito que a Câmara me desse uma casa, por exemplo ali, eu não tenho vergonha, eu preciso de ajuda, não quero ir para a rua.”

Quando Maria, de 45 anos, falou com a CNN Portugal ainda tinha um teto para si e para para os dois filhos, de 11 e 14 anos, e os dois netos que tem à sua guarda, de 2 e 4 anos. Viviam todos numa casa espaçosa no Bairro do Zambujal, que a cabo-verdiana conseguia arrendar, embora com “muitas dificuldades”, com o salário que recebe como cozinheira num lar. Mas, no espaço de uma semana tudo mudou. Perdeu a casa, que foi vendida por 130 mil euros pelo proprietário, e três dias depois teve de se separar do filho mais novo e da neta de 2 anos.

Maria e o filho mais novo na cozinha da casa de onde tiveram de sair / DR

Tudo isto aconteceu, explica, depois de o seu salário ter sido aumentado em cerca de 300 euros. Uma decisão que o patrão tomou quando Maria lhe pediu, desesperada, ao ter sido informada pelos novos proprietários de que tinha de sair de casa até ao dia 31 de março. Este aumento, que colocou o seu rendimento mensal acima dos mil euros brutos, fez baixar a pontuação para conseguir obter habitação social e, “infelizmente, não é suficiente para conseguir arrendar uma casa onde todos possamos estar”.

À CNN, o patrão de Maria reagiu com grande “tristeza” à notícia de que a trabalhadora iria ficar sem casa. “Se a pessoa ganha pouco, tem de ir para a habitação social. A Maria pede habitação social, mas ninguém lhe dá e a partir do momento em que a empresa quer ajudar a dar o aumento, esta parte da habitação social já é retirada da hipótese”, lamenta.

Os dias foram passando com uma rapidez “assustadora” e as casas para arrendar que batessem certo com as poupanças e o seu rendimento tornaram-se uma miragem. É que quando não era o valor pedido, eram as suas origens que fechavam portas. “Tentei muito para encontrar casas, mas não estou a conseguir porque o meu salário é baixo, às vezes eu ligo e as pessoas perguntam de que país sou. Quando digo, muitas vezes não voltam a responder ou respondem só para dizer que já não há a casa.” “Sou cabo-verdiana, mas nunca devi a ninguém. Posso não ter nem carne nem peixe para comer, mas não devo a ninguém.”

Esta procura incessante por uma casa no mercado de arrendamento deu-se porque, mesmo no limite de não ter um abrigo para si e para os filhos e netos, que sustenta sozinha, a Câmara não deu resposta aos seus apelos. “Fiz o pedido todos os anos, mas não foi correspondido. Porque é que ninguém me ajuda, eu sou pobre, mas tenho dignidade e nunca recebi resposta.”

Antes de receber o aumento, Maria tinha uma pontuação para aceder à habitação social de 91 sobre 100, no entanto, confirmou fonte da autarquia da Amadora à CNN Portugal, não era suficiente. “Mantendo-se elegível ao programa”, Maria encontra-se em estado de “não posição”, porque “até à data não foram disponibilizados fogos de tipologia 4, ao abrigo do Regulamento Municipal de Acesso e de Atribuição de Habitação”.

No entanto, a mesma fonte garante que, em “situações excepcionais que extrapolam a prioridade estabelecida” - que não englobam, até ao momento, o caso de Maria - “pontualmente”, o município responde “através da disponibilização de fogos para o Regulamento Municipal de Acesso e de Atribuição de Habitação”.

“Quem tem parâmetros que não são uma desgraça, o acesso à casa vai ser quase impossível”

Entre todas as autarquias que dispõem de regulamentos para a atribuição de casas camarárias, há algo que as une. Quem se quer candidatar recebe, no final do processo, uma pontuação que vai habitualmente até aos 100 pontos, mas cuja escala pode diferir - em Lisboa, por exemplo a pontuação máxima é de 200.

Esta pontuação é atribuída, como explica João Carvalhosa, presidente do Comité Português de Coordenação da Habitação Social, em função dos rendimentos auferidos pelo candidato, de quantos anos está no município, quantos dependentes tem a seu cargo, ou se sofre de alguma doença grave. “Quem tem alguns parâmetros que não são uma desgraça, na realidade, o acesso à casa vai ser quase impossível”, confessa.

Dessa forma, a pontuação dita quem, havendo uma casa com a tipologia adequada à família que dela necessita, fica em primeiro lugar na atribuição de casas. O problema, explica João Carvalhosa, é que há “milhares de famílias a concorrer para um número muito limitado de casas” e, em Portugal, há um factor que nos diferencia do resto da Europa que é uma taxa de mobilidade que, em muitos anos, “nem ao 1% chega”.

Esta taxa de mobilidade corresponde ao número de novos fogos atribuídos por ano relativo ao património total do país e um dos fatores que leva essa taxa a ser tão baixa é o facto de “muitas famílias que já não mantêm os critérios anteriores que os levaram a ter acesso a habitação social não saírem destas casas”.

“Tantas casas fechadas”

Filipa, 47 anos, é consultora imobiliária e foi quem ajudou o proprietário da casa onde vivia Maria a encontrar um comprador. Foi nesse momento, conta, que tomou conhecimento da urgência da situação. Após ter fechado o negócio, “meteu mãos à obra” e usou a sua rede de contactos à procura de uma casa onde a Maria e a família pudessem morar. “Foi muito frustrante, por um lado tínhamos de acautelar o tamanho do imóvel para que pudesse abrigar os filhos e os netos e, por outro, encontrar uma forma de a renda ser a adequada, e foi impossível.”

Para além disso, Maria e Filipa começaram a encontrar-se nas ruas do bairro do Zambujal, onde em passeios durante a tarde iam observando se existia alguma casa camarária disponível. “Nenhuma”, chegaram à conclusão, “mas muitas vezes estas casas estavam fechadas e vazias”, conta Maria, e Filipa acrescenta uma questão: “ Como é possível mudar toda uma estrutura familiar quando há imóveis vazios?”

Filipa e Maria passeiam no bairro do Zambujal, na Amadora / DR

“Isso para mim é um mistério”, responde o presidente do Comité Português de Coordenação da Habitação Social ao ser questionado sobre a razão de existirem casas de habitação social que estão fechadas. “Isso é claramente uma opção de gestão política, mas que eu ignoro completamente os motivos e não há ninguém que até hoje tenha explicado porque é que, por exemplo em Lisboa, ficaram pelo menos 1.600 casas vazias de habitação social, nem eu conheço ninguém que entenda o porquê.”

À CNN Portugal, fonte do município da Amadora diz que este Executivo, “em princípio, não mantém habitações fechadas por não estarem prontas”. O que acontece, segundo a mesma fonte, é que quando se verifica a existência de uma habitação devoluta por causas como abandono, entrega, falecimento que tenha causado a saída dos residentes, “é realizada uma vistoria ao imóvel por técnicos dos serviços que realizam uma avaliação das condições em que o mesmo se encontra”. 

Depois dessa vistoria, é feito um relatório sobre as condições do edificado, onde se indicam as obras necessárias para a restituição das condições iniciais de habitabilidade da habitação, para que possa ser ocupada por outra família e, “em seguida, a casa é incluída numa empreitada de obras de manutenção e conservação do edificado, e atribuído a uma família que aguarda pela realização das obras e irá ocupá-la quando esta tiver as obras concluídas”.

No dia 31 de março, Maria saiu da casa onde estava há já vários anos com os filhos e com os netos. Sem teto, a neta mais nova foi morar com a família paterna, que vai pedir a guarda da criança, e o filho mais novo foi temporariamente para casa do pai. Valeu-lhe o irmão que lhe ofereceu espaço provisório na casa dele para a abrigar e aos menores. Antes de sair, Maria lembrou-se de como foi difícil explicar ao seu filho mais novo porque se tinham de separar da casa onde cresceram. “Ele disse-me: ‘mãe, se é para nós vivermos na rua, vamos fazer como?’, e eu disse-lhe ‘ó meu filho não fala isso, não vamos viver na rua'”.
 

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