Porque é que os médicos não acreditam que seja o adenovírus F41 a causar a hepatite aguda

30 abr 2022, 08:00
Segundo a OMS, as causas continuam a ser investigadas. (Ilustração Freepik)

A possibilidade foi avançada esta semana, mas os médicos não estão convencidos quanto ao papel do adenovírus F41 nos casos de hepatite aguda em crianças. A CNN Portugal falou com três especialistas em pediatria e todos deixaram ainda o cenário em aberto. Mas a causa infecciosa parece ser a mais provável.

Os casos de hepatite aguda atípica em crianças continuam a aumentar, assim como as tentativas para encontrar uma causa e, com isso, adotar medidas de proteção e tratamento. Vários cenários têm sido apontados e outros tantos descartados, mas aquele que parece ganhar mais força é o que está causar dúvidas aos médicos, que não hesitam em dizer que tudo aponta para uma origem infecciosa, mas que o adenovírus F41 não parece ser o principal responsável, pelo menos na generalidade dos casos.

Esta quinta-feira, o Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças (ECDC) revelou que “os exames laboratoriais excluíram as hepatites virais dos tipos A, B, C, D e E em todos os casos”. O organismo adianta que “uma grande proporção dos casos relatados no Reino Unido teve resultado positivo para adenovírus e o mesmo aconteceu com alguns casos de outros países”, no entanto, e por não ter sido detetado em todos os casos até agora relatados, “outras possíveis causas estão a ser investigadas ativamente”, mantendo o cenário em aberto sobre a origem da doença, que já afetou cerca de 200 crianças a nível mundial - tendo-se já alastrado para a Ásia e para o Canadá, segundo o The Guardian - e implicou 20 transplantes de fígado.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) disse que não encontrou uma relação entre os casos de hepatite aguda em crianças e a vacina contra a covid-19, ou o consumo de algum tipo de alimento ou medicamentos, que são duas causas mais ‘comuns’ de hepatite quando a origem não é vírica.

As causas permanecem sob investigação profunda. Estamos a analisar uma série de fatores subjacentes, infecciosos e não infecciosos, que podem estar a causar os casos” de hepatite cuja origem ainda é desconhecida, disse Philippa Easterbrook, especialista da OMS.

A hipótese do adenovírus ser a causa foi colocada em cima da mesa no início desta semana no Congresso de Microbiologia e Doenças Infeciosas, que decorreu em Lisboa. Meera Chand, que lidera o departamento de infecciologia da UK Health Security Agency, defendeu que uma estirpe do adenovírus denominada F41 seria a causa mais provável.

Porque é que o adenovírus pode não ser a causa principal da hepatite aguda nas crianças?

Os especialistas até agora entrevistados pela CNN Portugal têm-se mostrado reticentes em afirmar que a causa está no adenovírus, sobretudo pelo simples facto de este não ser um denominador comum em todas as hepatites agudas até agora detetadas em crianças.

O mais provável é ser [de origem] infecciosa, quando há surtos é provável que seja infeccioso”, começa por dizer Mariana Capela, pediatra no Hospital Lusíadas Porto. “Se é causada por vírus novo, uma mutação, ou um vírus que conhecemos, é cedo para nos atravessarmos com conclusões”, atira.

De acordo com a especialista, “não é incomum” haver situações de “adenovírus com impacto no fígado em crianças”, porém, ressalva que de forma “assim exuberante é incomum”.

O pediatra Hugo Rodrigues também partilha da opinião de que esta hepatite pode ser de “causa infecciosa”. O também docente na Escola Superior de Tecnologias da Saúde do Porto e na Escola de Ciências da Saúde da Universidade do Minho destaca que “ainda é cedo” para afirmar com todas as certezas, até porque nem as autoridades de saúde o conseguiram fazer, mas defende que “pelo padrão de distribuição da hepatite, parece ser uma causa infecciosa, pela forma como se está a propagar, a surgir em focos, em clusters”. 

Tal como o ECDC afirmou, uma grande proporção dos casos relatados no Reino Unido teve resultado positivo para adenovírus, mas Hugo Rodrigues destaca o facto de estar a surgir “em focos” e não de uma forma generalizada, como um denominador comum, como acontece, por exemplo, com o SARS-CoV-2, da covid-19.

O adenovírus foi isolado em mais casos, mas não em todos, e o mais provável é que estes casos tenham todos a mesma origem. Mas não sabemos se é apenas uma coincidência, porque este adenovírus é comum nesta altura do ano nas crianças”, diz.

Jorge Amil Dias, pediatra especialista na área de gastroenterologia e presidente do Colégio de Pediatria da Ordem dos Médicos, não hesita em dizer que "fazer considerações sobre etiologia desta hepatite num momento em que não temos dados suficientes é ser treinador de bancada", não se adiantando sobre a causa que considera ser a mais provável. Contudo, o especialista enaltece que “o que se sabe é que houve identificação de sinais e resultados analíticos que coincidem com infeção por um determinados adenovírus, mas não acontecem em todas [as crianças com hepatite aguda]”. “Se fosse por este vírus, todas as crianças teriam os mesmos resultados, como acontece noutras doenças infecciosas”, diz, adiantando que “se este adenovírus tem ou não algum papel de risco adicional, ainda não sabemos”.

À CNN Portugal, o virologista Celso Cunha já tinha também admitido “ceticismo” perante a possibilidade de ser um adenovírus a causar a hepatite grave de origem desconhecida.

Vejo com algum ceticismo que possa ser algo deste género. Primeiro, é preciso estabelecer concretamente se o responsável é mesmo um adenovírus. E, se for mesmo adenovírus, também já li que a causa das doenças poderá ser não só o vírus mas um sistema imunitário mais débil. E isso é possível”, disse o especialista em virologia.

Apesar de grande parte dos casos estarem concentrados no Reino Unido, a Comissão Europeia diz estar atenta e preocupada com esta doença e com uma possibilidade de escalada da mesma. Stella Kyriakides, comissária europeia da Saúde, admitiu que o surto de casos de hepatite aguda de origem desconhecida em crianças “é uma situação preocupante” e apelou a que todos os Estados-membros partilhem informação sobre a doença, para que Bruxelas possa “realmente monitorizar a situação de muito perto”.

No final desta semana, a Direção-Geral da Saúde criou uma task force de “acompanhamento e atualização” do surto mundial de hepatite aguda em crianças, não havendo, até à data de redação deste artigo, casos confirmados em Portugal.

Depois de os primeiros casos terem sido notificados no Reino Unido - tendo sido na Escócia dado o primeiro sinal e alerta -, Bélgica, Espanha, Dinamarca, França, Holanda, Irlanda, Israel, Itália e Roménia são alguns dos países da Europa em que também já há casos, mas foram também relatados nos Estados Unidos e Japão.

Relacionados

Saúde

Mais Saúde

Patrocinados