Memórias do bairro 6 de Maio na Amadora: havia sítios onde nem sequer entrava o sol

Agência Lusa , Rosa Cotter Paiva
21 mai 2023, 09:45
Vista do Bairro 6 de Maio (Lusa/ António Cotrim)

O bairro 6 de Maio, localizado até 2021 na Amadora, nasceu nos anos 70 do século XX, junto ao bairro das Fontainhas e ao Estrela de África, pelas mãos dos imigrantes das ex-colónias, a maior parte da comunidade cabo-verdiana, que chegou a Portugal em busca de melhores condições de vida e para trabalhar, sobretudo, na construção civil

Helena é a mais velha de 10 irmãos, cresceu no bairro 6 de Maio, na Amadora, e foi uma das últimas moradoras a abandonar o local, há dois anos, quando as últimas casas foram abaixo e muitas famílias ficaram afastadas.

Criada pela avó, Helena, de 46 anos, conta à Lusa nunca ter tido problemas por viver no bairro mal-afamado, localizado às portas de Lisboa, recordando que sempre esteve bem no seu ambiente. “Nunca tive dificuldades nenhumas, sempre tive a minha avó para nos apoiar e as dificuldades que tínhamos foram mais a nível da habitação, com infiltrações. Foi das piores coisas, mas foi-se arranjando. Havia pessoas que sentiam [dificuldade] por estar no bairro, eu sempre estive bem”, descreve.

Como grande diferença de viver no bairro e agora fora dele, Helena destaca que havia sentido de comunidade – “um mundo que se criou” por aqueles que vieram de Cabo Verde, como se vivessem à parte.

O bairro 6 de Maio, localizado até 2021 na Amadora, nasceu nos anos 70 do século XX, junto ao bairro das Fontainhas e ao Estrela de África, pelas mãos dos imigrantes das ex-colónias, a maior parte da comunidade cabo-verdiana, que chegou a Portugal em busca de melhores condições de vida e para trabalhar, sobretudo, na construção civil.

O 6 de Maio foi um dos 34 bairros do concelho da Amadora englobados no recenseamento do Programa Especial de Realojamento (PER), que a Câmara da Amadora assinou em 1995, dois anos depois de ser instituído nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, para a erradicação das casas precárias e realojamento dos moradores. “No bairro era Cabo Verde em Portugal, a cultura. Havia assim aquela coisa protetora à volta, de que nada acontece, ali toda a gente protege toda a gente, em comunidade. Quando a gente sai do bairro para a escola, para o emprego, aí é que é viver em Portugal”, exemplifica.

A irmã Deolinda (que há muitos anos faz trabalho social no bairro), acompanhada por Helena Vicente, uma das últimas moradoras a deixar o bairro 6 de Maio (Lusa/António Cotrim)

Helena vivia numa espécie de bolha e as irmãs dominicanas do Centro Social 6 de Maio fizeram muitos jovens como ela “conhecer o mundo lá fora”, levando-os de norte a sul de Portugal.

“A vida é melhor [agora]. Aqui, naquela altura, […] era mais pobre, mas era mais família, mais família”, diz, emocionada, enquanto agita a mão no bolso da bata do mesmo centro social, onde trabalha como auxiliar.

Saiu do bairro há cerca de dois anos e continua a viver no concelho da Amadora, mas no Casal São Brás, a pouco mais de quatro quilómetros. O realojamento não foi fácil de início e juntou-se a uma associação que a ajudou “a lutar pelo direito à habitação”. “Lá consegui, mas só consegui porque eles [autarquia] precisavam disto. Não sei para quê, mas precisavam. Senão acho que ainda estávamos aí montes de pessoas, ainda estávamos aí”, desabafa.

Helena está ciente de que a sua vida poderia ter sido diferente se não tivesse vivido desde sempre no bairro - poderia ter tido mais oportunidades, com outro tipo de conhecimentos, mas tem “muitas saudades” dos outros tempos. “Apesar de tudo, fui muito feliz. Eu sou a mais velha de 10 irmãos. E era uma casa [cheia], por acaso a nossa casa tinha espaço, era a família toda. Agora, há meses em que eu não vejo um irmão. Cada um para o seu lado. Isso para mim é uma das piores partes”, reconhece.

Com o desaparecimento do bairro, deu-se também “a separação da família”, com cada um a ir viver para uma zona distinta. “Já não há tempo para nada. Aqui pelo menos tinha a casa da avó. Encontrávamo-nos todos na casa da avó. É o que falta agora”, lamenta.

Bairro 6 de Maio: um bocadinho de Cabo Verde às portas de Lisboa

Um bairro compacto, labiríntico, com “sítios onde nem sequer entrava o sol”. Era assim o 6 de Maio, na Amadora, às portas de Lisboa, onde durante mais de 40 anos muitos imigrantes viveram em condições difíceis até ao realojamento.

Começou a erguer-se nos anos 70 do século XX, paredes meias com as Fontainhas, pelas mãos dos imigrantes das ex-colónias, na maioria da comunidade cabo-verdiana que chegava a Portugal em busca de melhores condições de vida e para trabalhar, sobretudo, na construção civil.

Juntamente com o Estrela de África, os três bairros foram uma casa que só deixou de ser provisória por os moradores terem sido integrados no Programa Especial de Realojamento (PER), que a Câmara da Amadora assinou em 1995, dois anos depois de o plano ser instituído pelo Governo. As casas precárias da zona foram totalmente erradicadas há cerca de dois anos e os terrenos estão agora vazios.

À Lusa, a irmã Deolinda Rodrigues, responsável pelo Centro Social 6 de Maio, explica que chegou ao bairro em 1986, onde as Irmãs Missionárias Dominicanas do Rosário já se encontravam há quase uma década a dar apoio à população. Começou por viver “numa barraca” nas Fontainhas. “Eu costumo dizer que quando as irmãs vieram para aqui não traziam nenhum projeto, era estar com a população, acolhê-la, ser um sinal de Igreja [Católica], de solidariedade. Foi esse o objetivo, mas chegaram ali e surgiram todas as necessidades do mundo”, reconhece.

A presidente da Câmara Municipal da Amadora, Carla Tavares (Lusa/António Cotrim)

Uma das primeiras medidas foi a constituição de comissões de moradores, conta, lembrando que iam tentando dar resposta aos problemas que surgiam. “Era a habitação, não havia água no bairro, não havia nada. As pessoas precisavam de tratar dos papéis [de legalização], de arranjar trabalho, enfim, tudo, tudo, tudo. As crianças que chegavam não tinham escola. As mulheres, na altura, não trabalhavam e, portanto, era preciso ocupá-las. Foram surgindo, em catadupa, todas as necessidades e fez-se tudo em conjunto com a população”, recorda.

Foram as necessidades da população que fizeram erguer um bairro “completamente denso”, nas palavras da irmã Deolinda, de tal modo que, já numa altura em que os residentes começaram a casar os filhos, era comum construir-se por cima das casas já existentes, “construções muito clandestinas, muito precárias - e havia sítios no bairro onde nem sequer entrava o sol”.

“Nós dificilmente podíamos abrir um guarda-chuva. Era, de facto, muito, muito compacto e sempre em aumento. Se não havia no chão, porque não havia, era para cima [que crescia]”, conta.

A alfabetização foi uma das “grandes e primeiríssimas atividades” das irmãs, concretizada graças a voluntários, alguns dos quais pessoas “muito conceituadas”, com métodos de tal forma atualizados para a altura que constituíam uma referência. Com as mulheres que chegaram ao bairro para acompanhar os maridos, as irmãs fizeram uma espécie de cooperativa para formação, “com cursos de corte e confeção, costura, economia doméstica”. As crianças tinham uma espécie de atividades de ocupação de tempos livres onde as ensinavam também a falar português, para depois poderem ir para a escola.

A vida da comunidade acabou, contudo, por complicar-se, primeiro com a crise dos anos 80 - as mulheres que até então não trabalhavam tiveram de arranjar emprego, deixando muitas vezes as crianças entregues à sua sorte - e mais tarde com a chegada da droga ao bairro. Tendo em conta novamente “a necessidade da comunidade”, as irmãs decidiram então fazer um protocolo com a Segurança Social e constituir uma instituição particular de solidariedade social, com valência de creche.

Chegou também o que a irmã Deolinda descreve como “uma crise de identidade nas crianças e jovens”, que começaram a agrupar-se em bandos, levando o bairro a ser “um verdadeiro gueto”, com uma estrada (Estrada Militar) a separar os que viviam em barracas daqueles que viviam nos prédios e “nem queriam olhar para o bairro clandestino”.

A droga que chegou ao 6 de Maio, “vinda de um bairro da Buraca e do Casal Ventoso”, levou a uma situação “incontrolável de tráfico e muito consumo”, recorda.

Apesar de o bairro ser “um autêntico labirinto”, onde só entrava quem conhecia, Deolinda Rodrigues é perentória ao afirmar que as irmãs nunca tiveram medo de ali estar, como costumavam perguntar-lhes as autoridades policiais. “As pessoas conheciam-nos, tirando nos últimos anos, em que vinha tanta gente para o tráfico e para o consumo. Essas não nos conheciam, mas pronto. Sabíamos que a população nos conhecia e, portanto, não tínhamos medo nenhum, nenhum. Corri o bairro todos os dias mil vezes”, lembra, sorridente.

As famílias mais estruturadas foram saindo do 6 de Maio com medo que os filhos entrassem no mundo da droga, assim como aqueles com “mais capacidade, até para comprar casa fora”. Os restantes foram ficando até aos realojamentos, na grande maioria em bairros camarários no concelho da Amadora, mas o trabalho das missionárias permanece ao lado do espaço agora descampado.

Vista do Bairro 6 de Maio (Lusa/ António Cotrim)

Além da creche e do pré-escolar no Centro Social 6 de Maio, prestam apoio social a quem as procura, sejam os antigos moradores dos bairros ou novos imigrantes. “Temos muito contacto com a população”, diz Deolinda Rodrigues, contando que, no início de maio, as irmãs alugaram três autocarros e foram a Fátima com antigos moradores.

O PER, criado pelo decreto-lei n.º 162, de 7 de maio de 1993, tinha como objetivo primordial acabar com as denominadas barracas e o realojamento das famílias nas áreas metropolitanas, envolvendo 28 municípios - 19 em Lisboa e nove no Porto -, onde foram identificadas mais de 48 mil famílias a viver em construções precárias.

Segundo a presidente da Câmara da Amadora, Carla Tavares, no antigo 6 de Maio vai existir uma via de distribuição de tráfego para facilitar o acesso à CRIL (Cintura Regional Interna de Lisboa) e de onde irá sair o novo Centro Social 6 de Maio, construído de raiz.

Nesta zona da Damaia, o objetivo do município “não é fazer qualquer tipo de construção”, segundo a presidente, Carla Tavares. Vai existir uma via de distribuição de tráfego para facilitar o acesso à CRIL (Cintura Regional Interna de Lisboa) e de onde irá sair o novo Centro Social 6 de Maio, construído de raiz.

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