Aldeamento turístico em Palmela, financiado pelo antigo BES, tem hoje 6 mil habitantes permanentes. Pela lei, a zona devia ser totalmente turística, mas o turismo é pouco. Muitos proprietários dizem que foram enganados
Numa época de grave crise na habitação, com tantos à procura da casa que não encontram, o Exclusivo desta semana da TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) descobriu uma história que é um verdadeiro paradoxo: inúmeros proprietários de casas vivem um verdadeiro "pesadelo" num gigante empreendimento construído ao estilo de um condomínio fechado em Palmela.
Os moradores do Palmela Village com quem a TVI falou sentem-se enganados: compraram imóveis com licenças para "habitação", com documentos oficiais que diziam isso mesmo, passados pela Câmara Municipal, mas nos últimos anos perceberam que vivem, afinal, numa "unidade de alojamento" destinada a turismo. A diferença de nomes parece pequena para quem não está habituado às leis de urbanismo, mas as consequências práticas são graves.
Centenas de licenças nulas
Ninguém pode ser proibido de viver num Aldeamento Turístico, a classificação oficial do Palmela Village, mas ter casa num aldeamento turístico tem várias desvantagens. Uma casa com licença turística não pode ser arrendada para habitação e por norma vale menos que uma casa com licença habitacional.
Além disso, os advogados dos proprietários defendem que ninguém poderia ter pedido crédito à habitação.
Por outro lado, um alojamento turístico tem de pagar elevadas taxas à entidade privada exploradora do aldeamento e perde certos benefícios fiscais como a isenção de impostos sobre as mais valias das habitações próprias e permanentes.
Mais grave: um parecer de duas professoras de Direito da Universidade de Coimbra (Fernanda Paula Oliveira e Dulce Lopes) conclui que as centenas de licenças de habitação passadas pela autarquia são afinal nulas pois contrariam a legislação; e o Turismo de Portugal prepara-se, depois de uma auditoria, para desclassificar o aldeamento turístico exatamente por falta de turismo.
Uma “mão cheia de nada”
No limite, segundo o parecer contratado pela entidade exploradora das partes turísticas (que pretende manter esse uso turístico), centenas de proprietários podem ser proibidos de vender as suas casas e, no cenário traçado pelas juristas da Universidade de Coimbra, até impedidos de as usar.
Por um erro que os proprietários dizem que não foi seu, além de prejudicados por viverem num alojamento turístico, estes podem ficar, de repente, de acordo com as juristas, "com uma 'mão cheia de nada': são proprietários de um bem que, afinal, não tem afetação urbanística e que, em bom rigor, não devem poder utilizar".
O presidente da Câmara Municipal de Palmela admite que se o Turismo de Portugal desclassificar o aldeamento existirá, de facto, um "vazio", mas recusa culpas do lado da autarquia.
Álvaro Amaro garante, porém, que o município não tem forma de resolver o problema sem que o promotor e as centenas de proprietários dos imóveis se entendam e apresentem uma solução, mas afirma que pela autarquia ninguém será despejado, apesar de admitir que a venda de qualquer uma das mais de mil casas dificilmente será possível, no futuro, se o aldeamento turístico for mesmo desclassificado pelo Estado.
A Associação de Proprietários do Palmela Village contesta a posição da autarquia de esperar por uma proposta do promotor e dos proprietários, garantindo que esta já podia e devia, legalmente, ter feito algo para resolver o problema, reconhecendo os erros do passado.
Centenas de lesados
A Associação de Proprietários garante que existem centenas de lesados que adquiriram a sua casa sem perceber aquilo que estavam a comprar.
Apesar de recusar o cenário mais negativo de expulsão das casas onde tantas pessoas vivem, a associação sublinha que apenas querem que as entidades públicas reconheçam aquilo que dizem ser evidente: "que o Palmela Village não seja o que nunca foi”, ou seja, “um aldeamento turístico".
Daquilo que conhece do desenvolvimento do Palmela Village, Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, concorda que este projeto sempre foi uma “mentira urbanística disfarçada de turística”, sublinhando as vantagens que os promotores deste tipo de projetos têm ao avançarem com projetos turísticos e não com uma habitual urbanização para construção de habitação, além das restrições previstas no Plano Diretor Municipal (PDM).
O Exclusivo falou com mais de uma dezena de proprietários que adquiriram casas em diferentes momentos, ao longo de quase duas décadas, que dizem que ninguém os informou sobre a natureza turística da casa que estavam a comprar, denunciando que foram levados ao "engano", naquilo que alguns dizem ser uma "burla" que se foi prolongando ao longo de anos, com vários culpados.
Hotel e centro de estágios no papel
O Aldeamento Turístico Palmela Village, um projeto com casas desenhadas pelo arquitecto Tomás Taveira, sempre foi um empreendimento turístico "um bocadinho megalómano", como admite o atual presidente da autarquia.
Nunca ficou completo nem teve o hotel ou o centro de estágios inicialmente previstos (e o campo de golfe fechou após anos a funcionar sem licença), mas tem hoje 1.150 casas construídas (ou unidades de alojamento, conforme a terminologia que se pretenda utilizar) onde vivem cerca de 6 mil habitantes permanentes.
Pela legislação, naquela zona, inicialmente destinada a terrenos rústicos, apenas se podem instalar projectos turísticos, apesar da maioria das pessoas aí viver, hoje, de facto, a tempo inteiro, como confirmam os presidentes do município e da freguesia que na última década teve uma verdadeira 'explosão' demográfica de residentes, em grande parte devido ao Palmela Village.
Depois das vendas iniciais de centenas de casas, há cerca de duas décadas, há poucos anos o promotor imobiliário teve de entregar outras centenas de imóveis ao Novo Banco por dívidas ao antigo BES, que os vendeu a um fundo norte-americano que por sua vez os revendeu a centenas de particulares.
Promotor garante que “a esmagadora maioria” não se queixa
Questionado pela TVI, o promotor garante que não enganou ninguém e que todos os compradores dos imóveis vendidos por esta sociedade foram informados das características turísticas do empreendimento.
“Muito pelo contrário, esse facto era abundantemente referido quer nos instrumentos de divulgação comercial, quer nos contratos-promessa, quer nas escrituras públicas de compra e venda. Nestas últimas é, aliás, feita referência expressa ao título constitutivo do aldeamento turístico”, assegura a Pelicano - Investimento Imobiliário, que afirma que a "esmagadora maioria” dos proprietários não se queixa e que os negócios passaram pelo crivo de advogados, cartórios notariais e entidades oficiais