“Ter uma casa devoluta não é crime”. O arrendamento compulsivo (e o exemplo do palheiro)

25 mar 2023, 12:00

O arrendamento coercivo está ou não previsto na lei, como defende António Costa? E o que já existe legitima o que o governo pretende para os imóveis devolutos? Exemplos para descobrir a resposta

Não estamos a falar da mesma coisa, afirma Rogério Alves. Aliás, ironiza, “se já está tudo na lei, não é preciso reformar nada - e está a política de habitação feita, sem problema, sem barulho, sem trombetas, sem powerpoints”.

É a reação do advogado e comentador da CNN Portugal às questões levantadas esta semana por António Costa. Defendendo a polémica proposta de forçar o arrendamento de imóveis devolutos, o primeiro-ministro afirmou quarta-feira no Parlamento que o arrendamento compulsivo já está na lei, pelo que não entende a controvérsia, que merece a crítica por exemplo do Presidente da República.

“Há muitos anos que o regime geral de urbanização e edificação prevê a posse administrativa para efeitos de reabilitação e até o arrendamento forçado”, afirmou o primeiro-ministro. E citou a Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo, de 2014, que prevê o arrendamento forçado para edifícios e frações autónomas alvo de reabilitação.

É verdade?

O exemplo do palheiro

“É verdade”, reconhece Rogério Alves, “o arrendamento coercivo já está previsto na lei em alguns casos”. Está por exemplo na lei dos solos e no regime jurídico de urbanização e edificação, “muitas vezes obras coercivas que são impostas pelos municípios”, exemplifica.

“Bom, mas se já está na lei significa o quê, que não era preciso fazer nada? Que bastava aplicar a lei? Claro que não”, reage. É que “todas essas leis estabelecem regimes de exceção ao uso do direito de propriedade”.

Rogério Alves explica que “o direito de propriedade por vezes tem de ser subordinado a interesses superiores, mas isso é exceção, não é a regra. São situações excecionais que a lei protege quando o uso de direito de propriedade é manifestamente abusivo, contrário ao fim comum, ao fim social”.

Vamos a dois exemplos:

“Imagine alguém que tem um pequeno palheiro num local onde vai ser construído o aeroporto (…) e diz ‘eu não quero tirar daqui o meu palheiro, façam o aeroporto noutro sítio’. (…) Essa pessoa eventualmente será objeto de uma expropriação, a dizer ‘desculpe, o senhor não pode, com essa propriedade aí, impedir a construção de um aeroporto’”, exemplifica Rogério Alves.

Outros exemplo: “Se um prédio está a ameaçar ruir e o proprietário ignora o problema e põe em risco os peões, os carros, os vizinhos, a segurança da circulação, o Estado deve intervir, dizendo ‘ou o senhor faz obras ou nós fazemos as obras, cobramos-lhe o dinheiro ou expropriamos-lhe o prédio – correto. Porque esse uso é manifestamente antissocial.”

A questão, diz o advogado, é que “isto são exceções à regra, à regra da fruição da propriedade”.

Terceiro exemplo: “Os carros da polícia, dos bombeiros, as ambulâncias quando estão em serviço de urgência podem circular a alta velocidade, andar fora de mão e passar sinais vermelhos, mas isso são situações excecionais”, pelo que a lei não permite que se pode fazê-lo seja para transportar feridos ou para tomar um café.”

Casas devolutas

Rogério Alves alerta que também “há muitos anos que se define o que é uma casa devoluta, mas nunca se tinha dito é que uma casa devoluta é uma coisa muito má”.

“Ter uma casa devoluta não é um crime. Uma pessoa pode planear utilizá-la daí a um ano, pode estar a guardá-la para um filho, pode estar a guardá-la para arrendamento, não é um crime”. Rogério Alves

“O abuso do direito de propriedade é [que é] sempre mau” e “em situação de abuso de direito de propriedade o Estado deve intervir”. Ora, a proposta atual do governo para o arrendamento coercivo de imóveis devolutos passa por “fingir que a solução dos problemas da habitação está numa imposição coerciva, como se estivéssemos a governar permanentemente em estado de emergência, [o que] é uma coisa anacrónica, absurda e, do meu ponto de vista, inconstitucional”.

Além disso, culmina, “independentemente de ser ou não conforme a Constituição, [a proposta] é errada do ponto de vista de uma economia livre, de mercado, com intervenção social mas sem este tipo de atitude absolutamente draconiana que levaria a uma espécie de socialização da propriedade, que é uma coisa totalmente indesejada e que não conduz ao desenvolvimento nem ao progresso, nem cria qualquer tipo de estabilidade dos direitos das pessoas, que são legitimamente adquiridos e que são reconhecidos pela Constituição.”

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