"Eu não quero ensinar o engenheiro Guterres a fazer discursos", mas "deve sempre salvaguardar-se de forma inequívoca que não são aceitáveis ações como aquelas de 7 de outubro" - e esse foi "o erro capital" dele

25 out 2023, 16:45
Guterres em Gaza (AP)

A reação de Israel é "completamente descabelada" mas também "é perfeitamente compreensível"; as declarações de Guterres "foram bastante infelizes" mas o que ele disse "é óbvio". Há uma polémica em curso e nem todos acham que Guterres esteve mal como nem todos acham que esteve bem - os especialistas dividem-se, ora defendem-no, ora nem por isso. O ponto de partida é o secretário-geral da ONU ter dito que é "importante reconhecer" que os ataques do Hamas "não aconteceram do nada", já que o povo palestiniano "foi sujeito a 56 anos de ocupação sufocante"

As declarações de António Guterres foram "bastante infelizes" e podem "ter tido um efeito que o próprio Guterres não esperava que viessem a ter", considera o major-general Isidro de Morais Pereira. "Se o engenheiro Guterres não tinha em mente justificar a barbárie dos atos absolutamente inaceitáveis que ocorreram no dia 7 de outubro, esta formulação de ter dito que este tipo de ações não acontecem do nada ou do vácuo, como ele disse, presta-se logo a interpretações dúbias", começa por dizer o major-general.

"Se não acontecem do vácuo e não acontecem do nada é porque algumas se podem justificar. Este foi o erro capital do discurso do engenheiro António Guterres. Seja qual for a formulação escolhida, acho que deve sempre salvaguardar-se de forma clara e inequívoca que não são aceitáveis ações como aquelas a que assistimos no dia 7 - que foram ações levadas a cabo sobre populações indefesas", acrescenta o major-general.

Terá sido por não ter medido o "efeito" que as palavras podiam ter que, na opinião do major-general, o secretário-geral da ONU "sentiu necessidade de vir explicar melhor aquilo que disse" e "solicitar ao Hamas que liberte os reféns". "Se calhar o engenheiro Guterres devia ter começado o discurso de ontem exatamente por aí, porque quem começou com esta onda de violência sem limites foi exatamente o Hamas. É evidente que isto tem um histórico, mas ir buscar a história para justificar determinadas coisas muitas vezes não é a melhor forma porque então também podemos dizer que os ataques às Torres Gémeas, onde morreram quase dois mil cidadãos americanos, também não aconteceu do nada."

Para o comentador da CNN Portugal, a mensagem do secretário-geral da ONU que tanta polémica gerou "não ficou bem compreendida". "Nada justifica os ataques bárbaros do dia 7 de outubro, nada. Se é necessário um gesto de boa vontade por parte de Israel, também deve haver um gesto de boa vontade por parte do Hamas. Por isso é que eu disse que se calhar uma das formas de começar o discurso… devia ter sido por aí. Eu não estou a querer ensinar o engenheiro Guterres a fazer discursos, muito longe de mim tal ideia. Agora, parece-me que devemos começar pelo princípio e não devemos ir à História, senão vamos aqui à origem do Medio Oriente, à Babilónia e aos sumérios...."

Guterres foi "insensível"? Ou foi "muito claro"?

Helena Ferro Gouveia também considera que a primeira declaração do secretário-geral da ONU "não foi intencional, no entanto foi uma declaração bastante infeliz na forma como foi feita". "No fundo, foi colocar um 'mas' na questão, que é algo que tem vindo a acontecer na discussão pública do massacre do 7 de outubro. Ninguém colocou 'mas' quando foi o 11 de Setembro e houve um movimento de solidariedade internacional, quando houve os ataques em França, o Charlie Hebdo, e qual é aqui a dificuldade em dizer 'nós somos todos israelitas perante um massacre que matou 1.460 pessoas'?. Nós assistimos à execução de civis, à queima de civis vivos, à queima de crianças, foram violações com um nível de brutalidade... Só isso é suficiente para traumatizar uma nação e, sendo a história de Israel perseguida há séculos, há um trauma geracional em Israel. O país vive um momento muito complexo internamente que não o impede de fazer críticas, sendo uma democracia, que não o impede de fazer críticas ao governo. António Guterres parece-me que foi insensível para com Israel, para com este trauma coletivo e foi insensível à História do país - e isso não aconteceu em ocasiões anteriores e com outros países".

Já quanto às declarações feitas estas quarta-feira por Guterres em reação à polémica (e nas quais o secretário-geral da ONU se diz "chocado" por terem "deturpado" as suas palavras, tendo sublinhado que de maneira nenhuma defendeu as ações do Hamas), Helena Ferro Gouveia considera que "o secretário-geral das Nações Unidas percebeu que, do ponto de vista diplomático, cometeu aquilo que foi um erro - foi, se quisermos, uma falta de bom senso". "Em diplomacia, o bom senso é fundamental. António Guterres percebeu que há certas palavras que não podem ser ditas neste momento. E há a necessidade de voltar a frisar que se condena os atentados terroristas, que Israel tem o direito à resposta ao abrigo do direito internacional."

Para Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional, as palavras de Guterres não foram bem interpretadas e acabaram por dar "origem a uma reação completamente descabelada de Israel". "Aquilo que Guterres disse, e disse muito claramente e até disse duas vezes, é que nada podia justificar o ataque e o rapto deliberado de civis. Disse também que as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas."

Francisco Pereira Coutinho considera que António Guterres foi muito claro naquilo que disse mas que é possível que, por uma questão de interpretação, nem todos tenham lido o mesmo nas declarações do secretário-geral da ONU. "Guterres é muito claro - diz com todas as letras que nada pode justificar ou desculpar os crimes internacionais cometidos pelo Hamas, mas diz também, e eu creio que isto aqui é muito relevante, é que uma resposta de Israel, e que é legítimo, não pode ser apenas uma resposta militar. E é aqui que ele diz que os ataques não ocorreram num vácuo, não surgiram do nada. Há um contexto que é um contexto de ocupação que tem de terminar. É evidente que esta ocupação não pode ser utilizada como uma justificação para os ataques, ele disse-o várias vezes, mas essa é que é a minha interpretação. No fundo, o que ele está a dizer é que é necessária uma solução política para o conflito. Ele no fundo limitou-se a constatar que isto ocorre numa situação que viola direitos internacionais e, obviamente, não justifica este tipo de intervenções - são crimes de internacionais que têm de ser punidos. Foi só isso. E dizer isto é óbvio", considera o especialista em Direito Internacional, reiterando que "estes ataques não são justificáveis ou desculpáveis".

Demissão de Guterres? "Não vai acontecer"

O major-general Isidro de Morais Pereira volta a sublinhar que António Guterres não foi explícito naquilo que disse e que, por isso, a reação de Israel "poderá ser uma reação também a quente de quem sofreu na pele aquilo que sofreu no dia 7". "E depois o próprio executivo israelita está a ser muito pressionado pela própria população para ter uma reação eficaz contra quem levou a cabo este tipo de ações. Por outro lado, está a ser pressionado também pela comunidade internacional para evitar ao máximo as baixas entre civis, para não atacar indiscriminadamente a faixa de Gaza, e estão aqui criadas as condições para que possa, por vezes, haver aqui uma reação um bocado a quente. Porque talvez este pedido a quente da demissão do próprio engenheiro Guterres possa ter sido um pedido pouco ponderado. Temos de ter calma e temos de voltar a ouvir os discursos, voltar a ler os discursos, se havia um discurso escrito e verificar se de facto havia intenção", diz, lembrando que "os Estados Unidos não apoiaram" este pedido de demissão.

Helena Ferro Gouveia considera que, "face ao momento que Israel vive, é uma reação emocional perfeitamente legitimada". Mas duvida que tal aconteça. Mas volta a realçar: "A reação de Israel é perfeitamente compreensível. Temos um país a viver o seu maior trauma depois do Holocausto e as palavras do secretário-geral da ONU feriram as famílias das vítimas, as famílias dos reféns e os israelitas como um todo". 

Para Pereira Coutinho, a demissão de Guterres "não faz qualquer sentido", principalmente porque o secretário-geral "tem insistido muito nas obrigações de Israel para com o direito internacional humanitário". "Ele começa por dizer que estes ataques não surgiram do nada mas a seguir diz imediatamente que esta ocupação de Israel não justifica em nenhuma circunstância aqueles ataques do Hamas. Agora temos de resolver a questão da ocupação e Guterres está a dizer que, se nós cumprirmos todos o direito internacional, a situação não voltará a acontecer. Guterres começou o discurso por dizer isso e isso foi interpretado por Israel como estando a justificar os ataques, como sendo uma forma de justificar os ataques. E claro que Guterres não precisava de falar da ocupação naquele momento concreto, podia apenas falar das obrigações de Israel para com o direito internacional humanitário no contexto deste conflito. Ele resolveu fazer uma abordagem mais alargada para resolver o conflito."

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