E ainda uma nota: "Nunca as forças de Kiev tentaram atingir um aglomerado populacional"
Nas últimas semanas, são poucas as comunicações diárias do Ministério de Defesa da Rússia que não contam a destruição de drones ucranianos em território de Moscovo. As regiões da capital, de Belgorod e Kursk - mais próximas da fronteira com a Ucrânia - são normalmente os alvos e raras vezes há informação de danos, mas Kiev já não consegue negar que levou além-fronteiras a ofensiva contra o invasor.
O próprio presidente ucraniano já tinha alertado, no final de julho, que os ataques em território russo eram "inevitáveis, naturais" e parte de um processo absolutamente justo. "Gradualmente, a guerra está a regressar ao território da Rússia - aos seus centros simbólicos e bases militares", assinalava Volodymyr Zelensky.
Mas, esta segunda-feira, o chefe do Estado ucraniano deu uma entrevista aos meios de comunicação locais e admitiu que foi avisado de que perderia o importante apoio dos aliados ocidentais se decidisse levar as hostilidades para dentro da Rússia. "Acredito que seria um grande risco, seríamos definitivamente deixados sozinhos", declarou. "Se eu enviasse as minhas tropas e decidisse ir para território russo, está claro que estes Estados [aliados] não estariam do meu lado", acrescentou Zelensky.
Mas há, afinal, contradição nestas posições do presidente ucraniano? Diana Soller, especialista em assuntos internacionais, acredita que não. "Diria que há quase um lamento nestas declarações mais recentes", diz à CNN Portugal. "No fundo, penso que são um apelo de Zelensky à comunidade internacional e aos seus aliados para que repensem este acordo", explica.
Antes de mais, falemos deste acordo, que "nunca ninguém viu", refere Diana Soller. Existe uma nuance crucial: "O compromisso de Zelensky é não usar o equipamento militar fornecido pelos aliados em território da Rússia. O acordo que nunca vimos, mas que Zelensky e os aliados têm referido, é esse", explica a especialista, que sublinha que os ataque da Ucrânia em solo russo têm sido realizados apenas com recurso a armamento ucraniano, que Kiev já tinha antes da guerra - e que, por isso, Zelensky não perdeu até agora o apoio internacional, nomeadamente o apoio dos países da NATO.
As forças ucranianas, por seu lado, aponta Diana Soller, também já perceberam que não conseguem impor-se e chegar à vitória sem continuarem a atacar em território russo: está perdido o efeito surpresa da contraofensiva e a Ucrânia precisa, por outro lado, de desestabilizar os russos do ponto de vista militar. "Não quer dizer que vai começar uma guerra aberta entre Rússia e Ucrânia, não me parece que exista essa intenção nem que a Ucrânia sequer tenha essa capacidade", explica a especialista. "Tem que ver com o efeito surpresa da destruição de alguns entrepostos militares da Rússia, nomeadamente entrepostos logísticos de onde a Rússia envia armamento e faz ataques para a Ucrânia. Por isso as cidades de Kursk e Belgorod têm sido muito atingidas, têm bases militares de onde partem mísseis que atingem o território ucraniano", continua a especialista.
Para Diana Soller, os ataques ucranianos em território de Moscovo têm, portanto, uma dupla vertente: "Por um lado, impedem a Rússia de continuar a fazer ataques, especialmente porque vem aí o inverno e a Rússia vai usar meios aéreos e mísseis para tentar destruir infraestruturas críticas da Ucrânia; por outro lado, para manter a surpresa e desorientar os russos", declara.
Drones para alarmar os russos
A especialista em assuntos internacionais lembra também os frequentes ataques com drones ucranianos a edifícios russos de escritórios durante a madrugada, por exemplo. "Do meu ponto de vista, estes são ataques diferentes, pensados para não criar vítimas mortais mas para alertar a população de que há uma guerra. No fundo, para espalhar a incerteza, para lembrar que as pessoas não estão seguras mesmo no coração da Rússia."
Com a opinião pública russa esmagadoramente a favor da invasão da Ucrânia, Kiev quer alarmar os russos e dar-lhes uma pequena amostra do que atravessam os ucranianos. "Ressalvo, a favor da Ucrânia, nunca as forças de Kiev terem tentado atingir um aglomerado populacional. Trata-se sobretudo de uma chamada de atenção", frisa Diana Soller.
E se as linhas vermelhas dos aliados em relação ao apoio à Ucrânia são os ataques em solo russo com armamento ocidental, será que algum dia a comunidade internacional vai mudar de posição, rasgar o acordo e permitir a Zelensky que atinja Moscovo com um míssil de longo alcance norte-americano, por exemplo? "Não me parece", afirma Diana Soller, que lembra os três objetivos fundamentais dos países ocidentais no apoio à Ucrânia desde o início da guerra: "Apoiar a Ucrânia no seu esforço de guerra, permitir que a Ucrânia se defenda e também que reconquiste o seu território. São objetivos defensivos".
A especialista explica que, para a comunidade internacional, o Kremlin deve perder a guerra mas não em território russo: Putin terá de ser derrotado ao ver serem-lhe negados os seus objetivos em território ucraniano, sendo igualmente vítima do consequente enfraquecimento do prestígio internacional da Rússia. As aspirações dos aliados passam também pela derrota da Rússia sem que haja uma escalada de violência e sem que a guerra se alastre a solo da NATO, "o que implica redobrado cuidado em relação à Ucrânia", assinala ainda Diana Soller. "O uso de equipamento militar ocidental na Rússia é uma linha vermelha porque o ocidente desconfia que, se essa linha vermelha for ultrapassada, a Rússia sentir-se-á legitimada a escalar a guerra para território da NATO", acrescenta.
Não há dúvidas de que se Kiev pudesse usar na Rússia mísseis de longo alcance, ou a artilharia pesada que tem recebido nos pacotes de apoio internacionais, a penetração no território de Moscovo seria maior e mais pesada para as forças de Putin. "As possibilidades de ataque ucraniano dentro de território russo são muito limitadas", aponta Diana Soller. "A lógica é que houvesse diferenças significativas", admite a especialista em assuntos internacionais. Mas a que custo? Provavelmente, um custo que a Ucrânia não quer - nem pode - pagar.