Os especialistas admitem que houve de facto "uma dualidade de critérios" na resposta perante a invasão russa da Ucrânia e os ataques do Hamas em Israel. Tudo porque os líderes ocidentais tiveram "medo" do Kremlin e do seu poderio nuclear
Nos últimos dias muito se tem falado do direito de legítima defesa de Israel contra os ataques do Hamas, que começaram a 7 de outubro, com vários líderes ocidentais a defenderem o direito de Telavive a defender-se e a responder com uma ofensiva na Faixa de Gaza. Mas o mesmo não aconteceu com a Ucrânia aquando da invasão russa, em fevereiro de 2022.
Na altura, os líderes ocidentais foram mais contidos nas palavras e condicionaram o fornecimento de armamento a Kiev às garantias de que o mesmo não seria utilizado em território russo. Para os especialistas militares e de direito internacional contactados pela CNN Portugal, esta "dualidade de critérios" só revela "o medo" e o "cinismo" do Ocidente perante o Kremlin.
"Muitos líderes ocidentais tiveram medo da reação da Rússia" caso a Ucrânia contra-atacasse em solo russo, observa o major-general Isidro de Morais Pereira. "Sendo um Estado poderoso, com armamento nuclear, não se sabia até que ponto o Kremlin era uma entidade racional e se iria utilizar armas nucleares" como resposta, acrescenta o especialista, salientando que "esse medo foi aproveitado pela Rússia", com constantes ameaças nucleares dirigidas ao Ocidente.
Por isso, os líderes ocidentais limitaram o fornecimento de armamento à Ucrânia com a condição de não ser usado em território russo, como explica Francisco Pereira Coutinho, especialista em Direito Internacional e Europeu: "O Ocidente, por não querer uma escalada do conflito, limitou o armamento que entregava à Ucrânia, exigindo que o mesmo fosse utilizado no território ucraniano ocupado. Ou seja, a Ucrânia podia defender-se, mas devia utilizar esse armamento contra as forças russas em território ocupado e não diretamente no território russo."
Se não respeitasse essa condição, a Ucrânia "deixaria de receber mais armas", lembra o especialista. Por essa razão, Kiev começou a fabricar armamento próprio, com capacidade de longo alcance, de modo a atingir solo russo - como aliás já aconteceu, nomeadamente em Krasnodar, na Crimeia (que a Rússia considera seu território) e na sede da frota do Mar Negro da Marinha russa em Sebastopol.
"Se a Rússia não utilizou armas nucleares até agora, não é agora que as vai utilizar"
À medida que o conflito se foi desenrolando, contudo, foi-se percebendo que as ameaças da Rússia não passavam de uma "narrativa" que tinha o objetivo de fazer com que o Ocidente deixasse de apoiar a Ucrânia. Por isso, mais recentemente, alguns líderes ocidentais, nomeadamente da Alemanha e dos Estados Unidos, começaram a adotar uma posição diferente, defendendo agora que "a Ucrânia tem todo o direito a atacar alvos russos em território russo, mesmo com armamento fornecido pelo Ocidente, o que altera substancialmente a sua posição inicial", salienta o major-general.
"Ainda há países que estão a fornecer material com essas limitações, mas creio que no futuro todas essas limitações vão acabar por cair por terra, porque não faz qualquer sentido que a Ucrânia seja impedida de destruir alvos militares na Rússia, numa atitude preventiva", argumenta Isidro de Morais Pereira.
Questionado sobre se essa mudança de postura por parte dos líderes ocidentais pode desencadear uma resposta dura por parte de Moscovo, o major-general considera "altamente improvável" que a Rússia possa responder com armamento nuclear.
"Se a Rússia não utilizou armas nucleares até agora, não é agora que as vai utilizar. Até porque recebeu avisos mais do que claros do seu aliado preferencial, a China, que disse que a utilização de armas nucleares era inaceitável. Nem sequer armas nucleares táticas. Foi um aviso clarinho", argumenta Isidro de Morais Pereira.
Ora, uma vez que o Hamas não é um Estado mas "uma organização terrorista" que não dispõe de meios nucleares, a posição do Ocidente foi diferente, tendo sido "imediatamente reconhecido a Israel o direito de retaliar". "A Rússia é uma potência nuclear, o Hamas é um grupo armado não estadual e, felizmente, não tem armas nucleares, [pois] provavelmente iria utilizá-las", assume Francisco Pereira Coutinho.
No caso da Ucrânia, os líderes ocidentais não tiveram a mesma reação imediata "não por não reconhecerem a Kiev o seu direito de legítima defesa", mas sim "por temerem uma escalada do conflito se as suas armas fossem utilizadas em solo russo", receando que a Rússia "pudesse eventualmente ameaçar Estados da NATO" como resposta e desencadear assim o alastramento do conflito, resume o especialista em Direito Internacional.