A peregrinação a Kiev e um ou dois assuntos mais

21 abr 2022, 10:27

A vantagem comunicacional da Ucrânia

Já muitos o disseram, e têm razão: a Ucrânia conseguiu, desde mesmo antes do conflito se iniciar em fevereiro, uma vantagem comunicacional esmagadora sobre a Rússia. A mensagem que transmite é incisiva, emotiva. Por vezes, chega a ser agressiva, exigente, dura. E, nisto, em todo este processo, a peça central é Volodimir Zelensky.

Nem tudo é comunicação, porém. Por muito boa que ela seja, e até pode fazer milagres, mas, mesmo assim, não chega. A Ucrânia tem duas “vantagens” (e uma delas, bem a dispensaria). Por um lado, está a ser objeto de uma agressão armada, grosseira pela violência usada e pelos objetivos com que o autor procurou justificá-la. Em segundo lugar, a União Europeia sentiu um perigo direto quando a guerra começou ali ao lado, um bafo quente de ameaça que julgava extinto desde o fim da Guerra Fria. Teve de reagir, por valores, mas também pelo mais básico dos sentimentos; garantir a sua segurança, perante um risco que considera vital. A NATO, por seu turno, viu reafirmado o seu papel, num quadro reativo e operacional que é aquele em que se sente mais à vontade e confortável (e onde, realmente, não tem concorrência no plano da experiência organizacional).

A comunicação exagera, exalta, apresenta-nos sob o melhor olhar possível aquilo que promove e, em simultâneo, procura desvalorizar o oponente. Nessa perspetiva, a comunicação também se aplica a um conflito, pois que, nos nossos dias, as suas ferramentas surgem perante nós, mais do que como propaganda, como expressão de ideias espontâneas, naturais e credíveis.

O Secretário-Geral Guterres não participou na peregrinação

Por causa do “must” que representa hoje ter no CV “ida a Kiev, feito!”, o Secretário-Geral António Guterres está a ser alvo de uma onda de críticas. Pois, ainda não foi a Kiev. E, estou em crer, também está a ser atacado porque nele se concentram os reparos quanto à incapacidade das Nações Unidas, como aparelho de poder, em fazer cessar a agressão russa. Este é um disparate jurídico e fáctico, mas não há nada que se possa fazer para o contrariar: entrou na vulgata discursiva, é vox populi.

António Guterres ir, ou não ir, a Kiev, ou ir apenas mais tarde, constitui-se em facto político relevante. Alguns “impõem-lhe” que se meta num avião e vá à capital da Ucrânia, os que primeiro lá estiveram marcaram os pontos que importava que fossem marcados; e antigos funcionários das Nações Unidas escrevem-lhe uma carta aberta. Noutras circunstâncias, tudo isto seria algo estranho. Hoje, não é.

A ausência de Kiev é tida, pelo menos nalguns casos (suponho que ninguém esteja à espera de ver o líder húngaro a aterrar em Kiev aos abraços), como distanciamento ou menor apoio à causa ucraniana, ou ambiguidade, relativamente à Rússia e a Vladimir Putin. Essa é mais uma vitória da máquina de comunicação ucraniana, da mesma forma que o é a excecional capacidade do seu líder em fazer-se ouvir, em entrevistas, de Parlamento em Parlamento ou através da sua intervenção diária. Hoje, aliás, se verá a empatia brutal que desencadeia, quando, lá pelas 17 horas, falar “no” nosso Parlamento.

Relativamente a António Guterres e a tantas outras situações, perdemos a memória, somos como a Dóri dos desenhos animados (Nemo, lembram-se, pelo menos, do peixe Nemo?).

Ainda agora aconteceu, e já se apagou. António Guterres, o tal que não vai a Kiev, foi virulentamente criticado em público por Serguei Lavrov, MNE russo, por ter ultrapassado (no entender da Rússia) todos os limites, quando comparado com todos os seus antecessores no cargo, ao agir de forma “parcial” em favor da Ucrânia. O mesmo Secretário-Geral fez uma intervenção muito dura perante o Conselho de Segurança a este respeito. A Organização está a fazer o que pode e o que não pode no domínio humanitário. E o Secretário-Geral das Nações Unidas enviou duas cartas (uma a Zelensky, outra a Putin) em que dá conta da sua vontade de se encontrar com cada um dos protagonistas. Ora, que interessa isso? António Guterres não foi a Kiev. Por isso, é mau.

A Rússia bem tenta, mas é tarde e Inês é morta

A Rússia tem tentado contrariar esta vaga de fundo em favor da Ucrânia. Veja-se como parece mais contemporizadora, como amaciou as declarações, como nunca mais se referiu com desprezo ou, pelo menos, com sobranceria (excessiva) à parte ucraniana; e até como tomou a iniciativa de apresentar uma proposta para cessar as hostilidades (que Zelensky desvalorizou e até disse não ter recebido).

Nada a fazer, não serve de nada.

Já ninguém vai a Moscovo, mas fazem-se filas para ir a Kiev, verdadeira peregrinação política e também, quero acreditar, de solidariedade.

A Rússia procura parecer menos mal. É difícil que o consiga, é mesmo impossível quando nos entram constantemente imagens de destruição e sofrimento pela casa dentro. No episódio (em curso) da rendição dos militares ucranianos e de outras nacionalidades que foram remetidos para aquele que parece ser o seu último reduto em Mariupol (na siderurgia de Azov), a primeira mensagem apresenta-se-nos como muito negativa, cruel: rendam-se ou serão todos mortos.

A declaração, depois repetida, causou escândalo, porque se tratou da Rússia. Porém, o difícil é perceber porquê.

Numa guerra, esperava-se o quê? O alvo é legítimo ou não? É.

São combatentes? São.

E se, de um lado, os combatentes recusarem render-se, e forem vencidos? Se não se tiverem rendido, ou são eliminados ou colocados numa situação em fiquem impossibilitados de combater (caso em que deverão ser protegidos).

Isto não é errado? Não, é esse o conceito de conflito armado, por muito que nos incomode sermos confrontados com isso.

É como diz o provérbio espanhol: quando começa uma guerra, o diabo aumenta o espaço no inferno. Só que o diabo não discrimina: no inferno cabem todos, e não só russos.

Se os combatentes que estão na siderurgia de Azov não se renderem e forem mortos em combate, isso não é um crime de guerra? Não.

Mas, a Rússia, sendo o agressor, só vai conseguir matá-los porque lançou um ataque armado contra a Ucrânia. Sim, é verdade.

Mas, então, é um crime. Não. Uma coisa é saber-se quem deverá ser responsabilizado por ter iniciado uma guerra (a Rússia, e é uma resposta sem retorno); outra, os direitos e deveres das partes que combatem, durante o conflito. Ora, esses direitos, e essas obrigações, são exatamente iguais para a Rússia e para a Ucrânia. Isto significa, claro, que se forem cometidas violações do direito internacional humanitário, ou direito dos conflitos, responde a parte a quem forem imputadas. E, se forem cometidos crimes internacionais (individuais) responde quem os tiver cometido.

Por isso, quando o Presidente ucraniano afirmou que não poderia haver mais negociações com a Rússia se ela ocupasse totalmente Mariupol, eliminando ou colocando fora de combate os combatentes que não depusessem as armas, não estava (não podia estar) a falar de uma infração às leis da guerra. Estava, sim, a fazer uma declaração política de apoio a forças que, como sabemos, já são célebres (e fiquemo-nos por aqui).

E quanto aos civis que se refugiam naquelas instalações? Têm que sair de lá, sendo a tal obrigados, se necessário, pelos combatentes ali refugiados (é aborrecido citar artigos nestas circunstâncias tão dramáticas, mas, vá ler-se o artigo 28 da Convenção IV de Genebra, de 1949, sobre a proteção dos civis num conflito armado). Ao mesmo tempo, é obrigação fundamental das forças russas garantirem a saída daqueles civis em segurança e com a devida proteção, assim como o seu direito de não quererem ir para território russo ou para território ucraniano sob controlo russo.

De qualquer modo, há hoje um facto militar muito importante, que é o de Putin (não sei jurar se pelas boas e humanitárias razões) ter decidido que não se vai eliminar toda aquela gente. Cerca-se, e pronto. Manifestamente, alguma coisa está a mudar.

Lá voltamos aos pódios do horror (como se fosse necessário)

As guerras, porém (voltando ao tema) estão cada vez mais carregadas de “comunicação”. Quando Volodimir Zelensky afirma, como agora, que “nesta guerra, a Rússia irá inscrever-se para sempre na história mundial como, talvez, o mais bárbaro e desumano exército no mundo”, é evidente que está a afirmar coisas impactantes (como agora se diz). Pior que as forças nazis durante a Segunda Guerra Mundial (incluindo na Ucrânia, onde morreram milhões)? Pior do que o que aconteceu na guerra Irão-Iraque, nos anos oitenta? Pior que o genocídio arménio? Talvez pior que o genocídio dos Hereros no que é hoje a Namíbia? Pior que o Ruanda, onde, em mais ou menos cem 100 dias foram mortos entre meio milhão a 800.000 tutsis?

Da Ucrânia para o Mundo

A partir da Ucrânia, projetam-se efeitos globais. A China, mesmo a China, teve de ir afinando a sua posição; a Alemanha, mudou sobremaneira; na Hungria, sabemos como a guerra ao lado foi o elefante no meio da sala que acabou por pisotear violentamente a oposição; em muitos países, as opiniões parecem fortemente empenhadas no apoio à causa ucraniana, mas, mais tarde ou mais cedo, podem virar-se de supetão contra os respetivos governos e pedir-lhes contas por aquilo que, de facto, são consequências que estes nunca quiseram, não provocaram e tentam estancar.

Zelensky, o que fez? Entrou com estrondo na campanha para as eleições francesas e deve ter reforçado a hipótese de vitória do Presidente-candidato Macron, com o apoio nada escondido que lhe deu. Disse na BFMTV, e nem outra coisa seria de esperar, que não podia intrometer-se no processo eleitoral de um país estrangeiro, e no instante seguinte entrou a pés juntos a pés juntos e de pitons levantados, ao afirmar que não podia deixar de dar testemunho das boas relações que mantém…com Macron, e aconselhando le Pen a mudar de opinião.

Não pode ser, dirão alguns céticos. Macron, o mesmo contra quem disparava, há uns dias, por ele recusar utilizar o termo genocídio? Entre Macron e le Pen, afinal, “mon coeur balance”? Obviamente, não.

O Presidente ucraniano não morrerá de amores pelo Presidente francês. Mas só pode “detestar” Marine le Pen, pois que a sua vitória representaria o colapso da união europeia da União Europeia relativamente ao conflito e à resposta coordenada que tem sido adotada.

Era simples: mesmo a querer ser o mais politicamente correta possível, como ainda ontem se viu no debate televisivo (condenação da agressão russa, aceitação de fornecimento de armas à Ucrânia, etc.), a candidata já disse e reafirmou que, se ganhar, acaba-se a estratégia de boicotar o gás e petróleo russos. Perante isto, pode haver hesitação?

Política, no meio de um conflito? Naturalmente, e ainda bem.

Bons exemplos

A Henkel é uma empresa alemã, dedicada, entre outras, à atividade de lavandaria e a produtos de limpeza. Anunciou, agora, que vai deixar de exercer a sua atividade comercial na Rússia, como consequência da invasão da Ucrânia. Mas o mais importante não é isso. O mais importante é que a Henkel decidiu manter os seus trabalhadores russos e continuar a pagar-lhes o salário. Desde que começou o conflito, é a primeira vez que vejo uma decisão do género. A Henkel dá, assim, uma aula prática de direitos humanos a quem queira aprender.

Outro bom exemplo são as declarações de há dias do Papa Francisco, que a seguir transcrevo. Fosse há uns tempos, e o que afirmou o Bispo de Roma com notável e corajosa frontalidade seria ouvido, discutido, comentado. Desta vez, a notícia foi dada e, depois, ala que se faz tarde.

É a vida. Agora, aquilo que incomoda é apagado da foto, contorna-se como se não existisse. Mas existe. Por isso, e para os devidos efeitos, aqui vai. Aviso, porém, que não acompanha a linha oficial:

“Os refugiados estão divididos. Primeira classe, segunda classe, cor da pele, [quer sejam] provenientes de um país desenvolvido [ou de] um que não é desenvolvido. Nós somos racistas, somos racistas. E isto é mau. (…) Há um quadro da fuga para o Egito que um pintor piemontês fez. Ele enviou-mo e eu fiz alguns santinhos: há José com o menino em fuga. Mas não é São José com a barba, não. É um sírio, de hoje, com a criança, a fugir da guerra de hoje. O rosto de angústia que estas pessoas têm, como Jesus forçado a fugir. E Jesus já passou por todas estas coisas, mas ele está lá. Na cruz estão os povos dos países da África em guerra, do Médio Oriente em guerra, da América Latina em guerra, da Ásia em guerra. Há alguns anos eu disse que estávamos a viver a terceira guerra mundial em pedaços. Mas ainda não aprendemos.”

"P.S. o Primeiro-Ministro português acabou de declarar que, se for convidado, irá a Kiev. E faz bem."

“A esperança sob assédio”, o Papa Francisco em conversa com Lorena Bianchetti, RAIUNO, 15 de abril de 2022, aqui.

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