“Isto não é salvar, isto é destruição”: campeão ucraniano de MMA conta os horrores da guerra

CNN , Matias Grez
11 mai 2022, 10:00

EXCLUSIVO CNN. Yaroslav Amosov, campeão de artes marciais mistas, tirou a família da Ucrânia e ficou a combater. Agora, conta o que viu. E viveu.

Enquanto caminha pelas ruas à volta da sua cidade natal de Irpin, que fica a cerca de 20 quilómetros a oeste da capital ucraniana, Kiev, o lutador de MMA [acrónimo de Mixed Martial Arts, artes marciais mistas] Yaroslav Amosov tem momentos fugazes em que parece um dia normal maio. O céu está limpo e tranquilo, e os pássaros podem ser ouvidos a cantar nas árvores acima. Amosov descreve a noite como "calma".

Mas para muitos ucranianos, estes momentos têm sido poucos e distantes entre si, desde que a Rússia começou a sua invasão a 24 de fevereiro. A cada poucos passos, Amosov é lembrado da destruição que a guerra de Vladimir Putin trouxe à sua terra natal. Em abril, as autoridades locais disseram que cerca de 50% das infraestruturas críticas de Irpin tinham sido destruídas.

"É difícil olhar para a sua cidade, que já foi cheia de felicidade, de vida", afirma Amosov, atual campeão mundial, em entrevista exclusiva na Ucrânia à CNN.

Yaroslav Amosov, descansando a sua cabeça nas mãos, com os seus colegas soldados ucranianos, enquanto se preparam para enfrentar as forças russas em Irpin, na Ucrânia.

"Isto sempre foi muito bonito, as pessoas estavam felizes, estavam felizes com a vida e tinham prazer nisto. Mas basta olhar agora para a cidade, que está em fogo, que está a ser destruída, é horrível de ver. Você não pode conduzir pela cidade, porque as estradas estão cobertas de árvores, em alguns lugares, são partes das casas. Destruição."

O ucraniano é um dos melhores lutadores da sua geração e, com 26 vitórias e zero derrotas, detém atualmente a maior sequência sem derrotas no ativo de todo o MMA. A 13 de maio, ele deveria estar a defender o título mundial no evento do Bellator, na Wembley Arena, em Londres.

Yaroslav Amosov posa na pesagem, antes de desafiar Dave Rickels em agosto de 2019.

Amosov estava a perseguir o recorde de invencibilidade de todos os tempos de Khabib Nurmagomedov, de 29-0, e estava previsto enfrentar Michael Page numa luta há muito antecipada, antes de a invasão da Ucrânia pela Rússia o forçar a desistir.

O jovem de 28 anos voltou para casa de um campo de treinos na Tailândia, quatro dias antes do início da guerra. Assim que as tropas russas começaram a avançar, Amosov diz que levou a sua mulher e o seu filho de seis meses para um local seguro nos arredores da Ucrânia, antes de se juntar à defesa territorial para ajudar civis em Irpin e nos arredores.

A dura realidade da guerra rapidamente se revelou.

"Nos primeiros dias, era muito difícil olhar, acostumar-se a todos estes acontecimentos, ver como as pessoas estão a fugir das suas casas", lembra Amosov. "Nem toda a gente podia sair, algumas pessoas tinham pais que não podiam deixar para trás, que eram muito idosos e não podiam mover-se adequadamente”.

"As pessoas estão a fugir... a pegar nos filhos, a pegar nos pais ao colo, e a fugir, a chorar, não sabem o que fazer. As pessoas estão a fugir correndo com os seus animais de estimação”.

"Eu vi esta situação quando um soldado estava a fugir segurando uma criança nos braços. Os pertences da criança estavam todos cobertos de sangue, mas o sangue não era seu, era do pai. A mãe estava a correr atrás. Não sei o que aconteceu no final com o pai da criança, mas foi muito difícil assistir.”

"A criança provavelmente tinha dois ou três anos, mas nem entendia o que estava a acontecer, eu não o ouvi chorar, ele provavelmente estava em algum estado choque irreal."

Tal era a natureza frenética daqueles primeiros dias da invasão, Amosov e os seus amigos - que ele diz nunca terem pegado em armas antes - receberam apenas um breve treino sobre como operar armas, uma vez que os combates já tinham haviam começado na cidade.

Amosov diz que um dos momentos que mais o marcou veio algumas semanas depois, quando grande parte da cidade foi libertada da ocupação russa. A sua equipa estava a percorrer Irpin para distribuir ajuda e encontrou civis que estavam escondidos em caves há quase um mês, com comida e água limitadas.

Amosov deveria ter defendido seu título em Londres na sexta-feira.

Ele lembra-se vividamente de um homem que encontraram a chorar depois de receber um pouco de pão. “Ver uma pessoa a chorar só porque está a segurar um pedaço de pão é muito doloroso de assistir", conta Amosov.

Na semana passada, o presidente da Câmara de Irpin, Oleksandr Markushin, disse em comunicado que os corpos de 290 civis foram recuperados na cidade desde a retirada das forças russas. Segundo Markushin, foram identificados 185 dos mortos, a maioria dos quais eram homens. A causa da morte foi "estilhaços e ferimentos de bala". Pelo menos cinco dos mortos sofreram lesões cerebrais e fome, de acordo com Markushin.

No total, mais de oito milhões de pessoas foram deslocadas internamente na Ucrânia, de acordo com o último relatório da Organização Internacional para as Migrações, agência das Nações Unidas.

“Tu queres defender este país”

Nos seus momentos mais sombrios, Amosov admite que não sabia se sobreviveria a cada dia para ir para a cama todas as noites. O que o manteve, diz ele, foi a "ajuda doida" e a gentileza dos cidadãos ucranianos, todos os dias.

Amosov e o seu grupo não tinham muitas vezes tempo para comer até a noite, mas eram regularmente recebidos na beira da estrada por civis que preparavam comida e bebidas quentes para os que ajudavam no esforço de guerra da Ucrânia. Mesmo aqueles que não tinham quase nada tentavam dar algo aos soldados, às vezes apenas uma barra de chocolate. "Tenho orgulho de termos pessoas assim e de vivermos num país maravilhoso como este", diz.

Embora Amosov tenha sobrevivido ao pior dos combates em Irpin, nem todos aqueles com quem lutou tiveram a mesma sorte. Depois de tirar alguns dias para visitar a sua mulher e o seu filho, Amosov diz ao voltar soube que um dos jovens que juntaram à defesa territorial com ele tinha morrido.

"É difícil ver quando uma mãe enterra o filho e quando a namorada, que planeou um futuro com ele, também está ali", lembra. "Esta é a nossa casa, as nossas famílias moram aqui e queremos que as coisas voltem a ser como eram. Vivíamos uma vida boa, estávamos contentes com tudo”.

"Quando olhas para todas estas pessoas, mulheres, crianças, quando vês aquelas mães que enterraram os filhos, quando vês o que está a acontecer com a tua cidade, quando a tua cidade está a pegar fogo, queres ajudar e defender esta cidade, este país."

No mês passado, um vídeo publicado por Amosov a recuperar o seu cinturão de campeão mundial do Bellator, na casa de sua mãe em Irpin, tornou-se viral. No vídeo, Amosov sobe uma escada na casa carregando um saco plástico, que abre para revelar o cinto.

Ele ri e diz que estava "a conquistar o cinturão pela segunda vez", e depois publicou uma fotografia sua a segurar o título no ar, enquanto estaca rodeado por um grupo de uniforme militar.

O campeão de MMA Yaroslav Amosov recuperou o cinturão dos escombros da sua casa em Irpin.

"Aquele momento foi bom, porque o cinturão estava são e salvo", diz. "Foi bom saber que a minha mãe se escondeu bem e que sobreviveu, e naquele dia os soldados russos estavam em retirada da nossa parte da Ucrânia, o ambiente era melhor”.

"Mas, ao mesmo tempo estou aqui agora, está calmo na nossa cidade e está tudo bem, mas sei o que está a acontecer noutras cidades e é difícil apenas rir com os amigos, é difícil estar com bom-humor, depois de estar em situações de bombardeamentos e tiroteios sem parar."

“Isto é destruição”

Um dia, na guerra, Amosov diz que os seus amigos o alertaram para um fã seu, um jovem que costumava praticar artes marciais mas que estava agora ferido no hospital. Amosov começou a enviar mensagens de texto para o rapaz e combinou ir visitá-lo. Quando chegou, Amosov ficou arrasado ao descobrir que esse jovem fã, de apenas 20 anos, tinha perdido as duas pernas em combate.

"Não entendo por que razão as pessoas não acreditam no que está a acontecer aqui, pensam que [a Rússia] tem uma 'operação especial' para salvar pessoas", diz, referindo-se à descrição eufemística usada por autoridades russas para descrever a invasão do país à Ucrânia.

"Mas olhas para o que está a acontecer com Mariupol, olhas para todas as outras cidades na Ucrânia que foram danificadas e onde morreram muitos civis que só queriam viver. Eles não queriam a guerra, estavam contentes com tudo”.

"Não entendo como alguém pode lutar tão cruelmente, sem qualquer regra. Tenho a impressão de que é quase como algo não-humano. Como podes agir assim? Quantas pessoas ficaram feridas? Quantas morreram? E as suas casas? Eles falam sobre salvar? Isto não é salvar, isto é destruição."

Assim que os combates em Irpin começaram a diminuir, Amosov diz que voltou imediatamente ao seu treino de artes marciais mistas.

Logan Storley foi o lutador contratado para substituir Amosov no combate de sexta-feira contra Page, e o ucraniano diz que está ansioso para voltar à jaula e vai ver quem vence.

"Agora [estou] a recuperar a minha forma... Quero voltar", diz. "Quero que todo o nosso país regresse à sua vida anterior e gostaria de defender o meu cinturão." Amosov admite que não sabe quando isso acontecerá, mas sabe como será a sua nação quando a guerra finalmente terminar:

"Para cada cidadão da Ucrânia, ela parecerá o melhor país do mundo, o mais bonito e o mais amado".

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