"Existe uma vontade de castigar o invasor quando quem está a ser julgado é este rapaz". Porque é que Ucrânia e Rússia querem julgar rapidamente os prisioneiros de guerra e que justiça podemos esperar

24 mai 2022, 09:00
Soldados ucranianos retirados de Azovstal são agora prisioneiros russos (AP Photo/Alexei Alexandrov)

O soldado russo Vadim Shishimarin foi condenado a prisão perpétua naquele que foi o primeiro julgamento de um crime de guerra neste conflito. Mas não será o único. A Ucrânia está a investigar 13 mil alegados crimes de guerra e já tem 48 russos suspeitos. Por seu lado, a Rússia quer fazer do julgamento dos combatentes de Azovstal um exemplo

A procuradora-geral da Ucrânia anunciou que mais 48 soldados russos serão julgados por alegados crimes de guerra na Ucrânia. Intervindo no Fórum Económico Mundial, esta segunda-feira, em Davos, Iryna Venediktova adiantou ainda que estão a ser investigados mais de 13 mil alegados crimes de guerra no país. O anúncio surge no mesmo dia em que o soldado russo Vadim Shishimarin foi condenado a prisão perpétua pela morte de um civil desarmado de 62 anos, Oleksandr Shelipov. Este terá sido o primeiro de uma série de julgamentos de crimes de guerra que os ucranianos querem realizar o mais rapidamente possível.

Venediktova adiantou que as autoridades ucranianas têm uma lista de cerca de 600 suspeitos de envolvimento em crimes de guerra. A Ucrânia tornou esta investigação uma prioridade e os promotores estão a arriscar as vidas para recolher as provas dos crimes de guerra, mesmo em áreas ainda ameaçadas por forças inimigas ou repletas de minas. "Todas as evidências indicam que a elite militar e política russa reverteu incondicionalmente às brutais táticas de guerra da violência. Civis e equipamentos civis – incluindo hospitais, instalações educacionais e edifícios residenciais – são alvos de uma forma generalizada e sistemática", disse a procuradora-geral.

As regras que regem os julgamentos de crimes de guerra estão estabelecidas na Convenção de Genebra – um conjunto de tratados e protocolos adicionais que estabelecem a conduta aceite em guerras e o dever de proteger os civis. Tanto a Rússia quanto a Ucrânia são signatárias de Genebra, e a Ucrânia também está vinculada à Convenção Europeia de Direitos do Homem. Julgar crimes de guerra tão rapidamente, enquanto o conflito ainda está a decorrer, é extremamente incomum e pode violar alguns dos pontos da convenção de Genebra, alertam os especialistas jurídicos.

"Havendo na lei penal ucraniana este crime, o país pode julgar este soldado russo", diz à CNN Portugal o advogado Rogério Alves, referindo-se ao caso de Shishimarin. "O que não é muito comum é que tal aconteça no decurso dos confrontos e de uma forma tão rápida - com um perfil daquilo que em Portugal chamamos, sem grande rigor, como um processo sumário - num julgamento onde o corpo de delito foi construído rapidamente, onde as provas são abundantes e onde a essas provas se juntou a própria confissão do réu", explicou, sublinhando que este "será seguramente um processo que ficará para a história como o primeiro que nesta guerra ocorre, estando a guerra em curso e que leva a uma condenação de um soldado do exército invasor aplicada pelos tribunais do país invadido".

Porquê a pressa de julgar?

A grande vantagem de realizar julgamentos tão cedo é que, uma vez que os acontecimentos são muito recentes, é mais fácil reunir provas e testemunhos. Sónia Sénica, especialista em relações internacionais, recorda que a procuradora ucraniana fez um trabalho muito intenso e com a colaboração de organizações internacionais como o Tribunal Penal Internacional e a Human Rights Watch na recolha de evidências para estes crimes.

Para o especialista em relações internacionais José Filipe Pinto, no entanto, a pressa de julgar prende-se sobretudo com o facto de a Ucrânia "ter consciência de que esta guerra ainda vai durar muito tempo e que não vamos ter a tradicional saída do conflito com um vencedor e um vencido".

"O maior exemplo que temos deste tipo de julgamentos é o de Nuremberga e, depois desse, o do Ruanda", recorda José Filipe Pinto à CNN Portugal. Em ambos os casos, o julgamento foi realizado por um tribunal internacional, após terminado o conflito. Foi a justiça do vencedor. "A Ucrânia teme que não haja um vencedor e por isso estes julgamentos são uma forma de pressão sobre a Rússia." 

"Fazer justiça", dar o exemplo e mandar uma mensagem à Rússia

Sónia Sénica e José Filipe Pinto consideram que a primeira mensagem que a Ucrânia quer passar com estes julgamentos é mostrar "à comunidade internacional mas sobretudo à Rússia" que, "apesar dos ataques, o seus sistema judicial está a funcionar". "É uma afirmação de soberania", diz Sénica. "E é também uma mensagem clara de que, mesmo num clima emotivo e em que dificilmente haverá objetividade, é possível recolher provas e fazer justiça", acrescenta José Filipe Pinto.

Mas este julgamento tem outros significados. A Ucrânia fez da justiça rápida uma prioridade, em parte como forma de avisar as tropas russas que ainda ocupam partes do país de que podem enfrentar justiça por quaisquer crimes que cometerem. É improvável, no entanto, que esta sentença leve a uma mudança imediata nas táticas das forças invasoras, mas, ao menos, dará aos familiares das vítimas, como a viúva de Oleksandr Shelipov, Kateryna Shelipova, um sentimento de que justiça foi feita.

Sónia Sénica considera que este primeiro julgamento por crimes de guerra "é muito importante para que se possa começar a sanar feridas" nesta guerra. "Fazer justiça às vitimas - é quase como tratar de uma ferida em termos nacionais e identitários", diz à CNN Portugal.

O julgamento dá ainda "uma mensagem muito clara daquilo que pretende ser uma responsabilização pelos crimes perpetrados na Ucrânia, sobretudo a questão dos crimes de guerra, custe o que custar, demore o tempo que demorar, há o intuito de responsabilizar os perpetradores dos vários crimes ocorridos em solo ucraniano". De que os crimes não ficarão impunes.

Serão estes julgamentos imparciais?

Não há nada na lei internacional que proíba julgamentos de crimes de guerra durante as hostilidades. No entanto, alguns comentadores internacionais expressaram a sua preocupação com a prática. Num dos seus comentários sobre as Convenções de Genebra, o Comité Internacional da Cruz Vermelha advertiu expressamente contra o julgamento de crimes de guerra no decurso da mesma, sublinhando que, nesta situação, é difícil para um acusado “preparar sua defesa durante as hostilidades”, acrescentando: “Parece ser uma boa regra, portanto, que o julgamento de uma pessoa acusada de crimes de guerra não ocorra num momento em que lhe seja impossível apresentar provas que possam diminuir a sua responsabilidade ou refutá-la.”

"O Direito existe para que as pessoas não sejam juízes em causa própria, o que a Ucrânia está a fazer é ser juiz em causa própria", afirma José Filipe Pinto, recordando que, ao contrário do que acontece nos países democráticas ocidentais ("que podem ser democracias imperfeitas mas são democracias"), "nos países híbridos, como é o caso da Ucrânia, e nos países autocráticos ou totalitários, como a Rússia, muitas vezes não há independência de poderes e o poder judicial é cooptado pelo poder político".

Alguns especialistas levantaram ainda a questão de os julgamentos na Ucrânia estarem a decorrer num tribunal civil e não num tribunal militar, como é aconselhado pela Convenção de Genebra, defendendo que os juízes dos tribunais militares terão a formação necessária para entender as nuances da guerra de uma forma que os tribunais civis, em geral, não terão. Outras questões levantadas têm a ver com a obtenção de confissões (que, neste caso, parece ter sido legítima) e com a garantia de uma defesa adequada (será que os advogados ucranianos, pressionados pela opinião pública, irão fazer o seu melhor?).

Sónia Sénica é de opinião que, "mesmo sabendo que existe uma motivação política, não há motivo para não acreditarmos que este julgamento foi feito de acordo com o quadro legal ucraniano". Quer no que toca à recolha de provas, quer no que toca aos aspectos processuais. 

Uma pena demasiado pesada?

"Dado que o crime cometido é um crime contra a paz, a segurança, a humanidade e a ordem jurídica internacional... o tribunal não vê a possibilidade de impor uma pena de prisão [mais curta]", disse o juiz Serhiy Agafonov sobre a pena de prisão de perpétua que decretou para Shishimarin, de 21 anos, que alegou que seguiu uma ordem de um superior e declarou-se arrependido de ter matado o civil desarmado Oleksandr Shelipov, de 62 anos, com um tiro na cabeça. O seu advogado, o ucraniano Viktor Ovsyannikov, já anunciou que irá interpor um recurso contra o veredicto.

A Convenção de Genebra diz que os prisioneiros não podem ser julgados apenas pelo facto de participarem na guerra, deve-lhes ser sempre imputado um crime específico que terá de ser provado. Seria a prisão perpétua a pena mais adequada a este crime? Essa dúvida é levantada por Duarte Nuno Vieira, professor faculdade de medicina de Coimbra e especialista forense, que, em declarações à CNN Portugal, considera ter havido aqui um exagero e uma tentativa de fazer deste caso um exemplo. E lembra que "estamos perante um soldado que obviamente cometeu um crime mas que só tem 21 anos e não recebeu nenhum tipo de formação sobre as leis da guerra, como deveria ter recebido".

"Tenho imenso receio que o facto de ter sido aplicada a pena máxima, numa situação em que nada aconselharia a que assim fosse, leve a uma escalada do ponto de vista jurídico. Ficamos com a sensação que a pena de morte só não foi aplicada porque foi banida da Ucrânia quando o país entrou no Conselho Europeu", diz.

O jurista Paulo Saragoça da Matta também considera "um bocadinho excessivo o uso da pena máxima". "Nós queremos acreditar que um sistema judiciário é tão perfeito quanto possível, mas temos de admitir que os juízes são humanos - têm formação e experiência mas não ficam isentos de estados de alma", diz este especialista à CNN Portugal. "Existe uma vontade de castigar o invasor quando quem está a ser julgado é este rapaz", alerta, sublinhando também o tal "perigo de escalada jurídica".

Afinal, se este crime é punido com a pena máxima, será de esperar que outros crimes tenham um desenlace diferente? Sendo o primeiro, este julgamento irá certamente impor uma fasquia.

A previsível retaliação 

Esta segunda-feira, surgiram também informações de que a Rússia está a preparar o julgamento dos mais de dois mil militares ucranianos que se renderam na semana passada em Azovstal e que tal julgamento irá acontecer em Mariupol. Uma comissão de investigação russa encontra-se atualmente a interrogar os prisioneiros para obter provas que demonstrem o seu estatuto de terroristas.

Caso o Batalhão Azov seja considerado uma organização terrorista, os seus membros podem enfrentar penas de entre dez a 20 anos de prisão. Mas na Rússia já vários vozes pediram penas de prisão perpétua e até há quem defenda a pena de morte.

O vice-presidente do Comité de Defesa da Duma Russa (câmara baixa do Parlamento), Yuri Shvitkin, considerou, em declarações à agência oficial TASS, que é “absolutamente correto” julgar os defensores do regimento Azov, considerados “criminosos de guerra” e “neonazis” por Moscovo.

José Filipe Pinto chama a atenção para a diferença entre julgar este homens como prisioneiros de guerra (protegidos pela Convenção de Genebra) ou criminosos de guerra (ficando fora desta proteção). "Sabemos que a Rússia é suficientemente capaz de forjar provas para condenar estes militares", diz, lembrando que a condenação exemplar do Batalhão Azov, que alinha com muitos dos ideais neo-nazis, serviria como uma materialização do objetivo de "desnazificação da Ucrânia", anunciado por Putin.

"A guerra chegou a um impasse. E neste momento os dois países estão a tentar pressionar o outro lado para chegar a um acordo que lhe seja o mais favorável possível. Estes julgamentos são formas de pressão", explica este analista. "Não havendo uma vitória militar, cada país irá reclamar a vitória que a diplomacia lhe permitir."

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