Os astros alinharam-se para criar as condições perfeitas para um ataque russo na região. O major-general encarregue da defesa do sul da Ucrânia deu uma entrevista onde contou o que correu mal no início da invasão
A guerra ainda não tinha começado, mas os sinais estavam todos lá. A Rússia concentrava dezenas de milhares de soldados em todas as direções. Carros de combate e aviões não paravam de chegar à fronteira. O próprio líder dos serviços secretos militares ucranianos, Kyrilo Budanov, alertou no final de 2021 que a região sul seria uma das principais áreas para a invasão, o que motivou a criação de um plano de defesa que previa a existência de 8.000 soldados apenas nesta região. Mas, na realidade, para fazer frente aos 20 mil soldados russos que entraram pela Crimeia na madrugada de 24 de fevereiro de 2022 estavam apenas 1.500 soldados ucranianos pouco armados.
“O plano de defesa previa a existência de quatro brigadas. Eu só tinha uma. O agrupamento sul operava com uma base rotativa, o que significa que o pessoal chegava e depois era substituído por outros. No momento da invasão, tinha cerca de 1.500 tropas prontas para o combate”, admite o major-general Andriy Sokolov, antigo comandante do grupo sul, numa inédita entrevista ao Pravda ucraniano.
O que se seguiu foi descrito por fontes militares ucranianas como um autêntico caos, que levou à perda de território onde hoje milhares de soldados perdem a vida para recuperar. Com 12 vezes mais soldados que o exército ucraniano, as tropas russas ocuparam cidades como Melitopol e Kherson com facilidade e cercaram Mariupol, num autêntico Blitzkrieg. A diferença entre as duas forças era gigantesca.
E não era apenas na diferença entre o número de soldados disponíveis para o combate. O cenário era particularmente difícil pela falta de apoio da artilharia. Ao invés de reagir aos sinais enviados pelas forças armadas russas, as duas unidades que deveriam prestar apoio aos 1.500 ucranianos que defendiam a frente sul encontravam-se, no dia da invasão, a treinar nos arredores de Kiev.
O mesmo se passou com um batalhão de engenheiros, especializados na construção e destruição de pontes e fortificações, que treinavam na província de Khmelnytskyi, perto de Kiev. Como a ligação entre a península ocupada da Crimeia e o sul da Ucrânia é feita através de 12 pontes, caberia a estes militares especializados a destruição destas estruturas para que o avanço russo pudesse ser atrasado o mais possível, algo que nunca veio a acontecer.
“As pontes deviam ser demolidas antes da chegada do inimigo, não quando este já estiver a avançar. Isto deve ser feito antes da aproximação do inimigo e do potencial bombardeamento das pontes. Dessa forma, há mais hipóteses de obter 100% de sucesso na missão”, explica.
As poucas exceções que existiram vieram com grande sacrifício pessoal de soldados ucranianos. Na localidade de Henichesk, um jovem soldado detonou-se a si próprio a meio de uma ponte para tentar travar o avanço russo. Algumas pontes chegaram a ser armadilhadas em 2014, quando a Rússia ocupou ilegalmente a Crimeia, mas acabaram por ser desimpedidas devido à falta de pessoal.
Mas a guerra fez-se com aquilo que Sokolv tinha à disposição e não com o que gostaria de ter. Eram quatro da manhã e o general que estava no centro de comando com o chefe da defesa aérea observou uma descolagem maçiça de aeronaves russas na Crimeia. Quando passaram dos 30 aviões de combate, deixou de os contar. Quando os viu a dirigir-se para o mar Negro e o mar de Azov sabia que a invasão tinha começado.
Os mísseis começaram a cair com precisão em quase todos os locais que os ucranianos tinham fortificado para tentar travar um ataque russo. Eram três localizações específicas junto à fronteira. Numa dessas localizações, surge o relato do comandante local, que se confessou espantado pela artilharia russa “estar a falhar” e a acertar nos terrenos centenas de metros à sua frente. A verdade é que os russos estavam a destruir os campos minados ucranianos com explosivos e a vaga seguinte acertou em cheios nas suas posições. Ainda assim, chegou a pensar que os bombardeamentos fossem durar “um ou dois dias” antes dos avanços de infantaria começarem.
“Percebi que a guerra tinha começado quando testemunhei um ataque maçiço de mísseis contra as nossas unidades. No entanto, ainda havia a possibilidade de o inimigo não iniciar a fase do combate terrestre imediatamente. Em vez disso, poderiam ter lançado ataques aéreos, durante um ou dois dias”, recorda.
A verdade é que, segundo o major-general, os russos tinham perfeito conhecimento das posições ucranianas na região – bem como de todos os habitantes daquela área. Devido aos perigos que as minas representam para os civis, o exército ucraniano tinha vários alertas espalhados para que as pessoas evitassem estes locais. Além destes campos de minas junto à fronteira, pouco mais existia que pudesse ser apelidado de “linha defensiva”. Ao contrário da região do Donbass, que era legalmente considerada uma zona ativa de combates desde 2014, Zaporizhzhia e Kherson não tinham qualquer estatuto legal, o que obrigaria a Ucrânia a expropriar os donos das terras para construir defesas.
“Nenhuma decisão foi tomada. Por isso é que houve tantas dificuldades”, lamenta Sokolov.
O caos estava instalado. E, para complicar ainda mais a situação, os russos tiveram sucesso em interferir com os sistemas de comunicação ucranianos, o que obrigou o exército a recorrer a sistemas de mensagens como o WhatsApp e o Telegram para organizar a defesa da região.
Mas o pior foi quando a chefia militar ucraniana começou a compreender a dimensão da força ofensiva que se preparava para enfrentar. Eram cerca de 25 grupos de batalhões táticos, com aproximadamente 20 mil soldados e um grande número de carros de combate e veículos blindados. Além disso, estes soldados contavam com um forte apoio aéreo e naval, bem como com uma artilharia russa sem qualquer restrição de consumo de munições.
"Era muito. [O ataque] Incluiu a artilharia e todo o equipamento que os russos possuem. Além disso, a componente aérea contava com cerca de 140 aeronaves, 60 helicópteros e ainda tinham os meios navais da Frota do Mar Negro”, explica.
Esta superioridade aérea foi um fator que fez toda a diferença e impediu a defesa eficaz do território. Sokolov diz que deu ordem para que a brigada que comandava, a 59.ª, defendesse a cidade de Kherson e não deixasse o inimigo atravessar a ponte de Antonovsky e a ponte da barragem de Nova Kakhovka. No entanto, esta decisão deixou o flanco de Melitopol completamente livre para os avanços russos.
Decidiu então enviar um pequeno contingente composto por cerca de 150 soldados para a cidade. A estes juntaram-se membros de um regimento da Guarda Nacional, algumas unidades de patrulha e uma brigada de defesa territorial. Ao início, estes homens foram capazes de travar o avanço russo, atingindo as tropas de Moscovo com a artilharia que tinham ao seu dispor. No entanto, a ameaça do cerco da cidade de Melitopol fez com que, em última instância, soldados ucranianos decidissem retirar da localidade. O major-general deu conta de um cenário de quase anarquia na cidade.
“As autoridades locais em Melitopol estavam desordenadas e parecia que qualquer um poderia ter assumido o controlo, dada a ausência de resistência organizada ou de defesa. Posteriormente, o inimigo entrou em Melitopol, levando à retirada das unidades da Guarda Nacional da cidade”, conta Sokolov.
O cenário é particularmente frustrante para o oficial ucraniano, que revela que o comando militar ucraniano tinha testado estes cenários como possíveis, nos chamados “jogos de guerra”. A criação de uma ponte terrestre entre o Donbass e a Crimeia parece ter sido sempre um imperativo para Moscovo e Kiev sabia disso. A verdade é que a Ucrânia não tinha soldados suficientes na região para combater a ameaça.
"Não havia poder suficiente. Começámos uma guerra em estado de paz. Obviamente que o número de soldados não era o suficiente para uma operação de estabilização [da frente de batalha]. Era suposto ter duas brigadas: uma na direção de Kherson e outra em Melitopol. E um batalhão, como unidade avançada diretamente na fronteira. Mas nem isso tinha”, reforça.
A situação acabou por resultar nas fronteiras que agora conhecemos do conflito na Ucrânia. Embora Kiev tenha conseguido reconquistar a cidade de Kherson e o território na margem esquerda do Dnipro, as províncias de Zaporizhzhia e de Kherson estão a provar-se difíceis de reconquistar, após a Rússia construir um dos maiores sistemas de trincheiras da história moderna. E com o fracasso, surgem os dedos prontos para apontar culpas. “A sociedade e o tempo farão a sua avaliação, tenho a certeza”, afirma o general.