Cinco dias que mudaram a guerra na Ucrânia (análise)

CNN , Análise de Stephen Collinson
29 abr 2022, 17:00
Guterres e Zelensky dão uma conferência de imprensa em Kiev. Sergei Supinsky/AFP via Getty Images

Esta foi a semana em que a guerra na Ucrânia fez uma verdadeira transição e passou de uma luta sangrenta de um país em resposta ao violento ataque da Rússia para uma potencialmente longa luta de poderes.

Todos os dias trouxeram uma sensação de eventos e decisões graves e históricos que não só decidirão quem vence a maior guerra terrestre entre dois países na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, mas que também moldarão o rumo do restante Século XXI.

O presidente Joe Biden declarou na quinta-feira que dois meses de combates na guerra desencadeada pela invasão não provocada do presidente russo Vladimir Putin deixaram o mundo num ponto crítico.

“Ao longo da nossa história, aprendemos que, quando os ditadores não pagam o preço pelas suas agressões, acabam por causar mais caos e por se envolver em mais agressões”, disse Biden. “Eles continuam a avançar. E os custos, as ameaças aos Estados Unidos e ao mundo, continuam a aumentar. Não podemos deixar que isso aconteça.”

A Secretária dos Negócios Estrangeiros britânica, Liz Truss, foi ainda mais direta: “A geopolítica está de volta.”

Em apenas alguns dias, uma nova perceção surgiu em Washington, na Europa, em Kiev e em Moscovo. A guerra está agora em transição para uma luta longa e amarga, que provavelmente custará mais milhares de vidas e milhares de milhões de dólares. A estratégia dos EUA é agora inequívoca e pública - enfraquecer a Rússia para diminuir a ameaça global. Há novos sinais da vontade do Kremlin de erradicar a cultura ucraniana na pulverização das cidades do leste e do sul do país. E Putin desencadeou uma nova frente - a guerra energética - ao cortar o fornecimento de gás natural à Bulgária e à Polónia, numa manobra que a União Europeia se apressou a chamar “chantagem”.

À medida que surgiam estes objetivos contraditórios, a retórica nuclear voltou a aquecer, com a Rússia sempre ansiosa por alertar sobre o poder implícito de seu vasto arsenal e Washington a tentar evitar um ciclo de escalada que poderia levar a um confronto direto entre as duas superpotências.

Enquanto isso, continua a carnificina na Ucrânia. Os ataques violentos e os cercos a zonas civis antecederam o novo ataque da Rússia a sul e a leste - batalhas que podem decidir se a Ucrânia sobreviverá como país. No entanto, esta semana também trouxe os primeiros sinais de que os russos acusados de atrocidades podem ser responsabilizados.

Mas a realidade alarmante de que não existe um caminho diplomático credível para acabar com a guerra foi revelada quando mísseis russos atingiram Kiev na quinta-feira, enquanto o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, ainda estava na cidade numa missão aparentemente em vão, que começou no início da semana com uma conversa tensa com Putin.

Uma guerra em expansão

O Secretário de Estado Antony Blinken e o Secretário de Defesa Lloyd Austin falam com os jornalistas a 25 de abril de 2022, na Polónia.

Uma visita a Kiev por parte do Secretário de Defesa Lloyd Austin e do Secretário de Estado Antony Blinken, sob um apagão de notícias no domingo, preparou o terreno para uma semana em que o Ocidente se envolveu ainda mais naquela que parece ser uma guerra por procuração com a Rússia.

  • “Queremos ver a Rússia enfraquecida ao ponto de não conseguir fazer o tipo de coisas que fez ao invadir a Ucrânia”, disse Austin na Polónia, depois de regressar da Ucrânia.
  • Blinken previu um futuro que deve ter antagonizado o homem forte do Kremlin, dizendo que a Ucrânia independente e soberana “existiria durante muito mais tempo do que Vladimir Putin”.
  • Os EUA apoiaram a nova estratégica de clareza reunindo os principais ministros da defesa na Alemanha e comprometendo-se com reuniões mensais para avaliar as necessidades do governo de Kiev.
  • Estas medidas alimentaram a sensação crescente de que a guerra na Ucrânia não acabará tão cedo. O Secretário-Geral da NATO, Jens Stoltenberg, disse na quinta-feira que a guerra pode “arrastar-se e durar meses e anos”.
  • Liz Truss, entretanto, pediu um aumento da ajuda militar dos EUA e do Ocidente como medida de proteção contra a expansão russa - apelando ao armamento dos países dos Balcãs Ocidentais e dos estados que não pertencem à NATO, a Geórgia e a Moldova.
  • A Rússia respondeu à estratégia ocidental mais rígida tomando as suas próprias medidas para ampliar a sua pegada no conflito, cortando as exportações de gás natural para a Polonia e para a Bulgária, depois de estes países se terem recusado a aderir ao esquema de evasão às sanções que implicava pagar as contas em rublos. Um aumento desta guerra energética pode levar a Europa à recessão.
  • As consequências globais cataclísmicas da guerra foram entretanto realçadas quando o Banco Mundial alertou para o pior choque no mercado de matérias-primas dos últimos 50 anos. A Rússia e a Ucrânia são os principais produtores de carvão, petróleo, gás natural e óleos de cozinha, e os orçamentos de milhões de pessoas em todo o mundo serão afetados. O provável fracasso das colheitas deste verão na Ucrânia - uma importante fonte de trigo e milho para o mundo - pode levar a uma nova espiral inflacionária nos preços dos alimentos e desencadear uma maior insegurança alimentar. Nos EUA, os preços mais altos podem ter um grande impacto nas eleições intercalares em novembro.
  • Biden terminou uma semana que remodelou o mundo apresentando um pedido extraordinário de 33 mil milhões de dólares ao Congresso para armas, apoio económico e ajuda humanitária à Ucrânia, alertando: “O preço desta luta não é barato.”

O pedido do presidente sublinhou a forma como a guerra na Ucrânia não é apenas uma posição que define a sua administração, mas que os acontecimentos dos últimos dias causarão reações em cadeia políticas, económicas e geopolíticas que serão impossíveis de prever e difíceis de controlar.

O bramir do sabre nuclear

A ampliação estratégica da guerra foi acompanhada por uma nova rodada de alarmante retórica nuclear de Moscovo.

Embora as conversas casuais sobre o uso das armas mais perigosas do mundo possam ser usadas para assustar as populações ocidentais, as mesmas não deixam de destacar que a possibilidade de um confronto desastroso entre as duas nações nucleares mais poderosas do mundo - os Estados Unidos e a Rússia - existirá sempre enquanto a guerra se arrastar.

Alguns especialistas dos EUA descartam as palavras duras da Rússia como um sinal de que Putin está frustrado por não conseguir cumprir os seus objetivos estratégicos na Ucrânia. Mas também serve de lembrete aos líderes ocidentais que a injeção em grande escala de armas na Ucrânia pode ir contra os limites difíceis de definir de Putin e causar uma escalada perigosa. Persistem ainda os receios de que, se for encurralado, Putin possa usar uma das armas nucleares táticas de menor impacto no campo de batalha na Ucrânia.

  • Enquanto os EUA definiam a sua abordagem mais severa à guerra - enfraquecendo o poder militar russo - o Ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergey Lavrov, recorreu mais uma vez à familiar tática russa de falar sobre a guerra nuclear, alertando: “O perigo é real e não devemos subestimá-lo.”
  • Do lado dos EUA, o responsável pelo Estado-Maior, o General Mark Milley, disse à CNN que a Rússia não devia usar uma retórica tão inflamada. Ele disse que era “completamente irresponsável” para qualquer líder de uma potência nuclear começar a “bramir o sabre nuclear”.
  • Mas Putin não estava a ouvir. Depois de várias advertências sombrias sobre o poder do arsenal nuclear da Rússia, no início da guerra, o presidente russo voltou a atacar. Ele disse que haveria uma resposta “rápida como um relâmpago” por parte da Rússia, se outros países interferissem na Ucrânia. “Temos todas as ferramentas para isso - aquelas das quais ninguém se pode gabar. E não nos vamos gabar delas. Vamos usá-las, se necessário. E quero que todos saibam isso”, disse ele a legisladores em São Petersburgo.
  • Isso fez com que Biden alertasse para o perigo de tal retórica. “Ninguém devia fazer comentários ociosos sobre o uso de armas nucleares ou sobre a possibilidade da necessidade de usá-las”, disse Biden na Casa Branca, na quinta-feira.
  • Este tipo de trocas amargas de palavras entre a Rússia e os Estados Unidos levaram as relações entre os dois países “às profundezas”, disse à CNN, na quinta-feira, o embaixador dos EUA na Rússia, John Sullivan.

A carnificina agrava-se

Mariupol

O esforço russo para controlar o leste e o sul da Ucrânia e para estrangular o país cortando o seu acesso ao Mar Negro - uma nova fase da estratégia de guerra de Moscovo, depois de não conseguir capturar Kiev - está a intensificar-se. Mas uma coisa não mudou. Os civis ucranianos carregam o peso do horror numa expressão da determinação e crueldade de Putin. Aparentemente, os soldados russos também estão a pagar um preço exorbitante pela obsessão do seu líder com a Ucrânia.

  • Os militares ucranianos disseram na quinta-feira que as forças russas estão a lançar fogo intenso em várias frentes. Procuram entrar na zona de Izium, no leste da Ucrânia, e também avançar pelas regiões de Donetsk e Luhansk.
  • Noutro indicador de que a guerra se pode arrastar durante muito mais tempo, um representante da defesa dos EUA disse que as forças russas estavam apenas a fazer progressos “lentos e graduais” na região do Donbass, em parte devido a problemas de logística e sustentação.
  • Mas os ataques da Rússia a civis ainda estão a provocar uma terrível carnificina. Ivan Fedorov, presidente da câmara da cidade de Melitopol, alertou esta semana que as forças de Putin queriam “matar toda a nação ucraniana”.
  • Enquanto isso, uma equipa da CNN visitou a cidade de Kharkiv, no nordeste da Ucrânia, que está sob constante bombardeamento russo, e encontrou uma devastação inexplicável.
  • Uma nova e surpreendente avaliação do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados prevê que 8,3 milhões de refugiados fujam do país. Na segunda-feira, 5,2 milhões já tinham partido.
  • O descaso insensível de Putin pela vida humana não se limita aos ucranianos que são alvo das suas armas. O Secretário da Defesa britânico, Ben Wallace, disse na segunda-feira que cerca de 15 000 militares russos foram mortos na Ucrânia, em pouco mais de dois meses.
  • Numa nota mais esperançosa, houve sinais esta semana de que os russos podem enfrentar alguma responsabilidade pelos aparentes crimes de guerra. Gravações em vídeo de drones, autenticadas e geolocalizadas pela CNN, mostram veículos russos nas ruas perto de corpos de civis mortos em Bucha, nos arredores de Kiev. A prova pode ajudar a refutar as declarações russas que dizem que as suas tropas não executaram ucranianos a sangue-frio.
  • E a Procuradora-Geral da Ucrânia, Iryna Venediktova, disse na quinta-feira que foram identificados 10 soldados russos alegadamente envolvidos na tortura de civis na cidade.

A diplomacia arrefece

O Secretário-Geral da ONU, António Guterres, durante a visita a Bucha, nos arredores de Kiev, a 28 de abril de 2022.

A grande esperança diplomática da semana era a viagem de Guterres, da ONU, a Moscovo e a Kiev. Mas nenhum dos lados parece ver razões para falar agora. Em parte, isso deve-se à compreensível desconfiança da Ucrânia em relação a Putin, após a invasão não provocada. Mas também há uma sensação na Ucrânia e nas capitais ocidentais de que a indiferença de Putin ao custo sangrento da sua guerra é um sinal claro de que ele está empenhado em continuar até ter motivos razoáveis para declarar algum tipo de vitória que ainda não está à vista.

  • Guterres disse à CNN que Putin concordou, em princípio, em permitir que a ONU e a Cruz Vermelha Internacional ajudassem a retirar cidadãos da fábrica Azovstal em Mariupol, o último reduto da resistência ucraniana na cidade.
  • Mas a viagem de Guterres a Kiev, na quinta-feira, que terminou quando mísseis russos atingiram a cidade, foi um sinal claro da atual atitude da Rússia em relação à diplomacia - e do seu desprezo pelo Estado de Direito internacional, que as Nações Unidas foram criadas para preservar.

A realidade desanimadora no final de uma semana decisiva para o Ocidente e para a Rússia, é que a paz na Ucrânia pode estar mais longe do que alguma vez esteve desde a invasão. E embora o Ocidente possa enviar uma enxurrada de armas, munições e ajuda para o país, não pode pôr fim a uma guerra que enviará ondas de choque políticas, militares e económicas dolorosas e perigosas para o mundo inteiro, nos próximos meses. Só Putin pode fazer isso.

Como Guterres disse na sua entrevista com Anderson Cooper da CNN, “a guerra não vai acabar com reuniões. A guerra vai acabar quando a Federação Russa decidir acabá-la e quando houver um acordo político sério. Podemos ter todas as reuniões que quisermos, mas não é isso que vai acabar com a guerra.”

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