A Ucrânia está a entrar numa "fase mais difícil" da guerra (e pode ser obrigada a fazer escolhas igualmente "difíceis")

CNN Portugal , BCE
2 jan, 18:00
Bombeiros ucranianos tentam apagar focos de incêndio após bombardeamento russo em Kiev (AP)

A Ucrânia tem sido alvo de "um número absolutamente anormal" de ataques russos nos últimos dias. A noite de Ano Nove ficou marcada um ataque com recurso a "um número recorde" de drones kamizakes. Os especialistas militares não têm dúvidas: vêm aí tempos difíceis para as forças ucranianas (e só os EUA poderão ajudar a evitar que Zelensky seja obrigado a fazer "escolhas difíceis")

A guerra na Ucrânia está a entrar numa fase “mais difícil”, sobretudo para as forças ucranianas que, sem a garantia de um novo apoio dos EUA, se vê obrigada a “fazer malabarismo” com os recursos de que dispõe perante forças russas movidas pelo “desejo de vingança”.

Com a aproximação do “duro inverno ucraniano”, o conflito passou do plano tático para o plano operacional, com a Rússia a intensificar os ataques dirigidos contra a rede energética ucraniana, explicam os analistas militares ouvidos pela CNN Portugal.

Prova disso mesmo é o “número absolutamente anormal de ataques” lançados nos últimos dias pelas forças russas contra as infraestruturas ucranianas, salienta o major-general Isidro de Morais Pereira. A noite de Ano Novo ficou marcada por um “ataque recorde” dos russos contra as cidades ucranianas de Lviv e Odessa, com recurso a 90 drones kamikazes. Mas não só: naquela noite, as forças russas empenharam "praticamente toda a panóplia de mísseis" e armas de que dispõem para "conseguir iludir e vencer as defesas antiaéreas" da Ucrânia, "saturando-as".

Moscovo gastou 1,2 mil milhões de dólares só nos ataques dessa noite, deixando claro que se tratava de uma retaliação ao bombardeamento de Belgorod, no dia anterior, que provocou pelo menos 25 mortos e mais de uma centena de feridos.

E os ataques russos não ficaram por aqui. Esta terça-feira está a ser marcada também por ataques de larga escala contra as cidades ucranianas de Kiev e Kharkiv, que fizeram pelo menos quatro mortos e dezenas de feridos. O governador de Kharkiv fala num “ataque maciço de mísseis” contra aquela que é a segunda maior cidade ucraniana.

No total, de acordo com o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, desde 31 de dezembro, as forças russas “lançaram 170 drones e dezenas de mísseis” contra a Ucrânia. Só na última madrugada, os sistemas de defesa antiaérea abateram dez mísseis Khinzal, 59 mísseis cruzeiro e três mísseis Kalibr lançados pelas forças russas.

"O que é incrível nisto é que ao fim de quase dois anos de guerra, não só a Ucrânia continua a assistir ao ataque de uma força muito superior, em termos numéricos e também em termos qualitativos, em quase tudo, mas ainda tem a capacidade de responder, e de responder ao mesmo nível, ou seja, de responder atacando alvos no território russo", sublinha à CNN Portugal o historiador António José Telo.

O "impasse" no terreno (e no apoio dos EUA)

Mas não se perspetiva que a Ucrânia "tenha capacidade para lançar uma ofensiva de larga escala nos próximos", adianta o major-general Agostinho Costa. Isto porque as forças ucranianas adotaram uma postura defensiva agora que Zelensky “tem consciência que o apoio ocidental está a reduzir”, nomeadamente com a aprovação do novo pacote de ajuda norte-americana, no valor de 61 mil milhões de dólares, condicionada ao aval dos republicanos, que têm feito finca-pé com Joe Biden para ceder no reforço da segurança ao longo da fronteira a sul com o México em troca do reforço da ajuda aos ucranianos.

Para os analistas militares, é claro que a Rússia está "a aproveitar" este hiato da ajuda ocidental à Ucrânia, que está a colocar em causa o fornecimento de munições para Kiev, para lançar ataques sem precedentes contra o território. De acordo com o major-general Agostinho Costa, as tropas russas continuam a "insistir numa postura ofensiva a leste e a sul da Ucrânia", de modo a tentar conquistar território recuperado pelos ucranianos no verão passado.

Em síntese, “a centralidade do conflito passou para o nível operacional, porque no nível tático as coisas estão num impasse”, resume Agostinho Costa, referindo-se aos confrontos na linha da frente, nomeadamente em Kupiansk, Avdiivka e Kherson. Ainda assim, acrescenta, "no plano tático, a iniciativa é russa, embora sem ganhos significativos no terreno” (exceto em Robotyne, onde Agostinho Costa perspetiva que “os russos vão recuperar algum terreno”).

"Se o apoio dos EUA demorar muito, a Ucrânia vai ser obrigada a fazer escolhas difíceis"

O conflito vai permanecer assim pelo menos até às eleições presidenciais da Rússia, antecipa Agostinho Costa. "Até meados de março, o padrão vai ser este", reforça, chamando a atenção para as novidades que possam surgir do outro lado do Atlântico, em concreto com o eventual desbloqueio no Congresso norte-americano de um novo pacote de ajuda financeira para a Ucrânia.

É que, para os especialistas, "Joe Biden não tem outra opção" senão ceder às exigências dos republicanos de modo a desbloquear o pacote de ajuda. "Estou convencido que vai ser possível chegar a um acordo, com concessões de ambos os lados", antecipa o historiador António José Telo, salientando que este bloqueio no Congresso está mais relacionado com "a situação interna dos EUA" do que propriamente com dúvidas quanto à manutenção da ajuda destinada à Ucrânia.

"Mais tarde ou mais cedo, Biden vai entender que se não fizer concessões nesse campo [do fluxo de imigração], vai sem dúvida perder as próximas eleições", acrescenta.

Até lá, a Ucrânia vai fazendo "malabarismo com os recursos" de que dispõe, como escreve o New York Times, de modo a garantir que a linha da frente e grandes cidades como Kiev, Kharkiv, Dnipro e Lviv tenham meios suficientes à sua disposição para se defender dos ataques russos.

"Só espero que não cheguemos ao ponto de a Ucrânia, nomeadamente Zelensky e os chefes militares, terem de tomar uma decisão sobre que cidades vão defender em detrimento de outras. Porque se o apoio norte-americano demorar muito, a Ucrânia vai-se ver obrigada a fazer escolhas difíceis", adverte o major-general Isidro de Morais Pereira.

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