Divulgação de vídeo de soldado russo executado quer passar mensagem aos russos - e pode ser um crime de guerra

14 nov 2022, 21:06
Yevgeny Nuzhin foi assassinado com uma marreta pelo Grupo Wagner (Twitter)

Atos de violência não são novidade entre os mercenários do grupo Wagner, mas a divulgação no Telegram de uma execução com uma marreta está a ser vista como aviso aos próprios combatentes nacionais que pensem em "fraquejar"

A execução de um russo divulgada numa conta de Telegram associada ao Grupo Wagner circulou por todo o mundo nas últimas horas e esse pode mesmo ter sido o objetivo deste grupo de mercenários: enviar uma mensagem a todos os que tencionam deixar de lutar pela Rússia para passar a defender a Ucrânia.

À CNN Portugal, tanto Helena Ferro Gouveia, especialista em Assuntos Internacionais, como o major-general Isidro de Morais Pereira, consideram que este tipo de práticas não são novidade no grupo de mercenários - e noutras milícias de guerra -, mas que a divulgação do vídeo tem o propósito de “dissuadir outros de ter comportamentos semelhantes, para que todos vejam o que pode acontecer àqueles que fraquejarem”.

Isidro de Morais Pereira explica que este “é um caso que deve ser observado dentro do universo do Grupo Wagner” e daqueles que se querem juntar ou já se juntaram aos mercenários liderados por Yevgeny Prigozhin, homem próximo de Vladimir Putin, embora seja um dos maiores críticos da atuação dos militares russos, a quem chamou de “montes de lixo”. “Quem assina o contrato e depois se recusa a cumpri-lo já sabe o que acontece, nem sequer se deram ao luxo de gastar uma munição, podiam ter dado um tiro, era muito mais humano”, diz o major-general, que continua: “Este homem terá fraquejado, o grupo tratou-o de forma desumana, algo inconcebível nos dias de hoje.”

“Conhecemos o que o Grupo Wagner tem vindo a fazer desde 2014”, observa Helena Ferro Gouveia, sublinhando que o uso de violência “é bastante comum”. “O Grupo Wagner opera em vários conflitos africanos, tem sido relacionado e acusado de crimes de guerra nos países onde opera e opera de uma forma geral com muita violência”, continua, destacando que “esta morte e a divulgação [da mesma] não surpreende quem acompanha este grupo”.

Também o major-general Isidro de Morais Pereira não se mostra surpreendido com a violência usada, uma vez que tem sido prática comum de outros grupos privados de guerra e até de milícias. “O que sabemos de antecedentes de violência, como aconteceu com as forças do Kadyrov na batalha de Mariupol, é que há notícias de que estavam por trás desses atos e sempre que combatentes russos fraquejavam as ordens eram para liquidar, para que não houvesse atos de covardia”, lembra.

Para Helena Ferro Gouveia, tal como defende o major-general, a divulgação deste vídeo por parte do grupo de mercenários poderá servir de travão para todos os que pretendam juntar-se ao país invadido, o que poderá evitar perdas por parte dos russos nestes grupos privados de guerra. 

Também Daniela Nascimento, doutorada em Política Internacional e Resolução de Conflitos, diz que “não seria surpreendente” que a divulgação do vídeo seja uma estratégia da Rússia de reter soldados e militares na linha da frente do combate, uma vez que “está a sofrer baixas significativas e recuos importantes, e torna-se fundamental garantir o mais possível a força de guerra ativa”.

“Este vídeo parece ser uma mensagem muito forte, as pessoas que passem para o lado ucraniano não enfrentam apenas prisão, mas sim a violência e guerra”, considera a especialista, lembrando que o próprio Vladimir Putin já tinha ordenado uma alteração do Código Penal russo para mudar as penas a desertores, estipulando o mínimo de dez anos. 

“Não é a primeira vez que este tipo de situação ocorre, do ponto de vista do quão radical é o emprego de força, violência e tortura dos que estão associados ao grupo Wagner. Não havendo limites, e a meu ver não há, esta é claramente uma mensagem forte, no sentido de assegurar o controlo por via da força e da violência de todos os que integram o grupo”, assegura Daniela Nascimento, que considera ainda que “por muito que se diga que o grupo Wagner tem autonomia do ponto de vista de atuação, não me parece que este ato bárbaro não tenha sido, de alguma maneira, comunicado ou tido o aval das forças russas ou dos serviços militares russos.”

Uma outra mensagem que, na análise de Helena Ferro Gouveia, pode ser passada com a divulgação desta execução é a de que o Grupo Wagner saiu da “sombra” e que Yevgeny Prigozhin pode ser o próximo presidente da Rússia, nome já apontado por analistas, diz. 

“Durante muito tempo foram um grupo que se manteve numa zona de sombra, agora assumiram-se, inauguraram uma sede em São Petersburgo recentemente, uma base para desenvolver o que dizem ser tecnologias militares, é uma afirmação do grupo, deixando o secretismo que o rodeava. Isto reforça o papel e peso do líder que é aliado de Putin e que alguns analistas têm como possível sucessor de Putin”, reforça.

Visitantes vestidos com farda militar durante a abertura oficial do escritório do Grupo Wagner durante o Dia da Unidade Nacional, em São Petersburgo, a 4 de novembro de 2022 (AP Photo/Dmitri Lovetsky)

E pode a Ucrânia ‘tirar proveito’ deste episódio? Sim. Embora os três especialistas entrevistados pela CNN Portugal defendam que, no imediato, a divulgação do vídeo não terá impacto a nível direto na Ucrânia, Daniela Nascimento defende que Volodymyr Zelensky pode, de algum modo, tirar proveito do sucedido. E bastaria, para tal, passar a mensagem de que a Rússia não olha a meios para matar e que comete crimes de guerra contra os próprios cidadãos.

Daniela Nascimento considera que este “ato bárbaro” do grupo Wagner “pode ser considerado crime de guerra”, pois “as leis da guerra e o direito internacional humanitário não fazem distinção da nacionalidade das vítimas”. “É é um ato de tortura e violência condenável e, por isso, pode ser considerado um crime de guerra, em condições normais deveria ser punido, como todos os que são cometidos nesta guerra de parte a parte. A tortura está proibida nas convenções de Genebra”, explica.

Pedro Neto, diretor executivo da Amnistia Internacional Portugal, é mais cauteloso neste ponto, defendendo que é preciso saber em que moldes o cidadão russo foi parar às mãos do grupo Wagner e qual a veracidade do vídeo. 

“É uma execução sumária, a barbárie deste ato não está em causa, é uma atuação bárbara, cruel e desumana”, diz, destacando que “mesmo sendo um soldado russo, mesmo sendo desertor, um ato desses é injustificável numa guerra e em qualquer outra circunstância”.

Pedro Neto também afirma que o facto de ser um russo a morrer às mãos dos russos não invalida a possibilidade de se tratar de um crime de guerra, até porque, “tendo em conta que os atores são partes do conflito” e, por isso, poderá ser considerado “um crime de guerra”.

O major-general Isidro de Morais Pereira é da mesma opinião e considera que “no momento em que lhe é conferido o estatuto de combatente pode estar ao abrigo das Convenções de Genebra, mesmo que seja por um grupo de mercenários": "Ele está a combater pela Rússia.”

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